Lições de um “fiasco”

  14/12/2009 – segunda-feira

          O gênio da raça, digo Joaquim Maria Machado de Assis (1839-1908), o maior e mais sábio homem nascido no Brasil, fundador e primeiro presidente da Academia Brasileira de Letras, para sempre o nosso Pelé da Literatura, estabeleceu os fundamentos da crítica de arte em solo nacional por meio do brevíssimo – e direto – ensaio intitulado Ideal do Crítico, obra clássica indispensável para qualquer um que se aventure a emitir pareceres no campo.

          Lá diz o bruxo do Cosme Velho, entre outras coisas, que a função do crítico profissional é a de servir de farol seguro em meio à produção artística, para que as boas obras não naufraguem no mar nevoento e revolto da opinião pública, sempre caprichosa e agitada pelos ventos furibundos da publicidade.  

          Para tanto, deve o crítico possuir: 1º) ciência: deve saber a matéria em que fala, indagando constantemente as leis do belo e adotando para si uma regra segura, a fim de não cair em contradição; 2º) consciência: o crítico tem o dever de dizer a verdade de acordo com sua consciência, independentemente da vaidade dos autores e da vaidade própria, sem se deixar levar por simpatias ou antipatias, nem pela execução de reproches ou adulações interesseiras; 3º) coerência: na manifestação de seus juízos, o crítico não deve deixar-se impressionar por circunstâncias estranhas às questões artísticas, para que seus juízos de hoje não sejam a condenação das suas apreciações de ontem; 4º) tolerância: é preciso que o crítico reconheça a obra boa mesmo no terreno de escolas artísticas que não sejam de sua preferência, ou seja, embora considere o pagode uma merda, não deve julgar de antemão que toda composição nesse gênero será tal, e ainda que reconheça o fato de Heitor Villa Lobos ser um dos maiores gênios da música telúrica clássica, há de se prevenir de que ele também possa ter cagado uma ou outra vez. A tolerância deve, portanto, ser cuidadosamente observada pelo crítico, pois bem nos adverte Machado: “A crítica que, para não ter o trabalho de meditar e aprofundar, se limitasse a uma proscrição em massa, generalizando, seria a crítica da destruição e do aniquilamento“; 5º) urbanidade: o crítico não deve jamais se utilizar de termos chulos. Neste item, deleito-me em reproduzir literalmente o discurso do mestre: “Uma crítica que, para a expressão de suas idéias, só encontra fórmulas ásperas, pode perder as esperanças de influir e dirigir. Para muita gente será esse o meio de provar independência; mas os olhos experimentados farão pouco caso de uma independência que precisa sair da sala para mostrar que existe. Moderação e urbanidade na expressão, eis o melhor meio de convencer; não há outro que seja tão eficaz. Se a delicadeza das maneiras é um dever de todo homem que vive entre homens, com mais razão é o dever do crítico, e o crítico deve ser delicado por excelência. Como a sua obrigação é dizer a verdade, e dizê-la ao que há de mais suscetível neste mundo, que é a vaidade dos poetas, cumpre-lhe, a ele sobretudo, não esquecer nunca esse dever. De outro modo, o crítico passará do terreno da discussão artística, para cair no terreno das questões pessoais; mudará o campo das idéias em campo de palavras, de doestos, de recriminações – se acaso uma boa dose de sangue frio do adversário não tornar impassível esse espetáculo indecente.

          Falou o mestre. Eis que todo o crítico brasileiro, filho de Machado de Assis, deve trazer à mão estes cinco princípios como fossem seus dedos, do polegar ao mindinho. Só assim poderá evitar a armadilha da CRÍTICA ESTÉRIL, que “aborrece e mata, não reflete nem discute, abate por capricho ou levanta por vaidade, acometida por uma de quatro chagas: ódio, camaradagem, indiferença, superficialidade“, para então realizar a CRÍTICA FECUNDA, “pensadora, sincera, perseverante, elevada, que reergue os ânimos, promove os estímulos, guia os estreantes, corrige os talentos feitos“. Enfim, deve estar consciente de que “crítica é análise – a crítica que não analisa é a mais cômoda, mas não pode pretender ser fecunda. Antes de resumir em duas linhas o julgamento de uma obra, cumpre ao crítico meditar profundamente sobre ela, procurar-lhe o sentido íntimo, aplicar-lhe as leis políticas, ver enfim até que ponto a imaginação e a verdade conferenciaram para aquela produção“.

