Apêndice [do livro Jogo Arriscado]

CONHECENDO MELHOR A ASSISTÊNCIA SOCIAL PÚBLICA BRASILEIRA

Apanhado legal

Para esclarecer o que quer exatamente a Assistência Social no Brasil, especificamente com a criação do CREAS, iniciaremos pela mais fundamental de suas leis, a LOAS.

LOAS é a Lei Orgânica da Assistência Social (Lei nº 8.742 de 07 de dezembro de 1993) que dá ao Brasil, desde então, as diretrizes básicas de sua política assistencial, estabelecendo os fundamentos perenes nos quais toda iniciativa futura nesse campo deve se alicerçar. A partir da LOAS, poderemos entender melhor as regulamentações subsequentes – NOB, PNAS, Guia de Orientação nº1 – que dizem respeito diretamente ao trabalho do CREAS. 

Tecnicamente, a LOAS define a Assistência Social como “uma política de Seguridade Social não-contributiva“, isto é, uma iniciativa pública que promove investimento social independentemente de exigências de rentabilidade econômica e/ou retorno financeiro, constituindo-se assim um direito gratuito do cidadão cujo cumprimento, para o Estado, é exclusivo dever. Em outras palavras: na política de Assistência Social, ao Estado cabe dar, sem receber.

Esta definição técnica simples, algo óbvia, é contudo fundamental para a Assistência Social, já que esta tem como beneficiários os desamparados socialmente, que são, por via de regra, os desprovidos de recursos materiais e financeiros para suas necessidades básicas, portanto carentes de proteção de seus direitos sociais. Tanto é assim que a LOAS afirma, logo no seu primeiro capítulo, intitulado “DAS DEFINIÇÕES E DOS OBJETIVOS”, que a política de Assistência Social realiza-se “através de um conjunto integrado de ações de iniciativa pública e da sociedade para garantir o atendimento às necessidades básicas“. Ora, é evidente que os beneficiários da Assistência Social, sendo assim carentes em necessidades básicas, são também incapazes de contribuir efetivamente para os fundos financeiros estatais de Seguridade Social tipo “Previdência Social” (embora mesmo assim o façam, ainda que indiretamente, através dos impostos embutidos em todas as coisas, como comida e vestuário), e portanto necessitam de tal política de Seguridade Social não-contributiva, a qual não lhes constitui favor, mas direito de cidadania.

O segundo capítulo da LOAS intitula-se “DOS PRINCÍPIOS E DAS DIRETRIZES”. Aqui vemos que o princípio fundamental que rege a Assistência Social é basicamente este: manter, na dedicação permanente à causa da universalização dos direitos sociais entre a população, o respeito absoluto aos direitos do cidadão, à sua dignidade e à sua autonomia.

            Já quanto às diretrizes de trabalho, a LOAS determina que a Assistência Social reger-se-á pela descentralização político-administrativa (delegação de poder e responsabilidade aos estados e municípios), pela participação da população na formulação das políticas e no controle das ações em todos os níveis (por meio de organizações representativas) e, finalmente, pela primazia da responsabilidade do Estado na condução da política assistencial (nas suas respectivas esferas: federal, estadual e municipal). 

            O capítulo terceiro da lei fala “DA ORGANIZAÇÃO E DA GESTÃO”. Aqui retoma-se que o sistema de organização da Assistência Social é “descentralizado e participativo“, para depois detalhá-lo, basicamente, da seguinte forma:

            – a instância coordenadora da Política Nacional de Assistência Social (PNAS) é um órgão administrativo federal constituído ad hoc, ou seja, um Ministério especificamente constituído para isso. Atualmente esse órgão é o Ministério do Desenvolvimento Social e do Combate à Fome (MDS), o qual conta com uma secretaria exclusiva, a SNAS – Secretaria Nacional de Assistência Social

– a instância superior deliberativa da Assistência Social é o Conselho Nacional de Assistência Social (CNAS), colegiado de 18 membros a quem compete aprovar a PNAS, fixar normas e regular de modo geral a prestação de serviços assistenciais em âmbito nacional, sejam eles estatais ou privados. Os 18 membros (9 representantes governamentais e 9 representantes da sociedade civil) são indicados pelo órgão coordenador da PNAS (atualmente o MDS) e nomeados pelo presidente da República. O CNAS é presidido por um de seus integrantes, eleito dentre seus membros para mandato de até 2 anos.

– Correlativamente ao CNAS, mas em âmbito estadual e municipal, ficam estabelecidas duas outras instâncias deliberativas de caráter permanente e composição paritária entre governo e sociedade civil: os Conselhos Estaduais de Assistência Social (CEAS) e os Conselhos Municipais de Assistência Social (CMAS).

– Fica instituído, para financiamento da política de Assistência Social, o Fundo Nacional da Assistência Social (FNAS, regulamentado anos depois pelo Decreto nº1.605 de 1995, alterado pelo Decreto nº2.298 de 1997).

– Fica regulamentado o BPC (BENEFÍCIO de PRESTAÇÃO CONTINUADA), previsto pela Constituição Federal de 1988, como garantia de um salário mínimo mensal às pessoas com deficiência (pessoas “incapacitadas para a vida independente e para o trabalho“, segundo definição da LOAS) e aos idosos com 70 anos ou mais, que “comprovem não ter meios de prover a própria manutenção e nem de tê-la provida por sua família“; assim como ficam regulamentados os BENEFÍCIOS EVENTUAIS, que constituem auxílio pontual em casos de natalidade ou morte para “as famílias cuja renda mensal per capita seja inferior a ¼ do salário mínimo” (a LOAS não especifica o valor dos assim chamados “Benefícios Eventuais”, deixando a cargo dos Conselhos de Assistência Social estaduais e municipais defini-lo, de acordo com as necessidades e possibilidades locais).

Em linhas bem gerais, é assim que a LOAS estrutura a Assistência Social, a qual compõe então, desde a Constituição Brasileira de 1988, o tripé da assim chamada Seguridade Social, junto com a Saúde e a Previdência Social.

 Mas o que vem a ser exatamente esta tal Seguridade Social? Nada melhor do que ouvir o que diz a própria Carta Magna do Brasil, a qual em seu art. 194 proclama que “A seguridade social compreende um conjunto integrado de ações de iniciativa dos Poderes Públicos e da sociedade, destinadas a assegurar os direitos relativos à saúde, à previdência e à assistência social“. Em outras palavras: Seguridade Social é a integração dessas três políticas “de segurança social” – Saúde, Previdência e Assistência – no que elas tem em comum no tocante à responsabilidade de garantir direitos básicos da população.

Adentrando um pouco mais, podemos dizer que esse tripé “de segurança social” visa a garantir minimamente a inclusão e a permanência dos cidadãos no mais genérico Sistema de Bem-Estar Social brasileiro, o qual seria enfim a grande articulação de todas as políticas sociais: Cultura, Esporte, Lazer, Educação, Emprego, Habitação, Saneamento etc. Mencionamos isto também para fazer notar que Saúde, Previdência e Assistência Social, enquanto políticas “de segurança” social, dever ser tidas como anteriores em necessidade às demais políticas do Sistema de Bem-Estar Social, já que certamente são requisitos indispensáveis para usufruir deste sistema as situações de [1] o cidadão estar vivo e saudável (encargo da Saúde), [2] incluso na sociedade (encargo da Assistência Social) e [3] com alguma previsão de futuro (encargo da Previdência Social). Afinal, que bem-estar poderia ter alguém doente (responsabilidade da Saúde…), rejeitado e desamparado (responsabilidade da Assistência Social…) e sem outra perspectiva certa senão a de não ter onde cair morto (responsabilidade da Previdência Social…)?

