Correntes da História III

 25/12/2009 – sexta-feria, Natal do Senhor. [Feliz Natal a todos! Que o nascimento de Cristo seja sempre lembrado com alegria!]

            

          Tudo o que foi falado ontem sobre o antigo poder feminino na Terra é altamente verossímil. Com efeito, não faltam tribos indígenas atuais a relatar, em suas mitologias, um matriarcado remoto substituído em determinado momento (também remoto) pela atual supremacia masculina, cultuada em espaços restritos onde só entram homens. 

          Do mesmo modo, é verossímil que os homens, a princípio, tenham temido as mulheres a ponto de não ousarem contestá-las, submetendo-se às suas vontades sob pena de serem vítimas de feitiço. Aliás, a história e a mitologia estão cheias de feiticeiras terríveis, como Circe transformando homens em porcos na Odisséia. Corrobora essa idéia generalizada (de que as mulheres são sobrenaturalmente perigosas) o fato de a Igreja – confraria masculina clássica, detentora da tocha da Cultura Ocidental (hebraico-greco-romana) – ter promovido sua caça às bruxas a partir de 1260 d.C. com a instalação dos tribunais da Inquisição, sob o pretexto de combater uma insurreição da feitiçaria no mundo (haveria então um número supostamente grande de mulheres se oferecendo, em rituais noturnos de bruxaria, para serem possuídas carnalmente por certos daimones infernais de forma masculina chamados íncubos, que em troca do ato sexual oferecê-las-iam poderes sobrenaturais; a versão feminina desses demônios eram os súcubos, que drenavam a energia vital dos homens em picantes sonhos de natureza sexual, levando ao desperdício de sêmen em poluções noturnas). Assim acreditavam à época; e não é de se espantar, porque até hoje paira certa daimonização cultural da mulher, a quem se atribui o famoso “sexto sentido feminino“.

          A campanha da Inquisição, ao que tudo indica, parece não ter sido suficientemente eficaz na erradicação da bruxaria no mundo. Haja vista, setecentos anos depois, uma pacífica dona de casa dos anos 60 do século XX, apelidada A Feiticeira, ter praticado feitiçaria pra cima do marido reiteradamente diante de milhões de telespectadores – e com a ajuda da mãe, uma bruxa velha (que sabia das mais intricadas simpatias para amarrar a vida do genro) sem qualquer retaliação. A concorrente de A Feiticeira na mesma faixa de audiência era o gênio (daimon) feminino Jeannie (a estonteante Bárbara Éden) do famoso seriado Jeannie é um Gênio. Jeannie era esposa do major Nelson (o galã Larry Hagman), um pacífico e educado piloto da aeronáutica (e depois da NASA) que nunca ia para a guerra, e que por isso ficava em casa metido nas maiores enrascadas domésticas por causa dos feitiços da mulher, que resolvia tudo na base do passe de mágica. Todo este resquício cultural de uma visão paleolítica da mulher fazia sucesso mundial na televisão do século XX, mas, por mais envolvida com bruxaria que fosse Jeannie, jamais o homem do século XX mandaria uma mulher como Bárbara Éden para a fogueira – o que representa uma grande evolução.        

           Mas agora quero falar algo mais a sério. Apesar de tudo o que foi dito acima sobre indícios de um poder feminino na Terra, ainda não me parece possível afirmar a existência real de um matriarcado primitivo a partir da observação das Vênus paleolíticas. De que a humanidade tenha passado pelo matriarcado em tempos remotos, nisto não discordo do professor Campbell, mesmo porque há tribos que o adotam até hoje.

           Esteticamente, entretanto, não vejo nas Vênus uma sugestão clara ou prova nesse sentido. A Vênus de Willendorf, por exemplo, não parece indicar uma mulher que detém o poder, mas uma mulher sob influxo do poder. Seu rosto está encoberto artificialmente, seja por uma máscara ritual, seja por um cabelo preparado – o que não deixa de ser uma máscara ritual. A única coisa que aparece desse rosto despersonalizado é a boca em formato de “o”, menor até do que o umbigo; uma boca aberta, mas que não fala: uma boca em transe. Sua hipertrofia dos caracteres sexuais femininos não é de modo algum voluptuosa. Muitos discordarão disto, afirmando que não se pode saber qual era o gosto estético sexual dos homens há 30.000 anos atrás. Sim, não se pode, mas é de se supor que a mulher considerada “no ponto” não fosse assim tão volumosa, já que isto seria incomum numa época em que a comida não era uma coisa tão acessível. Assim, é improvável que a estatueta represente um “padrão” de beleza feminino, mas, pelo contrário, represente a condição especial da mulher grávida em fase avançada de gestação. Só isto explica tamanha massa nos seios e na barriga, empurrando o umbigo para fora. O padrão de beleza devia ser mesmo o da adolescente que a partir dos 15 anos já está sexualmente madura e pronta para o acasalamento (lembremos que o tempo médio de vida na época girava em torno dos 20-30 anos, e que uma pessoa de 15 anos estava na meia-idade). Por isso, temos tudo para supor que as formas femininas hipertrofiadas da Vênus de Willendorf remetessem, mesmo nos povos primitivos, à gestação, e não à voluptuosidade.