           Pois bem. A retomada aqui do Ideal do Crítico como baliza não tem outra motivação senão a dificuldade oferecida pela tarefa perigosa de criticar – de bate-e-pronto – o evento acontecido na cabana nesta noite de segunda-feira. Tal evento foi prenunciado com alarde pelo artigo Duelo Marcado (cf. 08/12/2009), constituindo o primeiro e esperado dia das conversas fundamentais a serem mantidas em cima do Ringue Extemporâneo.

          O tema do combate desta noite foi “O Nome do Pai”, opondo Flávia Tavares a Rubens Espírito Santo.

          Do ponto de vista da frase que acabou de ser dita, o evento infelizmente foi um fiasco. Luvas e faixas de boxe sujas de sangue (real), penduradas num canto da galeria Mario Schenberg inteiramente pintado de vermelho para servir de ringue, provocaram no público uma expectativa que, ao cabo, foi desmentida. Não houve combate, sequer oposição entre os contendores dentro da arena, que chegaram a beijar-se as mãos num momento de impotência discursiva. A ausência de tensão no diálogo, e o melancólico esvaziamento final do debate, deixaram um saldo que resvalou no constrangimento, de modo que o único sangue arrancado talvez tenha sido o da exposição de debilidade performática do casal perante o público insatisfeito – ferida que não é de se subestimar.

          O princípio do combate, porém, não indicava isso. Pelo contrário, chegou a parecer promissor: percebia-se a alta voltagem mesmo no silêncio da atriz Flávia Tavares, que subiu ao ringue de peito aberto, sem máscara, corajosamente disposta a vestir a alma por sobre a pele, em nome da arte. Apresentou de imediato sua chaga, confessando que seu pai lhe dera a liberdade de ser uma mulher desejante, mas não lhe dera corpo bastante para sê-lo.

          Rubens contra-argumentou que só entendeu o sentido do pai em sua via quando se cumpriu a profecia de seu amigo e guru, o filósofo húngaro Christophe Kotanyi: “NO DIA EM QUE SEU PAI MORRER, VOCÊ VAI ENTENDER O QUE É CARÁTER”.

          Debateram então a relação entre pai e corpo. Flávia manifestou que “o pai significa um corpo que me autoriza e me estrutura em algum lugar”, e Rubens que “de algum modo, o nome do pai é um artifício no sentido de instrumentalização do ser para suportar o vazio e a incompletude”.

          Diante da constatação de Rubens da debilidade da figura paterna nos tempos de hoje, Flávia perguntou se era possível inventar o próprio pai.

          A resposta de Rubens – o ponto alto do debate – foi longa e enveredou por diferentes áreas de interesse. Começou ampliando o problema da ausência da figura paterna do campo individual para o coletivo, remetendo à debilidade da arte nacional como uma consequência da precariedade de filiação a um legado cultural, afirmando que, nessa área, “estamos muito deserdados; Hélio Oiticica, que supostamente ocupa essa função, é muito fraco”, enquanto em outras áreas, como o pensamento estritamente filosófico, “estamos completamente órfãos”, donde coloca-se a questão: “Com essa deficiência, esse barbarismo, essa falta de recursos, o que fazer? Se não podemos ver Velásquez, se não podemos ver Beuys, o que fazer?”

          O próprio Rubens deu a resposta: “Essa ausência do pai nos permite a invenção dele. Aqui tem que ter um gato. O ilícito no lícito. O drible na pequena área.  Este lugar do impossível é o único lugar afirmativo e possível, ou seja, este impossível não é negativo em hipótese nenhuma: pelo contrário, é o único lugar possível.”, afirmou, sem esconder a reverberação do pensamento de Slavoj Zizek, na sua opinião “um dos maiores comentadores de Lacan”. E continuou logicamente: “Por isso eu não gostaria de estar em qualquer outro lugar que não o Brasil, porque só aqui ainda é possível criar o próprio pai, só aqui podemos estar na incompletude.”