Bem-aventurados os pobres em espírito, porque deles é o Reino dos céus… Bem-aventurados os que têm fome e sede de justiça, porque serão saciados… Bem-aventurados os que choram, porque serão consoladosBem-aventurados os perseguidos por causa da justiça, porque deles é o Reino dos céus… “, poderia responder Cristo manso e pleno de calorosa esperança, mas aí extrapolar-se-ia o âmbito constitucional recorrendo-se à salvação divina, o que significaria trocar política por religião, o que não é o caso, muito pelo contrário: o caminho da Assistência moderna é trocar religião por política, teologia por sociologia – como já dissemos, o assistente social é um técnico, não um catequista.

Aliás, a importância política e social da Constituição de 1988 para o Brasil e, no nosso caso em especial, para a Assistência Social é tamanha que, antes de qualquer comentário adicional, convém recorrermos primeiro ao texto original (que, em se tratando de garantias constitucionais no Brasil e tendo em vista a nossa história de esquecimento, nunca é demais propagar):

CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL,

Título VIII (Da Ordem Social), Capítulo II (Da Seguridade Social), Seção IV (DA ASSISTÊNCIA SOCIAL):

Art. 203. A assistência social será prestada a quem dela necessitar, independentemente de contribuição à seguridade social, e tem por objetivos:

I – A proteção à família, à maternidade, à infância, à adolescência e à velhice;

II – O amparo às crianças e adolescentes carentes;

III – A promoção da integração ao mercado de trabalho;

IV – A habilitação e a reabilitação das pessoas portadoras de deficiência e a promoção de sua integração à vida comunitária;

V – A garantia de um salário mínimo de benefício mensal à pessoa portadora de deficiência e ao idoso que comprovem não possuir meios  de prover à própria manutenção ou de tê-la provida por sua família, conforme dispuser a lei.

Art. 204. As ações governamentais na área da assistência social serão realizadas com recursos do orçamento da seguridade social, previstos no art. 195, além de outras fontes, e organizadas com base nas seguintes diretrizes:

I – descentralização político-administrativa, cabendo a coordenação e as normas gerais à esfera federal e a coordenação e a execução dos respectivos programas às esferas estadual e municipal, bem como a entidades beneficentes e de assistência social;

II – participação da população, por meio de organizações representativas, na formulação das políticas e no controle das ações em todos os níveis

Título VIII (Da Ordem Social), Capítulo VII (Da Família, da Criança, do Adolescente e do Idosol)

Art. 226. A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado.

§ 8º O Estado assegurará a assistência à família na pessoa de cada um dos que a integram, criando mecanismos para coibir a violência no âmbito de suas relações.

Contemplando tais artigos, o leitor pode perceber facilmente que a Carta Magna de 1988 é, de fato, a pedra fundamental da Assistência Social pública no Brasil e grande fonte de sua Lei Orgânica (LOAS), bem como da NOB e da PNAS, desdobramentos posteriores que serão vistos brevemente nos próximos capítulos.

Quanto à LOAS especificamente, podemos encerrar nossos comentários chamando a atenção para o artigo de número dez, o qual determina expressamente que “A União, os Estados, os Municípios e o Distrito Federal podem celebrar convênios com entidades e organizações de assistência social, em conformidade com os Planos aprovados pelos respectivos Conselhos“, o que confere, decerto, grande relevância política ao papel dos Conselhos, na medida em que seus participantes podem intervir diretamente no debate de elaboração dos Planos (projetos próprios de cada estado, cada município ou – no caso do Conselho Nacional – do país inteiro), os quais, ao coordenarem o trabalho assistencial público e privado no sentido de colaboração em prol do cumprimento de metas comuns, definem parcerias entre governo e sociedade civil.

Imbuídos assim deste poder de elaborar seus próprios Planos, os Conselhos em suas respectivas esferas (nacional, estadual, municipal), além de se constituírem, por natureza, organizações representativas legitimadas a exercer o controle social das ações do poder público na área da Assistência Social, tornam-se, outrossim, espaços próprios para o exercício do debate político legítimo sobre direcionamento de esforços e destacamento de recursos, o que interessa diretamente a todos os atores envolvidos no trabalho assistencial, sejam eles prestadores de serviços ou beneficiários.

Depois da pedra fundamental da Constituição de 1988 e da grande Lei Orgânica de 1993 (LOAS), importante normatização seguinte foi a Norma Operacional Básica da Assistência Social (NOB), resolução de 1998 do Conselho Nacional de Assistência Social (CNAS), de caráter mais técnico-administrativo. A NOB legislou principalmente sobre a gestão quadripartite da Assistência Social, disciplinando a política de descentralização, o financiamento e a relação dos três níveis de governo entre si e destes com a sociedade civil (é a soma desta última às três esferas de governo que eleva a gestão de “tripartite” para “quadripartite”, como se vê). Por isso mesmo encontramos como lema da NOB, em seu subtítulo, em letras garrafais, justamente “Avançando para a construção do Sistema Descentralizado e Participativo de Assistência Social“.

Nesse ensejo, uma das contribuições da NOB foi definir expressamente, de acordo com o princípio – já estabelecido na LOAS – de “comando único na gestão das ações em cada esfera de governo“, os papéis exatos dos gestores-chefes responsáveis pelo comando das políticas assistenciais em suas respectivas esferas de governo, ou seja, as funções próprias dos Chefes das Secretarias de Assistência Social do governo federal, dos estados e das prefeituras. Do mesmo modo, definiu expressamente, item por item, as funções dos Conselhos de Assistência Social em seus respectivos níveis: federal, estadual e municipal.

Finalmente, especificou – e isto agora diz respeito mais diretamente ao trabalho cotidiano dos assistentes sociais –  quais são exatamente os grupos populacionais que, para além do público geral de excluídos da cobertura social básica, devem ter prioridade de atendimento pela política de Assistência Social, a saber, os que apresentam uma ou mais das situações descritas nos itens abaixo, reproduzidos literalmente:

a) condições de vulnerabilidade próprias dos ciclos de vida, que ocorrem, predominantemente, em crianças de zero a cinco anos e em idosos acima de sessenta anos;

b)  condições de desvantagem pessoal resultantes de deficiências ou de incapacidades, que limitem ou impeçam o indivíduo no desempenho de uma atividade considerada normal para sua idade e sexo, face ao contexto sociocultural no qual se insere;

 c) situações circunstanciais e conjunturais como abuso e exploração comercial sexual infanto-juvenil, trabalho infanto-juvenil, moradores de rua, migrantes, dependentes do uso e vítimas da exploração comercial das drogas, crianças e adolescentes vítimas de abandono e desagregação familiar, crianças, idosos e mulheres vítimas de maus tratos.

