* NOITE DE ABERTURA *

03/12/09 – quinta-feira

             Além da cabana de Rubens, a FUNARTE abriu ao público na noite de hoje a exposição Da Terra ao Povo, do grupo Mestres da Obra, e a instalação Café Vacance, da artista plástica Laura Huzak Andreato. Apesar da independência de cada trabalho, é a junção dos três que forma a mostra ENTORNO DE / NOS LIMITES DA ARTE – 2ª edição, idealizada pelo curador Ricardo Resende.

            Qualquer que tenha sido a intenção do curador da FUNARTE, o efeito produzido foi, a princípio, de estranhamento. Com efeito, tratam-se de três trabalhos heterogêneos, de difícil diálogo. De um lado, o grupo Mestres da Obra, formado por trabalhadores da construção civil; do outro, os ocupantes da Cabana Extemporânea, em sua maioria jovens universitários; no centro, Laura Huzak Andreato, artista plástica profissional.

            A instalação de Laura, intitulada Café Vacance, faz parte de seu projeto Nome Fantasia, que explora a cultura de massa rebatizando estabelecimentos comerciais. No caso, Café Vacance foi o nome dado à lanchonete central da galeria, que separa simetricamente as duas salas onde estão instaladas a cabana e a exposição Da Terra ao Povo. Não à toa, Vacance é um nome que, em francês (língua do estudioso da cultura de massa Edgar Morin), indica simultaneamente férias e vazio, remetendo possivelmente ao vazio das férias-chavão da cultura de massa (parques aquáticos, cruzeiros marítimos, clubes de campo, “ilhas da fantasia”, excursões turísticas etc.), as quais não conseguem suprir o vazio existencial deixado pela corrosão moderna das grandes transcendências (religião, estado, família) e pela esclerose de significação do trabalho cotidiano. Deste ponto de vista, o apuro estético de Laura Huzak conduz a uma dimensão de fina ironia, estendendo o toldo do Café Vacance pelo chão como um tapete vermelho que conduz o visitante a um mundo aparentemente confortável de consumo, com coqueiros caribenhos sutilmente fake e mesas brancas de plástico com guarda-sóis para ninguém botar defeito.

            No extremo oposto, está a produção dos Mestres da Obra. Aqui vemos a força  da matéria bruta ‒ vergalhões de ferro, serras, tijolos – buscando o máximo de autenticidade. O resultado é impecável, acima das capacidades de qualquer artista ideologicamente comprometido com causas sociais, posto que os Mestres da Obra são o social (por mais que tenham sido orientados esteticamente por excelentes artistas plásticos e arquitetos profissionais).

            Justamente aqui parece que a mão do curador Ricardo Resende acertou em cheio. O contraste entre os expositores de Da Terra ao Povo e os ocupantes da Cabana Extemporânea cria um paradoxo extremo: de um lado, a sofisticação, a reserva e o rigor formal de homens rústicos da construção civil; de outro, a precariedade, o despojamento e espontaneidade de jovens burgueses cultos. Forçadas a conviver durante três meses no calabouço da FUNARTE, a brutalidade sofisticada e a intelectualidade precarizada não têm saída senão o diálogo.

            Quanto à cabana propriamente, o destaque absoluto ficou por conta da obra de Silvia Mharques, preparada com esmero desde ontem. Basicamente, trata-se de duas geladeiras anos 50/60 da General Electric, uma azul e outra rosa, as duas em tom bebê, dentro de cada qual pende um grande saco plástico transparente cheio de água e oxigênio borbulhante, formando o plástico uma “barriga” para fora do compartimento. O som do borbulhar do oxigênio na água é captado por caixas acústicas que reverberam em toda a sala, imergindo o ambiente. Não só o som tem esse efeito de imersão, como a luz branca fria  que vem da água banha tudo ao redor (assim como o ultravioleta de uma haste vertical, e o cobre quente geral por detrás também).

            A obra remete a uma dinâmica de gestação, como se a água das grandes bolsas fosse líquido amniótico. Não possui título, mas, “se tivesse título”, diz Silvia, “seria Vitória e Pedro”, nomes que ela teria dado a seus filhos, caso ela os tivesse tido, coisa que, aos 37 anos, a artista julga difícil. “Eu seria uma boa mãe”, diz reflexiva. Quem a conhece pessoalmente garante o mesmo: Silvia é uma pessoa extremamente afável, ao mesmo tempo madura e forte. 