          Então Flávia Tavares emendou a grande pergunta: “Como estar nesse lugar e não se desesperar?”

          Rubens respondeu: “Uma das possibilidades de suportar esse inacabado é tentar se recolher a um lugar de totalidade. Mas esse lugar de totalidade é a cristalização, é a morte. A outra possibilidade é a cultura, cultura de si mesmo e cultura do outro, é a escuta. Nós somos surdos!

          Flávia não se dava por satisfeita: “Eu sou um esboço, eu sou pura repetição!”

          “O país é repetição. Você é somente um reflexo do país”, respondeu Rubens.

           “Pois eu quero que você me faça correr o risco de cair!”

           “Cair agora, ou na vida?”

           “Cair agora.”

           “Eu não sou mágico, eu não sou uma espécie de demiurgo, eu não posso virar você por dentro.”

           “Por quê?”

          “Porque já está tão belo assim, já está tão ótimo… me dá um grande motivo para eu fazer.”

           “Eu quero melhorar o esboço”

           Rubens entrou em silêncio total. Irrompeu-o dizendo: “Vamos trocar de lugar”. Os dois trocaram os respectivos lugares, ocupando um a cadeira em que o outro estava. Técnica xamanística? Feng Shui?

          “É lindo assim… porque eu quero mais?..”, meditou feliz Flávia Tavares.

          “Tem escrito?”, perguntou Rubens.

          E assim o interessante diálogo desaguou, sem que nenhuma pajelança pudesse reerguê-lo. Destes bons primeiros 20 minutos em diante a coisa foi rio abaixo, piorando terrivelmente quando um dos ouvintes se meteu a adentrar o ringue para dar sua opinião. A tensão – e a atenção – desarmou-se de vez, porque o terceiro elemento estava em completa dissintonia, tornando-se rapidamente um silencioso estorvo, que quebrou definitivamente o ritmo do casal. Sem saída, Rubens tentou salvar a coisa insistindo no erro, e apelou para mais presença da platéia, por meio de convocação. Logo o ringue ficou com cinco pessoas constrangidas, quase o mesmo número da audiência. Tentou-se fazer um arremedo de debate, mas o que ficou foi um papo-aranha vazio e inútil, dissimulado, sem foco, e para piorar, em um pedante tom intelectualóide, cuja reprodução aqui é totalmente descartável, mas que se arrastou inutilmente por um tempo que pareceu longuíssimo, sem que ninguém desse uma no fio da meada, parecendo até que não se sabia mais sobre o que se estava falando, até que Rubens Espírito Santo, talvez prevendo o abandono do local pelo pequeno público, chamou todo mundo para tomar uma cerveja no bar da esquina. 

           Qual a impressão que fica? A última ou a primeira?

 

12 Respostas to “Lições de um “fiasco””


  1. 1 MACADDEN 15/12/2009 às 23:38

    SE ENCHERMOS A BARRIGA DE COMIDA COM CERTEZA UMA HORA A CAGAREMOS,MAS PARECE-ME QUE OS ENTUSIASTAS CA CAGANA(QUERO DIZER CABANA)ANUNCIARÃO UMA TREMENDA CAGAÇÃO E SUBIRAM NO RINGUE(RINGUE?)
    DE BARRIGA BEM VAZIA,E AQUELES QUE LA ESTAVAM PARA SENTIR A COISA FEDER FORAM PRA CASA SEM NEM MESMO UM PEIDOSINHO(TUDO NO BOM SENTIDO É CRARO)