 No atendimento de todo esse público, seja geral ou preferencial, a NOB prescreve quatro funções interligadas e complementares a serem desempenhadas pela política de Assistência Social:

a) Inserção (inclusão nas políticas sociais básicas de acesso a bens, serviços e direitos)

            b) Prevenção (manutenção de apoio preventivo nas situações de vulnerabilidade)

            c) Promoção (ganho de cidadania através da promoção de igualdade de direitos)

            d) Proteção (redistribuição direta e indireta de renda às populações excluídas e vulneráveis) 

Essas quatro funções seriam postas em prática por intermédio dos seguintes instrumentes operacionais:

  1. Benefício de Prestação Continuada (BPC): renda permanente (já prevista na Constituição e regulamentada pela LOAS, conforme visto no capítulo anterior) para idosos e deficientes sem condições de sustento próprio ou pela família; 
  2. Benefícios eventuais: aportes pontuais (também já regulamentados pela LOAS) para casos de natalidade e morte em famílias sem condições de sustento;
  3. Serviços Assistenciais: conforme prescritos pela LOAS, ou seja, serviços de atendimento às demandas referentes a necessidades básicas, exercício da cidadania e garantia de direitos; 
  4. Programas: aplicação de projetos com objetivos, tempo e área definidos para qualificar, incentivar e melhorar os benefícios e os serviços assistenciais;
  5. Projetos de Enfrentamento da Pobreza: subsídio às iniciativas de melhoria das condições gerais de subsistência, elevação da qualidade de vida, preservação do meio ambiente e organização social.

Esses são, de relance, os pontos mais destacados da NOB de 1998. Acrescentem-se a eles certos elementos próprios assumidos desde então como Diretrizes da Política Nacional de Assistência Social, que não se viam discriminados desse modo na LOAS, como por exemplo “Mudança de enfoque da avaliação centrada no processo burocrático para a avaliação de resultados da Política de Assistência Social“; “Fomento às ações que contribuam para a geração de renda” e “Estímulo às ações que promovam integração familiar e comunitária, para a construção da identidade pessoal e convivência social do destinatário da assistência social”.

De resto, a NOB constitui-se texto essencialmente técnico, concernente mais à gestão administrativa da máquina assistencial, cujo estudo está além das pretensões do presente trabalho.

Depois da NOB de 1998, veio a – mais importante ainda – Política Nacional de Assistência Social (PNAS), apresentada finalmente pelo Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS) e sua Secretaria Nacional de Assistência Social (SNAS) em julho de 2004, e aprovada pelo Conselho Nacional de Assistência Social (CNAS) em setembro do mesmo ano. Trata-se, pois, do Plano do governo federal para a área, estando ainda em vigor quando da elaboração deste livro (ano de 2010, o que dá à PNAS, pelo menos até aqui, 6 anos de vigência, e provavelmente mais 4, com a reeleição da situação no nível federal).

Em sua apresentação, a PNAS foi anunciada como “compromisso do MDS/SNAS e do CNAS em materializar as diretrizes da Lei Orgânica da Assistência Social – LOAS“. Ou seja: pôr em prática a Lei de 1993. 

Não obstante a obrigação óbvia de respeitar e aplicar a LOAS, a PNAS de 2004 contém importantes particularidades. Seu foco foi a implementação do SUAS – Sistema Único de Assistência Social.

A PNAS afirma expressamente que o SUAS “materializa o conteúdo da LOAS“. Nisto não demonstra semelhança em relação à NOB de 1998, que intentava a mesma coisa; notamos porém que, enquanto a NOB constitui, principalmente, um instrumento regulamentador da gestão administrativa quadripartite da Assistência Social, o SUAS, tal como instituído pela PNAS, avança especialmente na organização dos serviços prestados à população, definindo e estruturando cada qual de acordo com sua função, público-alvo e grau de complexidade. É neste sentido que os serviços socioassistenciais, com o advento do SUAS, tornam-se “referenciados”, ou seja, organizados e qualificados segundo determinadas referências, ou, se se preferir, “em referência” a determinadas especificidades (de natureza, função e demanda) do serviço.   

Com efeito, as primeiras “referências” gerais segundo as quais esses serviços passam a se organizar são de natureza funcional, comportando três qualificações: vigilância social, defesa social e proteção social (esta última, como veremos, mais estreitamente ligada ao CREAS).

Por vigilância social entendem-se os serviços de produção e sistematização de informações e dados a fim de constituir indicadores que permitam mapear e acompanhar a situação social no território e sociedade brasileiros ao longo do tempo, permitindo identificar focos de vulnerabilidade social nos espaços geográficos e camadas/grupos sociais, visando ao direcionamento e otimização das iniciativas públicas assistenciais.

Por defesa social entendem-se os serviços de garantia de direitos e difusão de seu conhecimento entre a população. A PNAS especifica expressamente os direitos assegurados aos usuários do SUAS, a saber:

– Direito ao atendimento digno, atencioso e respeitoso, ausente de procedimentos vexatórios e coercitivos.

– Direito ao tempo, de modo a acessar a rede de serviço com reduzida espera e de acordo com a necessidade.

– Direito à informação, enquanto direito primário do cidadão, sobretudo àqueles com vivência de barreiras culturais, de leitura, de limitações físicas.

– Direito do usuário ao protagonismo e manifestação de seus interesses.

– Direito do usuário à oferta qualificada de serviço.

– Direito de convivência familiar e comunitária.

            Enfim, por proteção social entendem-se os serviços considerados propriamente “de segurança social”, a saber: segurança de sobrevivência (isto é, segurança de sustento do cidadão em necessidades essenciais como comida, vestes e abrigo); segurança de acolhida (segurança de abrigamento do cidadão em caso de necessidade de sua separação da família ou parentela) e segurança de convívio (segurança de relacionamento social, especialmente convivência familiar, assistindo o cidadão em casos de perda/rompimento de relações familiares e/ou sociais).

            A PNAS institui também que, no SUAS, esses serviços de proteção social (sobrevivência, acolhida e convívio) se subdividem em proteção social básica e proteção social especial.        

A proteção social básica constitui-se serviço de PREVENÇÃO destinado “à população que vive em situação de vulnerabilidade social“, isto é, em condições tais (p. ex. privação contínua em decorrência da pobreza, aliada a discriminações sociais) que exponham os indivíduos à deterioração de seus vínculos afetivos familiares e de pertencimento social.

Os serviços oferecidos pela proteção social básica a esta população em situação de vulnerabilidade social são, em linhas gerais, ações de “acolhimento, convivência e socialização de famílias e de indivíduos, conforme identificação da situação de vulnerabilidade apresentada“, por meio de programas e projetos que promovam o “desenvolvimento de potencialidades e aquisições, e o fortalecimento de vínculos familiares e comunitários“, tendo por fim “a conquista da autonomia na provisão dessas necessidades básicas” por parte da população. 

A PNAS define que a aplicação dessas medidas de proteção social básica está a cargo dos CRAS (Centros de Referência da Assistência Social), unidades públicas estatais de base territorial, localizadas em áreas de vulnerabilidade social. Assim, os CRAS são legitimamente chamados Centros “de Referência” por prestarem serviços cuja “referência” (no caso, serviços de “Proteção Social Básica”) está definida expressamente pela PNAS de acordo com sua determinada função, público-alvo e grau de complexidade. Por isso, quando se faz, no dia a dia dos CRAS (e também dos CREAS, como veremos), o dito “referenciamento” dos usuários do serviço, o que se faz teoricamente é colocá-los em referência a um determinado tipo de serviço (p. exp. “Proteção Social/segurança de sobrevivência” ou “Proteção Social/segurança de convívio + Defesa Social/orientação sobre direitos”, com subdivisões como, p. exp., “inclusão no BPC” ou “atendimento familiar coletivo”). Claro que, na prática, os referenciamentos são muito mais peculiares, menos engessados em categorias preestabelecidas, pois cabe ao técnico analisar a situação particular de cada usuário e os encaminhamentos necessários, não somente de acordo com a lei abstrata, mas com a realidade concreta do cidadão – e a realidade, como sabemos, é complexa.  