            Pelo contrário, o rosto coberto da Vênus parece indicar um tabu. A estatueta evidentemente opera a representação de um fenômeno (devia saltar aos olhos esse impressionante fenômeno que desemboca no nascimento de um novo ser na Terra), fenômeno em que a mulher, passando por um processo inexplicável, maravilhoso e delicado (pensemos nos altos riscos de aborto e bebês natimortos num povo nômade), é encarada como portadora de uma força sagrada.

          Ora, o sagrado, como sabemos, deve ser conservado sem mácula, o que exige uma respeitosa distância. Ninguém pode sair por aí tagarelando o nome do aniversariante de hoje a cada duas frases que fala, senão haveria profanação do nome, isto é, mistura do puro com o impuro.

          Do caráter sagrado da gestação no Paleolítico, evidenciado na Vênus de Willendorf, é de se supor – arrisco o palpite – que os homens primitivos não fizessem sexo com as mulheres visivelmente comprometidas com a gestação, para não incorrerem em profanação. Por isso a máscara (ou cabelo-máscara) como sinal de consagração da gestante. Consagração que devia ser feita num ritual, o qual – arrisco mais uma vez – devia envolver o transe da gestante, ou seja, sua perda de consciência do próprio eu (o pequeno-eu), sua despersonalização em favor do influxo do divino (O Grande Eu). A gestante consagrada, no transe, deixava então de ser a Fulana da Tribo para ser um veículo de manifestação da divindade. Enfim, o ritual de consagração devia ser considerado imprescindível, pela tribo, para o sucesso da gestação, já que este era entendido não como um processo biológico mecânico, mas supranatural, inexplicável, misterioso, divino.

          Mas qual seria exatamente a função da estatueta: representar artisticamente o ritual ou agir liturgicamente no ritual? Se a função era representar, então a Vênus de Willendorf é o “retrato em 3 Dimensões” de uma Fulana gestante, uma pessoa que existiu de fato, ou ainda uma representação impessoal referente à figura das gestantes em geral; se a função era agir, então a Vênus de Willendorf é a padroeira das gestantes, a figura da gestante ideal e real, a gestante “platônica” por assim dizer, cujo ser abstrato-invisível (mas real) toma forma viva no terreiro a partir da invocação sobre a estátua, a qual sinaliza a presença verdadeira do ser invocado. A segunda hipótese parece mais conforme às necessidades práticas do homem primitivo.

          Por tudo o que foi exposto, defendo a tese de que a Vênus de Willendorf revela sim traços culturais fundamentais do homem paleolítico – a religiosidade implicada no ritual de consagração das gestantes, a importância disso para a coesão social da tribo etc. – mas não necessariamente a prevalência do matriarcado na sociedade tribal.

          Esta tese é corroborada pela própria Vênus de Lespugue – a segunda em fama, uma peça de marfim que apresenta um extraordinário design geométrico, com uma estilização incrivelmente “moderna” das formas, e uma hipertrofia sexual ainda maior que a da Vênus de Willendorf. Ora, os ombros da Vênus de Lespugue estão encurvados sob o peso de seus gigantescos seios despencando sobre a barriga de grávida; a própria cabeça – também sem rosto – é arremessada para frente e para baixo (pelo movimento pontiagudo do queixo) por esse enorme peso. Suas nádegas são de uma extravagância total, sobrando horizontalmente pelos lados; não obstante, a figura toda é simetricamente longilínea, de modo que o ventre demarca o espaço central, salientado pelos seios e pelas nádegas. Toda a massa corporal, aliás, converge para o ventre: a pequena cabeça, os ombros e bracinhos no estreito tronco formam o triângulo superior; as pernas e enormes coxas formam o triângulo invertido inferior; no meio, seios, nádegas e ventre formam um bolo. A mulher, em suma, é um losango de pé. Esse losango longitudinal formado de curvas simétricas é esteticamente lindo enquanto obra de arte, uma obra-prima insuperável, mas não parece ter servido de estímulo para desejos voluptuosos. Também não sugere um poder matriarcal, mas tão-somente uma visão impressionada – e impressionante – do corpo da mulher gestante, visão de um anônimo gênio pré-histórico da arte. Assim, a Vênus de Lespugue, somada às mais de 130 Vênus paleolíticas já encontradas pelos arqueólogos – todas mais ou menos dentro do padrão estético descrito aqui – revelam o caráter sagrado da gestação, embora não evidenciem qualquer sinal de matriarcado. Eis a minha tese.

          Mas que fique claro: Não dou a mínima para esta tese – a beleza e o eterno mistério das Vênus bastam.            

2 Respostas to “Correntes da História III”


  1. 1 macadden 05/01/2010 às 3:39

    aja neoronio,poeminha pra ti

    gostaria de velo a debater com autoridades no assunto

    gastas teu tempo com a escoria maquiada

    arte hoje é so pra ganhar mulherada

    tu mereces um sanduiche de presunto

    gostaria de velo a debater com a mulherada

    gastas teu tempo com pseudo autoridades no assunto

    arte hoje anda toda maquiada,tu mereces….gerere gerere ilsd

    • 2 diariodacabana 06/01/2010 às 18:01

      Sai ano, entra ano, e o Senhor MacAdden não perde sua corrosiva acidez. Que peque pela precipitação: personalidade, pelo menos, parece que tem e mantém. Bem vindo de volta à cabana, sr. MacAdden.


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