Arquivo para dezembro \07\-02:00 2020

O Viajante Noturno

Dizem que um homem deve passar certas coisas sozinho. Faz sentido. E que não há coisa mais forte do que um homem quebrado reconstruindo-se. Humm… Na força da braveza, da indignação com a própria fraqueza? Pode ser; sem dúvida é uma força considerável. Não, porém, em isolamento demasiadamente prolongado, que a força mingua, mas com fé, esperança, caridade e companheiros com que se desenvolver mutuamente, como diz o ditado:

“O ferro com o ferro se aguça; o homem aguça o homem.” (Provérbios 27,17)

Será que me isolei demais? Me quebrei demais? Vou continuar tentando, vou fazer minha parte…

Assim ia divagando o viajante noturno, vindo de São Paulo pela Dutra em direção a Campos do Jordão, a “joia do alto da serra”. Era um bibliotecário paulistano, há meses em dura quarentena em seu apartamento no centro da capital, e vinha precisando mudar de ares, espairecer uns dias, arejar a mente.

Passando São José dos Campos e Caçapava, chegou a Taubaté e pegou a saída para Campos pela SP-123, rodovia Floriano Rodrigues Pinheiro.

Na SP-123, logo passou a entrada para o distrito de Quiririm, pequena mas histórica colônia italiana que reivindica sua emancipação de Taubaté, e seguindo adiante cruzou imediatamente o rio Paraíba do Sul – donde o nome “Vale do Paraíba” à região –, que vai passar em Aparecida do Norte, casa da padroeira, destino nacional de peregrinação.

Tudo isto estaria percebendo muito melhor se viajasse de dia, mas tinha se atrasado em São Paulo, e a noite havia caído. Era, de fato, um desperdício ir de noite a um lugar de tão bela natureza, na Serra da Mantiqueira, mas era o que tinha para hoje. Pelo menos já havia feito essa viagem antes, o que era um bom consolo para o atraso.

Em seguida, avistou o último posto de gasolina antes da subida, no Jardim Maracaibo, bairro de Tremembé. Parou, subiu a máscara que estava ao pescoço, pediu para o frentista completar o tanque e foi ao banheiro do restaurante Pé de Serra, junto ao posto. Eram só sete da noite e ainda estava aberto, para sua sorte, que o local costuma fechar cedo. Nenhum cliente, apenas duas atendentes, também de máscara, conforme o figurino de quarentena daquele fim de 2020. Nas prateleiras para vender, alguns chapéus caipiras, cintos, botas etc.  

– Boa noite.

– Boa noite.

– Posso usar o sanitário?

– Fique à vontade.

 Voltando do banheiro, perguntou à mais próxima:

– Oi, deixa eu te fazer uma pergunta: tô indo pra Campos do Jordão, será que alguém quer uma carona?

As duas entreolharam-se achando um pouco inusual a indagação.

– Não, obrigada.

– Desculpe a pergunta assim meio de sopetão, é que de repente podia vir a calhar, né? Muita gente vai e volta todo dia.

– Ah, sim. Você é de Campos?

– Sou de São Paulo. Mas já conheço lá. Vocês são daqui de Tremembé mesmo?

– Sim.

– Legal. Eu tava mesmo pensando numa companhia, sabe. Unir o útil ao agradável. Mas obrigado.

– Por que você não instala o aplicativo de carona? – disse a outra colega.

– Humm… boa ideia. Vocês tem um café aí?

– Puro?

– Por favor.

Enquanto foi tomando o café, instalou o aplicativo no celular, com instrução das jovens.

 – Obrigado, meninas, pela dica. Tchau.

– Tchau, boa viagem.

Podia ser uma pequena e corriqueira viagem a partir dali, para os habitantes daquelas cidades próximas como Taubaté, Pindamonhangaba etc. Mas para um turista ainda era uma certa viagem, principalmente por causa da serra.

De tanque cheio, água completa, óleo no nível, pneu calibrado, partiu.

Logo passou o trevo para Tremembé, sem desviar-se.

Em seguida, o último trevo antes da subida da serra, para Pinda, bem como o último posto da polícia rodoviária, muito chique por sinal, em estilo serrano.