Em Ferraz de Vasconcelos há 4 unidades CRAS, uma delas inclusive no prédio do CIC (Centro de Integração da Cidadania), o qual, como vimos, é um importante equipamento de atendimento do governo estadual paulista, que centraliza diversos serviços públicos à população carente, e no qual também fica o CREAS da Prefeitura de Ferraz.

Mas qual afinal é a diferença entre CRAS e CREAS? Ora, o leitor já deve ter adivinhado que, enquanto o CRAS é a unidade de atendimento própria da proteção social básica, o CREAS o é da proteção social especial, como se vê no próprio nome: Centro de Referência Especializado em Assistência Social.

Vejamos, pois, o que é a proteção social especial:

A proteção social especial é a modalidade de atendimento assistencial destinada a famílias e indivíduos que se encontram em situação de risco pessoal e social, por ocorrência de [1] abandono, [2] maus tratos físicos e/ou psíquicos, [3] abuso sexual, [4] uso de substâncias psicoativas, [5] cumprimento de medidas socioeducativas, [6] situação de rua, [7] situação de trabalho infantil, entre outras“. Este “entre outras” envolverá, certamente, qualquer situação de risco agravada cuja assistência requeira maior estruturação técnico-operacional e maior potencial de atenção especial no atendimento, por meio de “acompanhamentos individuais“, “encaminhamentos monitorados“, “flexibilidade nas soluções protetivas” e “uma gestão mais complexa e compartilhada com o Poder Judiciário, Ministério Público e outros órgãos e ações do executivo” (entre estas, a PNAS destaca o Programa de Erradicação do Trabalho Infantil e o Programa de Combate à Exploração Sexual de Crianças e Adolescentes). Em outras palavras: a proteção social especial é serviço de assistência social complexo destinado aos cidadãos que, para além da situação risco, já sofreram efetivamente danos pessoais num quadro de desagregação familiar-social, e que por isso requerem um atendimento especializado.

 Na PNAS, a proteção social especial é referenciada em dois graus de complexidade: médio e alto.

A proteção social especial de média complexidade oferece atendimento “às famílias e indivíduos com seus direitos violados, mas cujos vínculos familiar e comunitário não foram  rompidos“. Vale dizer que CREAS é o equipamento público de proteção social especial de média complexidade por excelência.

Assim, sobre o tipo de serviço que o CREAS oferece, diz a PNAS expressamente que “difere-se da proteção básica por se tratar de um atendimento dirigido às situações de violação de direitos“. Assim, se o CRAS atende situações de “vulnerabilidade social“, o CREAS o faz nos casos em que, para além da vulnerabilidade social, há também efetiva “violação de direitos“.

Já a proteção social especial de alta complexidade – que extrapola a competência do CREAS – oferece acolhimento total “para famílias e indivíduos que se encontram sem referência e/ou situação de ameaça, necessitando ser retirados de seu núcleo familiar e/ou comunitário“, aos quais garante “proteção integral: moradia, alimentação, higienização e trabalho protegido“. A proteção especial de alta complexidade, que age nos casos em que os vínculos sociais/familiares foram rompidos de modo determinante, é realizada pelos abrigos, asilos, orfanatos, albergues, casas de passagem, famílias substitutas, famílias acolhedoras etc.

Em linhas bem gerais, é assim que a PNAS organizou, a partir de 2004, os serviços assistenciais no Brasil, por meio da instituição do Sistema Único de Assistência Social – SUAS. Esperamos ter demonstrado que, nesse sistema, o CREAS está no nível de serviço – Proteção Social Especial de Média Complexidade – que abrange desagregação social/familiar agravada por situações de ameaça e violação de direitos, mas não a ponto de assumir a manutenção integral da vida dos usuários vitimados, o que fica a cargo de entidades assistenciais mais complexas, como abrigos e afins (capacitados a ofertar os serviços de Proteção Social Especial de Alta Complexidade).

            Todavia, o novo modelo de serviços instituído pela PNAS de 2004 exigia um modelo de gestão da Assistência Social também novo. Neste sentido foi publicada, já em 2005, a NOB/SUAS – Norma Operacional Básica do Sistema Único da Assistência Social, instrumento disciplinador e operacionalizador específico para o novo sistema.

A NOB/SUAS de 2005 substituiu, portanto, a antiga NOB de 1998. Não obstante, reconheceu certa continuidade, conforme literalmente:

A presente Norma Operacional Básica (NOB/SUAS) retoma as normas operacionais de 1997 e 1998 e constitui o mais novo instrumento de regulação dos conteúdos e definições da Política Nacional de Assistência Social (PNAS/2004) que parametram o funcionamento do SUAS[1].

Esse “retomar” se dá no sentido de aperfeiçoar, em vista da implementação do SUAS, o sistema descentralizado e participativo de gestão já conceituado nas NOBs anteriores. Não à toa, o subtítulo da NOB/SUAS é justamente “construindo as bases para a implantação do Sistema Único de Assistência Social“. Na construção dessas bases, a NOB/SUAS opera uma revisão geral do sistema de gestão da Assistência Social, revisão feita “sob a égide de construção do SUAS, abordando, dentre outras coisas: a divisão de competências e responsabilidades entre as três esferas de governo; os níveis de gestão de cada uma dessas esferas; as instâncias que compõem o processo de gestão e controle dessa política e como elas se relacionam; a nova relação com as entidades e organizações governamentais e não governamentais; os principais instrumentos de gestão a serem utilizados; e a forma de gestão financeira, que considera os mecanismos de transferência, os critérios de partilha e de transferência de recursos[2]. Como se vê, a NOB/SUAS-2005 é documento imprescindível para quem quiser entender a atual Política de Assistência Social e a gestão e o funcionamento do SUAS, ou seja: quem quiser prestar concurso público na área da Assistência social deve estudar, hoje, a NOB/SUAS de 2005, não a NOB de 1998, e acompanhar as atualizações da legislação.

Melhor ainda se puder estudar também a Norma Operacional Básica de Recursos Humanos do SUAS – NOB-RH/SUAS, publicada em 2006, onde o interessado em adentrar na área profissional da Assistência encontrará coisas muito interessantes como:

* Plano de Carreira, Cargos e Salários dos trabalhadores da Assistência Social;  

* Composição do quadro de funcionários exigido em cada tipo de serviço;

* Especificação das responsabilidades e atribuições dos gestores federais, estaduais e municipais do SUAS;

* Princípios éticos para os trabalhadores da área de Assistência Social (sejam assistentes sociais, sejam educadores, psicólogos, cuidadores, advogados etc.)