  2. 3 Piero Chiaretti 15/12/2009 às 23:55

    Me impressiona, André, não haver sequer menção acerca da parte final do debate, na qual se tangeu (não discutiu, só tangeu) uma questão que, para mim (no meu entendimento reconhecidamente pobre), só pode estar no âmago da Cabana – a do ‘não dito’, na discussão. Talvez RES e Flávia travassem um diálogo ‘não dito’ naquele momento que era de comunhão-conspiração, acompanhado de um julgamento negativo dos que humildemente tentavam contribuir; isso teria sido causa para constrangimento dos que adentraram o ringue. Na minha condição de ‘desbravador’ (devo acrescentar que fui intimado por RES a entrar no ringue no momento em que fui incapaz de conter um comentário) do ringue em seu estado inicial, posso afirmar que o que senti (e só muito ‘de leve’) foi um estado de comunhão bastante avançado entre Flávia e RES, e os pensamentos de um no outro. É claro para mim que tal estado implica numa atitude para com o mundo que é somente afirmativa – cujos julgamentos, mais do que ‘tentar ver o lado bom das coisas’, se convertem em provocações e intimações para que aflore aquilo que há de melhor em todos – de forma que me senti deslocado dentro do ringue, e por isso muito, muito bem. Espero que assim tenham se sentido os outros que tiveram coragem de não conter suas manifestações.

    Esse meu comentário à sua crítica do que ocorreu vem de um lugar de afirmação da natureza de não-espetáculo daquele evento. Não adianta tentar (na minha modesta opinião) esquadrinhar o que aconteceu durante o suposto ‘debate’ de acordo com parâmetros críticos fixados por quem quer que seja – na medida em que só a abertura para a apreensão da totalidade da experiência que se deu ali (e se dá em certos momentos cabanescos) irá instrumentalizar alguém para o seu entendimento.

    Posso fornecer uma visão mais concreta (através de exemplos) em uma conversa face-a-face, que ficamos de travar um dia desses. Fiquei hoje em casa, justamente por um fraquejar nessa abertura, e não fui à cabana. Por isso também admito que talvez só uma conversa elucide seu ponto de vista completamente.

    • 4 diariodacabana 16/12/2009 às 13:03

      Atesto, como testemunha, a verdade de tudo quanto é dito por você neste seu comentário, destacando especialmente a fidelidade da descrição da maneira pela qual sua pessoa entrou no ringue, ou seja, que em momento algum você tomou a iniciativa de subir ao ringue, mas que foi chamado. Peço-lhe o favor de ler a postagem de hoje (LIÇÕES DE UM FIASCO – O RESGATE), que responde melhor do que eu posso fazê-lo. Aliás, observações feitas por você neste comentário antecipam a postagem, no que devo reconhecer que a sua “sintonia”, afinal, estava bem maior do que a minha.

  3. 5 PR! 16/12/2009 às 1:14

    cheguei na parte da cerveja
    que estava geladíssima por sinal…

  4. 7 della franccesca kid 17/12/2009 às 10:04

    tenho duas observações à fazer:

    1 vão tomar refresco no shopping, suas andorinhas de final de estação!

    2 vai piero, sacode o moicano! (e lance tuas verdades para além do alvo de palha!)

    parabéns à quem permaneceu na cabana ontem após a palestra, muito legal por sinal, pero…
    abraços à todos!
    peter

  5. 8 della franccesca kid 17/12/2009 às 10:14

    ps. 2: …continue lançando (piero)!

    e 3:
    vai falacho! acredita no esculacho [remix]!

    ontem foi foda people
    abraço!

    cabana:
    nesse filosófico agito 24hs, quero vê quem tem coragem pra suportar o embate, e quem tem cara de pau, pra rir em pleno combate!

    paz, amor e dedo no cú de quem gostar!

  6. 10 pedro 19/12/2009 às 19:56

    chamar o machado de assis de bruxo do cosme velho é muito, muito, muito clichê.
    menos maneirismos, colega. dá o recado e vaza. abz, pedro

  7. 11 della franccesca kid 20/12/2009 às 5:42

    rsrsrsrsrsr

    tá foda cara,
    mas me deixei contigiar pelo relatórios que estão rolando, que fazem com que a cabana, vista de fora, pareça com um big brother.

    tento, tento lê-lo de outro jeito,
    mas parece q o pedro bial vai chegar a qualquer momento p

    haha
    abraços à todos!

  8. 12 della kid 20/12/2009 às 5:47

    rsrsrsrsrsr

    tá foda cara,
    mas me deixei contigiar pelo relatórios big brother.

    tento, tento lê-lo de outro jeito,
    mas parece q o pedro bial vai chegar a qualquer momento

    abraços à todos!
    falacho a gente te ama!!!!!!

    ps.: sorry aí não entrar na questão em palta (abacate, hehehehehe)


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