Mal começou a subida, começou a neblina. E foi esfriando. Ligou o rádio:

Expresso Nostalgia, o seu flashback noturno, só na Sentimento FM, a sintonia dos corações veteranos. Voltamos ao ano de 1984 com o sucesso da banda Foreigner, “I Wanna Know What Love Is”, com nossa tradução ao vivo especialmente pra você:

I gotta take a little time… “Preciso de um tempo”;

A little time to think things over… “Um pouco de tempo para repensar as coisas”;

I better read between the lines… “Melhor eu ler nas entrelinhas”

In case I need it when I’m older… “Caso precise quando for mais velho”;

Fazia décadas que não ouvia assim uma tradução simultânea no rádio. Coisa dos anos 80, 90…  

Now this mountain I must climb… “Agora devo escalar essa montanha”;

Feels like a world upon my shoulders…    “Parece que o mundo está sobre meus ombros”;

Through the clouds I see love shine… “Através das nuvens eu vejo o amor brilhar”;

It keeps me warm as life grows colder…  “Me mantém aquecido enquanto a vida esfria”…

A letra fazia sentido, mas o viajante não estava muito nostálgico. Queria – precisava – viver o agora, ao menos em breve. Estava viajando também para isso, ver se vivia um pouco, que nos últimos anos vinha só sobrevivendo.

Bem que o aplicativo podia apitar…

Mas não apitava. Mudou de estação. Ouviu um som de teclado gospel ao fundo:

Muito boa noite, com muito prazer, com muita alegria, recordando essa confiança que nós precisamos viver diariamente, que nós começamos hoje o pregrama – programa – Direção Espiritual. É também um pregrama, né? Aqui a gente prega, né Cristian? Boa noite. Tocando bonito hoje o Cristian, né? Viu? Não-não; você toca todo dia muito bem, mas hoje você tocou maravilhosamente bem.

Era o padre Fábio de Melo. O viajante sentiu-se com sorte, pois gostava de ouvi-lo, principalmente quando estava deprimido. Era um longo programa sobre confiança e amor próprio.

A Márcia, lá de Campos dos Goytacazes – um abraço pra essa cidade tão querida, onde eu já estive tantas vezes –, ela quer saber: padre Fábio, o que é o amor próprio? É o amor em mim, ou é o amor que eu sinto por mim? É uma boa distinção, Márcia…

Conforme a altitude ia aumentando, porém, a rádio ia falhando mais, o que era uma pena. A neblina também ia dando uma apertada. Desligou o rádio.

As mãos do viajante noturno seguiam no volante, olhar atento, enquanto os rolos de névoa da serra se sucediam contra o para-brisa do carro encobrindo em parte as consecutivas curvas da estrada. Precisava estar esperto. O silêncio era bom.

Mas bem que o aplicativo poderia dar uma apitada. Se bem que devia estar também sem rede. É… quebrar o carro ali uma hora dessas seria um tremendo inconveniente. Não o fim do mundo. Mas um baita inconveniente.

Mas se apitasse, quem poderia ser? Uma mulher? Uma mulher maravilhosa, uma mulher comum, que viesse dar alegria à sua vida? Não, muita moleza, assim de bandeja. Pra que viajar nisso, em absurdas fantasias? Já havia rascunhado sobre isso anteriormente: precisava antes de tudo ser um homem mais centrado, mais seguro, confortável consigo mesmo, bem-humorado, atento, compreensivo, determinado, tudo aquilo que o Coach Corey Wayne, mentor americano de relacionamentos do youtube, prescrevia em seus vídeos e no seu clássico livro de autoajuda “3% Man”, lido e relido pelo viajante. Sim, mais decidido, definido, sabendo melhor quem é, o que quer e para onde está indo, e assim potencialmente mais bem-sucedido, progredindo – não importa em que velocidade e sobressaltos, mas progredindo – na direção de seus objetivos pessoais, independente de quais forem, e com expectativas positivas de alcançá-los.

Era muita coisa. Se o viajante fosse contar pro Corey Wayne seu impressionante histórico de vacilos em todas essas áreas, receberia do mentor aquela sua bem-humorada reprimenda: C’mon, man…

Passou, enfim, pelo último trevo antes de Campos Jordão, dando saída para a pequena Santo Antônio do Pinhal, cidade da antiga estação de trem Eugênio Lefréve, e para a também pequena mas curiosa São Bento do Sapucaí, na divisa com Minas, terra da Pedra do Baú, cidade da qual Campos do Jordão emancipou-se somente em 1934. São Bento do Sapucaí, por sua vez, foi desmembrada do município de Pindamonhangaba em 1858.

Ok. Mas se não fosse uma mulher, quem poderia ser no aplicativo a uma hora dessas?