Aliás, não custa nada transcrevê-los:

São princípios éticos que orientam a intervenção dos profissionais da área de assistência social:

  1. Defesa intransigente dos direitos socioassistenciais;
  2. Compromisso em ofertar serviços, programas, projetos e benefícios de qualidade que garantam a oportunidade de convívio para o fortalecimento de laços familiares e sociais;
  3. Promoção aos usuários do acesso à informação, garantindo conhecer o nome e a credencial de quem os atende;
  4. Proteção à privacidade dos usuários, observado o sigilo profissional, preservando sua privacidade e opção e resgatando sua história de vida;
  5. Compromisso em garantir atenção profissional direcionada para construção de projetos pessoais e sociais para autonomia e sustentabilidade;
  6. Reconhecimento do direito dos usuários a ter acesso a benefícios e renda e a programas de oportunidades para inserção profissional e social;
  7. Incentivo aos usuários para que estes exerçam seu direito de participar de fóruns, conselhos, movimentos sociais e cooperativas populares de produção;
  8. Garantia do acesso da população a política de assistência social sem discriminação de qualquer natureza (gênero, raça/etnia, credo, orientação sexual, classe social,ou outras), resguardados os critérios de elegibilidade dos diferentes programas, projetos, serviços e benefícios;
  9. Devolução das informações colhidas nos estudos e pesquisas aos usuários, no sentido de que estes possam usá-las para o fortalecimento de seus interesses;
  10. Contribuição para a criação de mecanismos que venham desburocratizar a relação com os usuários, no sentido de agilizar e melhorar os serviços prestados.” 

Posto isso, chegamos finalmente ao Guia de Orientação Nº1 (1ª Versão), apresentado em 2008 pelo MDS/SNAS como instrumento norteador que diz respeito exclusivamente ao trabalho dos CREAS. Vejamo-lo sucintamente:

            Primeiro, antes de se dirigir diretamente ao seu objeto específico – o CREAS –, o Guia de Orientação Nº1 define que a proteção social especial, de modo geral (isto é, tanto de média como de alta complexidade), tem por direção:

            “a) proteger as vítimas de violência, agressões e as pessoas com contingências pessoais e sociais, de modo a que ampliem a sua capacidade para enfrentar com autonomia os revezes da vida pessoal e social;

            b) monitorar e reduzir a ocorrência de riscos, seu agravamento e sua reincidência;

            c) desenvolver ações para eliminação/redução da infringência aos direitos humanos e sociais.”  

            Indo adiante, o Guia afirma, sobre a proteção social especial, que “este campo de proteção na assistência social se ocupa das situações pessoais e familiares com ocorrência de contingências/vitimizações e agressões, cujo nível de agravamento determina seu padrão de atenção“.

            Chegando especificamente ao CREAS, determina o Guia expressamente que “o Centro de Referência Especializado de Assistência Social – CREAS, como integrante do Sistema Único de Assistência Social (SUAS), deve se constituir pólo de referência, coordenador e articulador da proteção especial de média complexidade, sendo responsável pela oferta de orientação e apoio especializados e continuados de assistência social a indivíduos e famílias com seus direitos violados, mas sem rompimento de vínculos. […] Nesta perspectiva, o CREAS deve articular os serviços de média complexidade e operar a referência e contra-referência com a rede de serviços socioassistenciais da proteção básica e especial, com as demais políticas públicas e demais instituições que compõem o Sistema de Garantia de Direitos e movimentos sociais. Para tanto, é importante estabelecer mecanismos de articulação permanente, como reuniões, encontros e outras instâncias para discussão, acompanhamento e avaliação das ações, inclusive as intersetoriais.” (Note-se que, no assim chamado “Sistema de Garantia de Direitos”, o Guia Nº1 inclui expressamente “conselhos de defesa de direitos de criança e do adolescente e conselhos tutelares, instituições do Poder Judiciário (Vara da Infância e da Juventude); Ministério Público; Defensoria Pública; organizações da sociedade civil que atuam no campo de defesa e promoção dos direitos de crianças adolescentes (Centros de Defesa, fóruns de defesa de direitos, etc.“)   

            Quanto ao “Público Referenciado” ao CREAS, determina o Guia que “o CREAS deve ofertar atenções na ocorrência de situações de risco pessoal e social por ocorrência de negligência, abandono, ameaças, maus tratos, violência (física/psicológica/sexual), discriminações sociais e restrições à plena vida com autonomia e exercício de capacidades, prestando atendimento prioritário a crianças, adolescentes e suas famílias nas seguintes situações: crianças e adolescentes vítimas de abuso e exploração sexual; crianças e adolescentes vítimas de violência doméstica (física/psicológica/sexual/negligência) e adolescentes em cumprimento de medida socioeducativa de Liberdade Assistida (LA) e de Prestação de Serviços à Comunidade (PSC)“, entre outros. (Não se admira, pois, que o CREAS seja conhecido no CIC de Ferraz como o “setor da maldade“…)

            E quais ações deve o CREAS tomar com relação ao seu público referenciado? Eis o que diz o Guia Nº1 (resumidamente):

            1 – Acolhida e escuta individual voltada para a identificação de necessidades de indivíduos e famílias;

            2 – Referenciamento e acompanhamento de situações de violação de direitos, vitimizações e agressões;

            3 –   Atendimento psicossocial individual e em grupos de usuários e suas famílias;

            4 – Orientação e encaminhamentos para a rede socioassistencial e de serviços especializados, garantindo análise e atendimento de requisições de órgãos do Poder Judiciário e dos Conselhos Tutelares;

            5  – Acompanhamento e controle da efetividade dos encaminhamentos realizados

            6  –   Realização de visitas domiciliares.

            7  –   Produção de materiais educativos como suporte aos serviços.

Eis, muito de relance, como o Guia Nº1 orienta o trabalho do CREAS, com o que esperamos ter esclarecido o leitor minimamente sobre as funções desta repartição pública, bem como algo sobre a  Assistência Social em geral.

*

Perfil do Usuários do CREAS de Ferraz

            Vejamos agora os usuários do CREAS de Ferraz, quem são essas pessoas que necessitam de seus serviços, como vão parar lá. 

            Basicamente, os casos de atendimento preferencial (crianças e adolescentes) dividem-se nas duas frentes gerais de trabalho: violação de direitos (os casos de abuso sexual, maus tratos etc.) ou medidas socioeducativas (os casos dos adolescentes que cumprem medidas de Liberdade Assistida e/ou Prestação de Serviços Comunitários). Assim, do total de casos prioritários atendidos desde a implementação do CREAS de Ferraz em 2006, até 2010, 74% foram de violação de direitos e 26% foram de medidas socioeducativas (ver gráfico 1).  

O atendimento à demanda de medidas socioeducativas iniciou-se em 2007, quando estas constituíam mais da metade dos casos (54%), mas desde então foi verificada uma vertiginosa tendência de crescimento das ocorrências de violação de direitos, fazendo com que as medidas socioeducativas chegassem a 2010 representando apenas 16% dos casos (ver gráfico 2).  

            Esse aumento da demanda de usuários em situação de violação de direitos ocorreu sobretudo devido à divulgação do serviço entre a população, através da distribuição de folders explicativos, participação em Conselhos Municipais de Direitos, contatos com a rede pública e terceiro setor (ONGs) e a realização de palestras em escolas e entidades sociais. Além disso, é possível que o próprio efeito “boca a boca” tenha contribuído para o conhecimento do equipamento pelo público ferrazense, mas isso naturalmente não pode ser medido.    