            Muitas pessoas ficaram emocionadas com a obra. De fato, há emoção em cada gota daqueles enormes sacos de lágrimas. Mas nenhum derramamento, nenhum exagero, nenhum sentimentalismo. Pelo contrário, a correlação perfeita de peso, forma, luz e som conduz a um sentimento de serenidade em lidar com a dor da ausência e da solidão irremediável, simultaneamente a um enorme carinho pela maternidade. Silvia Mharques foi capaz de dar solução estética unívoca (não-ambígua) a uma ambivalência de origem: vazão ao desejo de ser mãe, serenidade frente à impossibilidade de ser mãe; instinto de renovação da vida (fluxo de oxigênio) e necessidade de contenção do sentimento (geladeira). Diante da obra, não há nenhum convite a chorar, mas um impulso natural ao silêncio.   

**********************************************************************

04/12/09 – sexta-feira

            O dia de hoje foi destinado a consertos, reparos e arrumação da bagunça deixada pela noite de ontem, que contou com uma garrafa de Chandon para comemorar o nascimento do primeiro filho de Pedro Maia de Resende, fato principal da noite de abertura.

            Uma conversa com Lilian Soarez  também ajudou a esclarecer a intrigante performance ‒ denominada maléolos – realizada ontem pela atriz, como momento oficial de começo da ocupação da cabana. Na misteriosa performance, Lilian circulou de esmalte vermelho os ossos proeminentes que fazem o encaixe das pernas com os pés – os tais maléolos – e, em seguida, bordou liturgicamente o número 112 numa tela de bordado e a prendeu na parede, para incompreensão geral da assistência. Tal ação, contudo, era dotada de fundo simbólico: como cada indivíduo possui quatro desses ossos, e o número de ocupantes da cabana é 28, tem-se o total de 112 ossos, ou seja, 112 bases de sustentação do corpo. Instituir o número 112 na parede, portanto, foi um ato simbólico de dar sustentação ao corpo de integrantes da cabana, espécie de ritual mágico para fundar um ponto de equilíbrio coletivo.

            Para além do mágico-simbólico foi Rafael Aboud: discretamente, montou num canto quase imperceptível uma pequena prateleira, sobre a qual jogou um singelo bordado branco, pintou a figura de S. Jorge e acendeu uma vela. Quando este narrador estava para bater uma foto daquilo que julgava ser uma “instalação”, foi advertido pelo autor “da obra” de que não estava autorizado a fazê-lo. Depois de saber que Aboud pediu a todos os participantes um retrato 3 por 4 para depositar no dito altar, este escrivão entendeu a dimensão real da coisa.

P.S: Desculpe Lilian pelo equívoco, e obrigado pela errata enviada.

 

4 Respostas to “* NOITE DE ABERTURA *”


  1. 1 Fernanda Ghingaro 07/12/2009 às 12:45

    Acabei chorando após um grande silêncio.

  2. 2 diariodacabana 07/12/2009 às 19:35

    Somos solidários à sua manifestação de sensibilidade, Fernanda. Obrigado pela postagem.

  3. 3 macadden 10/12/2009 às 2:53

    me lembrou o “foguinho” das meninas da adega,janaina e sua turma,parece-me que o relator esforçasse para que com sua bagagem critica e cultural que lhe sobra em demasia procura regar as aparentemente imaturas sementes de manifesto artistico destas horta,assim que como o aplicado jardineiro sai a caça de ervas daninhas(aqui no caso entendasse por ervas daninhas manifestações artisticas muito maquiadas mais com pouco conteudo)para dar mais um belo aspecto as flores que sobram no jardim,se é que elas existem


Deixe um comentário




Estatísticas

  • 29.278 acessos
Follow DCAL – Diário da Cabana: Abrigo Literário on WordPress.com

Todas as Postagens

CLIQUE PARA VER A IMAGEM INTEIRA

CLIQUE PARA VER A IMAGEM INTEIRA

Entre seu endereço de email para seguir este blog e receber notificações de novas postagens

Junte-se a 8 outros assinantes