O viajante pensou no outro autor cujo livro o marcou durante a quarentena, para além do 3% Man de Corey Wayne. Lembrava-se de Nick Farewell, que apesar do nome, era um brasileiro, coreano-paulistano, autor do best-seller GO.

Poderia receber pelo aplicativo o chamado de Nick para socorrê-lo com a quebra de seu porsche na altura da entrada para o território já jordanense de Renópolis, bairro rural. Ali no acostamento da encruzilhada estaria o simbólico porsche conversível vermelho com estofamento preto (ou seria o contrário?); bom, estaria por ali de pisca-alerta ligado, pulsando dourado em meio ao nevoeiro.     

– Algum problema, senhor Farewell? Posso ajudar?

E ele poderia responder com aquela sua frase clássica de início do GO:

– Preciso encontrar alguém que me traga de volta para a vida.

 – Puxa, Nick, eu também! Sei totalmente como é. Mas não sei se estou à altura… De qualquer forma obrigado pela consideração. O que eu posso providenciar com certeza é uma carona até a cidade ou emprestar o celular.

– Acho que aqui está sem sinal. Me leve até a cidade então, se possível.

– Nick, conheço sua obra. Sou bibliotecário. Mas estava completamente desanimado na minha vida pessoal, sem achar sentido também na leitura. Então li seu livro GO por acaso. Que grande feito artístico! Salvou a literatura em mim, que estava pela hora da morte. 

E Nick diria, como em GO:

Sou apenas um ser humano como você, tentando encontrar uma saída. Sou apenas um homem com uma incerteza do tamanho do universo tentando encontrar um motivo para continuar vivendo. E o meu direito, o meu único direito, será tentar.

 E desse modo o humanista escritor, se aparecesse assim na estrada, poderia ir ajudando – que fosse um pouco – o viajante noturno em sua gigantesca dificuldade de tratar de sentimentos e pensamentos perante os temas da vida, diga-se, perdas, morte, falhas, defeitos, relacionamentos, amor, esperança etc.

Como, mais uma vez, diria Nick em seu livro:

Pensando bem, será que não estou fazendo você de minha companhia, e vice-versa?

Grande livro. Assim como outros, para outras pessoas, em diferentes períodos. Cada um do seu jeito. Dar uma carona naquele momento ao Woody Allen narrador de Cuca Fundida, por exemplo, perdido pelo acostamento, seria uma experiência completamente diversa, explosivamente engraçada. Que bom também é poder rir das nossas loucuras!

Mas o fato é que estava difícil encaixar na correria uma piada plausível ao estilo Woody Allen e era uma imaginação absurda supor semelhantes encontros e diálogos àquela altura, sem pelo menos um atestado do comitê interamericano de tortas de limão e uma recomendação por escrito do próprio Shelby Garcia. Sejá lá quem for Shelby Garcia.

O viajante concentrou-se na parte final do trajeto. Queria chegar logo. Dormir não muito tarde, aproveitar o dia de amanhã.

Aos poucos, a neblina foi se dissipando.

Mais um pouco e surgiram as luzes das primeiras habitações, e, logo, o portal da cidade, em estilo de chalé europeu. Era um lugar hospitaleiro, a cidade como um todo.

Passando os trevos para os bairros de Vila Albertina e Santa Cruz, cruzou a linha da máquina e chegou à Abernéssia, bairro central. Parou na praça do Gazebo e tocou o interfone do hostel no grande e antigo sobrado de esquina, onde havia agendado um quarto.

Subiu e pegou com a atendente na recepção as chaves, tanto do seu quarto, como do estacionamento adjacente e da porta de entrada do próprio hostel. Estava livre para perambular pela cidade e entrar e sair a hora que conviesse.

Na sala havia dois hóspedes com cobertores assistindo televisão, parece que alguma série boa da netflix.

Desceu à rua, guardou seu carro no estacionamento do hostel, atravessou a avenida até um restaurante ainda aberto, tomou um chocolate quente, mas logo voltou ao hostel e dormiu. Também precisava descansar.

No dia seguinte, o sol da manhã e os barulhos da rua ajudaram-no a acordar. Estavam começando a montar a decoração de natal na praça. Até que havia bastante gente perambulando.   

Sentia-se animado pelo próprio fato de ter-se aberto à aventura por alguns dias, ainda que numa cidade pacata. Pegou uma pequena caderneta para anotações e um lápis, e saiu pelas ruas.  

*


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