            Das violaçõesde direitos contra crianças e adolescentes, a mais recorrente em atendimento no CREAS é a de abuso sexual (38%), seguida de violência física (24%), negligência (22%), violência psicológica (14%) e exploração sexual (2%). (ver gráfico 3)

A maioria das vítimas de abuso sexual que chegam ao CREAS são meninas (83%) pertencentes à faixa etária dos 7 aos 14 anos (66%). Mais deprimente é constatar que a faixa de 0 a 6 anos (!) corresponde a elevadíssimos 26% dos casos. Só 8% das vítimas tem mais de 14 anos (ver gráficos 4 e 5).

Os agressores dessas vítimas são sempre homens (100%, ver gráfico 6), muitas vezes vizinhos e conhecidos da família da vítima ou desconhecidos, todos os quais perfazem os 47% indicados como “outros” no gráfico 7. Contudo, os agressores que tem vínculo familiar com a vítima perfazem os restantes 53%, mostrando que os casos de abuso sexual ocorrem frequentemente no âmbito doméstico. Nestes casos, o próprio pai (17%) e o padrasto (14%) são disparados os maiores abusadores, seguidos dos tios (6%), dos avôs (4%) e dos irmãos (4%); outros familiares (primos, cunhados etc.) somam 8% (ver gráfico 7).

Como esses casos, principalmente os ocorridos na intimidade da família, vão parar no CREAS? A título de exemplo, digamos que alguns dão-se mais ou menos assim: a criança que sofre o abuso permanece certo tempo sem ousar revelar o ocorrido, seja porque o agressor a ameaçou explicitamente com retaliações caso falasse, seja porque está confusa, seja porque teme ser culpada de prejudicar a família ao fazer a denúncia. De qualquer modo, a criança guarda o ocorrido como um segredo sufocante.

Em certo momento, porém, ao encontrar alguém que lhe inspire confiança, a criança vence o silêncio e faz a revelação, seja em casa, na escola ou outro lugar. A coisa chega aos ouvidos de um adulto, e logo o Conselho Tutelar é acionado. Este trata de tomar as medidas cabíveis, como acionar a polícia, enviar a vítima para exame pericial no Instituo Médico Legal e, dentre outras ações, encaminha a criança para acompanhamento no CREAS. Claro que este é só um exemplo entre incontáveis maneiras de surgimento de uma denúncia de abuso sexual.

Os casos de violência física, por sua vez, costumam chegar de forma diferente: por exemplo, na escola os professores notam marcas de espancamento na criança, ou os vizinhos ouvem reiteradamente gritos de fúria dos pais e de dor/desespero da criança na casa das vítimas, e então uma denúncia (anônima ou não) chega ao Conselho Tutelar, que aciona o CREAS.

            A idade das vítimas de violência física também é baixa, ainda que não tanto como as de violência sexual (ver gráfico 8). Já o gênero das vítimas é bem mais equilibrado (ver gráfico 9), e o vínculo com o agressor aponta especialmente para pai e mãe (ver gráfico 10). Ainda assim, os homens são, no geral, a maioria dos agressores (ver gráfico 11).

            Esses perfis alteram-se drasticamente nos casos de negligência, terceira mais recorrente forma de violação de direitos atendida no CREAS de Ferraz (ver gráfico 3). Aqui, pela primeira vez as vítimas são na sua maioria meninos (56%), embora em quase equilíbrio com o número de meninas (ver gráfico 12). E, se suas idades são relativamente parecidas com as das vítimas de violência física (ver gráfico 13), seus vínculos com os agressores são muito diferentes, assumindo preponderância a figura da mãe (ver gráfico 14), donde consequentemente, pela primeira vez, constatamos serem as mulheres a maioria dos responsáveis (ver gráfico 15).    

            O fato de as mães serem estatisticamente as maiores responsáveis por negligência de menores se deve, em geral, porque ou estas são as únicas responsáveis pelos filhos, estando separadas dos antigos companheiros ou abandonadas por estes, ou seus companheiros, pais ou padrastos das crianças e adolescentes são considerados meros provedores da renda familiar, não sendo considerados responsáveis pelos cuidados da prole.

            Os casos de negligência chegam ao CREAS porque houve, em determinado momento, uma denúncia contra os responsáveis pelas crianças, sustentada na constatação de que estas estariam, por exemplo, ficando sozinhas em casa (sem ter quem as cuide), ou andando o dia inteiro a esmo pelas ruas, às vezes pedindo dinheiro, ou indo à escola maltrapilhas, sujas e com fome.

            A quarta violação mais recorrente no CREAS de Ferraz é a violência psicológica, correspondendo a 14% do total (ver gráfico 3). Esta violação está comumente associada à ocorrência dos outros tipos, sendo descoberta geralmente durante o próprio atendimento no CREAS. Pode acontecer, também, desta violência surgir exclusiva, e nestes casos é geralmente a própria vítima quem procura alguém que a auxilie, que por sua vez faz a denúncia. 

            A violência psicológica consiste, de modo geral, em frequentes insultos, humilhações, ameaças e difamações. Os dados estatísticos sobre esta violação (ver gráficos 16, 17, 18, 19) acompanham as tendências da violência física, até porque sua ocorrência muitas vezes é concomitante.

            Enfim, há os casos de exploração sexual de crianças e adolescentes, que correspondem a 2% do total de casos atendidos pelo CREAS de Ferraz (ver gráfico 3). Esta violação tem estatísticas bem próprias: primeiro, todas as vítimas são do sexo feminino (ver gráfico 20), e não há nenhum caso registrado na faixa etária de 0 a 6 anos (ver gráfico 21). A exploração sexual infanto-juvenil implica no aliciamento, por parte de um adulto, de uma criança ou adolescente para prostituição; por isso, espanta saber que, em 43% dos casos atendidos, o próprio pai da vítima seja o explorador (ver gráfico 23).

De cada uma das violações contra crianças e adolescentes vistas até agora, vale destacar que foram obtidos, na presente pesquisa, dados sobre cor/raça das vítimas e escolaridade de vítimas e agressores. Estes dados não demonstraram diferenças notáveis entre os tipos de violação, e por isso fornecemo-los agora de modo totalizado:

Dentre estes três gráficos gerais sobre violação apresentados, o último sobre escolaridade (nº 26) destaca-se por apresentar uma importante informação sobre os usuários do CREAS de Ferraz: 77% dos agressores sequer chegaram ao colegial em sua vida escolar, afora os 4% que nem mesmo o Ensino Fundamental possuem, o que mostra o grau de precariedade social do público em geral, dado que a baixa escolaridade é um indicativo de baixo estrato social, e que a maioria desses agressores, pertencendo à família das vítimas (como visto nos gráficos sobre vínculos dos agressores com as vítimas), representam-nas.  .    

Por fim, além dos tipos de violação citados até agora, as crianças e adolescentes também têm seus direitos violentados pela prática de trabalho infanto-juvenil, cujos dados disponíveis seguem adiante:

Todavia, as violações de direitos ocorrem não só contra crianças e adolescentes. Também mulheres adultas, idosos e pessoas portadoras de deficiência de ambos os sexos são frequentemente atingidos. As mulheres são a maioria das vezes vítimas de agressão física, os idosos e deficientes, de negligência (ver gráficos 29, 30 e 31).  

Quanto às medidas socioeducativas (acompanhamento dos adolescentes em cumprimento de Liberdade Assistida e/ou Prestação de Serviços à Comunidade), os atendidos são adolescentes na sua grande maioria – a menor idade até hoje foi de 13 anos –, e alguns poucos maiores de idade, o que ocorre com os que cometeram o ato infracional quando ainda eram menores mas tiveram de continuar a cumprir a medida depois dos 18. Dos tipos de atos cometidos, destacam-se roubo, tráfico e furto (ver gráfico x).

O cumprimento da medida de Liberdade Assistida (LA) é realizado pelo adolescente sob orientação do técnico responsável, no caso do CREAS de Ferraz, uma assistente social que deve atendê-lo semanalmente, e sua família sempre que necessário, com o objetivo de abordar a sua responsabilização quanto ao ato infracional cometido e promover a socioeducação através de orientações individuais, grupos socioeducativos, encaminhamentos para matrícula escolar e verificação de freqüência/aproveitamento, cursos profissionalizantes, equipamento de esporte e cultura, inserção no mercado de trabalho, provimento de documentação pessoal, tratamento de saúde e o que mais se fizer necessário, pelo prazo mínimo de 6 meses.

O cumprimento da Prestação de Serviços à Comunidade (PSC) é semelhante ao da LA, com o diferencial de que o adolescente precisará cumprir um determinado número de horas semanais (máximo de oito) de trabalho de caráter socioeducativo num equipamento público ou entidade social,  pelo prazo máximo de 6 meses.

A maioria dos adolescentes (70%) tem sucesso no cumprimento da medida: aderem ao acompanhamento no CREAS, completam o tempo previsto e são liberados pela Justiça. Alguns, porém (14%), acabam reincidindo em infrações durante o período de cumprimento  e por isso deixam o acompanhamento no CREAS, seja para serem internados em regime fechado na detenção (se já forem maiores), na internação (menores) ou na semiliberdade (menores em regime semiaberto, em que se passa a noite na internação e de dia se vai a atividades dirigidas como cursos profissionalizantes etc).

Outros (16%) não cumprem a medida por motivos diversos que não o de reincidência, como transferência para acompanhamento no CREAS de outra cidade (8%), paradeiro desconhecido do adolescente (5%), falecimento (1%) e internação-sanção (2%), a qual não se trata de internação por reincidência no crime, mas sim por descumprimento da própria medida de Liberdade Assistida ou Prestação de Serviços à Comunidade (ver gráfico x).  

Eis, em suma, os dados que pudemos levantar no sentido de propiciar ao leitor informações objetivas que ajudassem no delineamento do perfil dos usuários do CREAS de Ferraz.    .   

***

Notas sobre o trabalho de atendimento aos usuários

Das conversas e entrevistas feitas com os técnicos do CREAS, assim como das observações acompanhando de perto o trabalho da equipe, foi possível conhecer um pouco os serviços oferecidos e os procedimentos adotados no atendimento aos usuários. Estes chegam ao CREAS ou por iniciativa espontânea ou – mais comumente –  encaminhados pelo Conselho Tutelar, pela Vara da Infância e Juventude e pelo Ministério Público, tanto por meio de ofícios e requisições como pelo comparecimento direto do cidadão ao serviço portando uma notificação do órgão encaminhador.

            A primeira coisa a fazer com este cidadão é recebê-lo bem. De fato, é no primeiro contato com o usuário que o pessoal do CREAS tem a oportunidade de exercer o princípio da Assistência Social brasileira de manter “respeito absoluto aos direitos do cidadão, à sua dignidade e à sua autonomia”[3], assegurando-lhe:

– Direito ao atendimento digno, atencioso e respeitoso, ausente de procedimentos vexatórios e coercitivos.

– Direito ao tempo, de modo a acessar a rede de serviço com reduzida espera e de acordo com a necessidade.

– Direito à informação, enquanto direito primário do cidadão, sobretudo àqueles com vivência de barreiras culturais, de leitura, de limitações físicas.[4]

O bom tratamento no primeiro contato passa, no CREAS de Ferraz, por toda a equipe, começando desde a agente administrativa, a qual atua também na recepção – o que não é empecilho para que ela exerça plenamente suas funções administrativas regulares: elaboração de ofícios, prestação de contas da repartição, adiantamentos bancários, organização de arquivos, compra de material etc.

Identificado o(s) usuário(s), a agente chama um dos técnicos disponíveis para atendê-los, seja um dos psicólogos ou dos assistentes sociais, que então o(s) leva para uma saleta reservada.

Em geral, são atendidos conjuntamente, de início, todos os que comparecem juntos ao equipamento. Por exemplo, no caso de uma família em que houve ocorrência de violência física contra uma criança, atendem-se primeiramente todos juntos; neste momento, já é possível para o técnico verificar, além das informações sobre o contexto familiar e impressões pessoais sobre o acontecimento gerador da demanda, também o modo pelo qual a família se relaciona, isto é, quem fala primeiro, quem não fala, quem discorda, quem se exalta etc., ou seja, perceber as especificidades da dinâmica familiar.

Terminado o atendimento e agendado o próximo, o técnico escreve um relatório e abre o prontuário do caso, ao qual serão anexados os relatórios seguintes. No decorrer do acompanhamento continuado, que em geral ocorre semanalmente, os membros da família poderão ser atendidos individualmente, a fim de verificar a percepção própria de cada um sobre a situação e oferecer as orientações que se fizerem necessárias.

Note-se que o objetivo do técnico não é completar uma investigação sobre responsabilidades pessoais na situação de agressão: isto tem seu lugar próprio no inquérito policial, se houver. Os assistentes sociais e psicólogos visam exclusivamente, no exemplo dado, à ampliação da capacidade protetiva da família sobre a criança através do exercício de uma forma de cuidado que não passe pela violência física. Para isto, trabalham no sentido de fortalecer os vínculos afetivos familiares por meio de um conjunto articulado de ações que envolvem acolhimento, escuta, orientação e promoção do acesso da família aos recursos sociais e institucionais apropriados, tais como inserção em programa de transferência de renda e acompanhamento junto ao CRAS, acompanhamento em saúde, inserção no mercado de trabalho, inclusão em escola, cursos profissionalizantes, atividades socioeducativas, oficinas de arte, programas de esporte, cultura e lazer etc. Outro objetivo dos atendimentos é perceber se a criança ou adolescente referenciado apresenta alguma dificuldade em seu desenvolvimento ou até mesmo algum sintoma psicológico/psiquiátrico mais acentuado em decorrência da violência sofrida. Neste caso, será encaminhado para tratamento psicológico ou psiquiátrico no setor de Saúde Mental.

Mas afinal – poderia perguntar o leitor – em que consistem exatamente as mencionadas ações de acolhimento, escuta e orientação? Melhor: qual é o trabalho dos técnicos durante os atendimentos? Ainda: que diabos eles ficam fazendo na sala com os usuários?

Ora, seria muita indiscrição e prepotência querer resumir – e portanto limitar – a prática de atendimento psicossocial e socioeducativo dos técnicos, adquirida em anos de estudo teórico (na faculdade) e experiência concreta (no trabalho), ainda mais no campo das Ciências Humanas, naturalmente aberto ao questionamento permanente e à indeterminação. Podemos aqui, talvez, apenas esclarecer alguns pontos que costumam gerar confusão:

1º – Os técnicos não “dão conselhos”, mas propiciam orientação – o que é bastante diferente. Com efeito, aquele que dá conselhos se põe necessariamente numa posição de detentor de um saber superior ao do aconselhado, o que estimularia uma relação de dependência de um suposto “ignorante” – o usuário – em relação a um suposto “especialista” – o técnico. Não é isso que se quer, mas o contrário: os técnicos visam a favorecer o “empoderamento” (conferimento de maior poder) do usuário no sentido de proteger-se e tomar decisões por si próprio, de modo independente. Portanto, adotam o princípio de que o usuário deve ser levado a refletir, não a obedecer. Na prática, isto faz com que o discurso imperativo “faça isto, faça aquilo” seja evitado e trocado por um discurso interrogativo “o que você acha disso, o que você pensa sobre aquilo?”, estimulando a que a própria pessoa chegue às respostas sobre o que deve fazer ou não. Assim, a orientação que vem da parte do técnico está na condução qualificada da reflexão conjunta, visando à sensibilização do usuário quanto a temas importantes. 

            2º – Atendimento psicossocial/socioeducativo não é tratamento psicoterapêutico: por mais que nos atendimentos do CREAS esteja presente uma escuta qualificada da angústia dos usuários, e esta escuta possibilite, muitas vezes, o alívio de suas ansiedades e uma abertura à reflexão construtiva – portanto, efetiva melhora do estado mental –, tais atendimentos limitam-se a este primeiro momento de intervenção psicológica. Isto porque o atendimento psicossocial/socioeducativo não apresenta caráter estritamente terapêutico, uma vez que está direcionado também à contemplação de demandas de ordem social, prevendo ações concretas como encaminhamentos e orientações relativas a programas sociais de transferência de renda, recebimento de cesta básica, tratamentos de saúde, providências jurídicas, inclusão na rede oficial de ensino, cursos profissionalizantes e inserção no mercado de trabalho. Portanto, se após as primeiras intervenções psicossociais no CREAS a problemática psicológica/social do usuário persistir, conclui-se pela necessidade de encaminhá-lo para tratamento psicoterapêutico de fato – ou, dependendo do caso, até mesmo tratamento psiquiátrico – nos equipamentos próprios da rede de Saúde Mental. Lá sim, será possível o estrito tratamento psicológico ou psiquiátrico, direcionado exclusivamente à questão psíquica e capacitado a trabalhar conflitos que se encontram arraigados na personalidade.

3º – O atendimento no CREAS não tem a função de apurar denúncias e/ou investigar  usuários e suas famílias: enquanto órgão da Assistência Social, o CREAS está constituído exclusivamente para prestar-lhes assistência, assentada necessariamente num vínculo de confiança mútua. Os técnicos estão completamente cientes de que, sem este vínculo, não é possível qualquer resultado no trabalho: as pessoas jamais aceitariam orientações e se deixariam ajudar por alguém de quem desconfiam. Por isso mesmo, os técnicos partem do “compromisso fundamental” – expresso em documento oficial[5] – “de proteger a criança e o adolescente, acreditando sempre em sua palavra“. Estando assim comprometidos em favor de seu público prioritário, ao qual devem assistir em suas necessidades prementes independentemente da comprovação dos fatos que levaram à demanda, os técnicos do CREAS estão automaticamente prejudicados enquanto testemunhas contra ou a favor em inquéritos ou processos que envolvam usuários. Mesmo porque, quando o técnico do CREAS avalia seus usuários – e de fato precisa fazê-lo para poder atendê-los bem – o faz tão-somente em vista da identificação de suas necessidades psicológicas e assistenciais, para assim poder encaminhá-los aos serviços apropriados disponíveis na rede de proteção social – e nunca para investigar eventuais responsabilidades criminais no caso (o que seria perturbadoramente inquisitivo, prejudicando o vínculo de confiança necessário ao atendimento). Por isso, quando o Judiciário requisita alguma avaliação/relatório sobre usuário, o CREAS informa aquilo que está dentro dos seus limites, ou seja, informa sobre a constatação de presença ou não de uma necessidade assistencial do usuário de ordem social ou psicológica, sobre o andamento dos atendimentos e dos encaminhamentos etc., mas éincompetente para contribuir de outro modo, até porque, como vimos, a natureza própria de sua avaliação não o permite (estando além de sua competência, por exemplo, afirmar se há ou não relação de causa-efeito entre suposta prática criminosa de terceiros e sintoma psíquico observado em usuário, ou outras evidências do tipo que levem à comprovação, para o juiz, de que houve ou não crime no caso e de quem é a culpa). Em suma: quando ocorre uma violação de direitos, vários órgãos podem ser acionados: Conselho Tutelar, Delegacia de Polícia, Ambulatório de Saúde, Vara da Infância e da Juventude etc., cada qual com sua função – uns de apurar o caso, outros de assistir os envolvidos –, entre eles o CREAS, a quem cabe a parte de prestar assistência social especializada.

4º O atendimento no CREAS não está obrigado a policiar, vigiar e controlar pessoas, conformando-as a expectativas de terceiros. É importante esclarecer este ponto, visto ser comum que os usuários atendidos ou até mesmo outros equipamentos da rede de serviços manifestem a expectativa de que o atendimento no CREAS terá o poder de convencer/obrigar alguém a fazer algo previamente resolvido por eles (obrigar alguém a fazer tratamento psicológico ou de saúde, a assumir responsabilidade quanto aos cuidados de algum familiar, a fazer tal criança ou adolescente se comportar bem etc.). As coisas, porém, não são tão simples assim. Primeiro, porque cabe aos técnicos do CREAS analisar as necessidades do usuário na situação em questão, principalmente segundo as palavras dele próprio; depois, apesar dessas questões (comportamento, responsabilidade, necessidade, transformação etc.) estarem presentes o tempo todo durante os atendimentos, isto não significa que a intervenção técnica terá o poder de controlar e modificar automaticamente o comportamento de quem quer que seja, muito menos forçar isso por meio da execução dalgum tipo de punição para quem não se adequar ao imperativo suposto. Mesmo porque, conforme documento oficial relativo à gestão do Sistema Único de Assistência Social:

O SUAS realiza a garantia de proteção social ativa, isto é, não submete o usuário ao princípio de tutela, mas à conquista de condições de autonomia, resiliência e sustentabilidade, protagonismo, acesso a oportunidades, capacitações, dignidade e projeto pessoal e social. A dinâmica da rede socioassistencial em defesa dos direitos da cidadania considera o cidadão e a família não como objeto de intervenção, mas como sujeito protagonista da rede de ações e serviços;[6]

Assim, todo o processo de modificação da situação/comportamento do usuário e de sua família dependerá de uma série de ações não só do CREAS como de outros equipamentos, e também dos usuários, sejam vítimas ou vitimizadores. Com efeito, todos são respeitados em sua autonomia e chamados livremente a uma participação ativa, cientes de que a mudança de um dos membros da família depende de cada um e de todos; afinal, a dinâmica familiar comporta o conjunto total de relações recíprocas entre os membros, e não o indivíduo isolado. É com o tempo, diversas ações dos equipamentos de assistência e cooperação de todos os envolvidos que alguma mudança positiva pode se realizar.

Falando assim, pode-se ter a impressão de que não há muito o que fazer nas situações que se apresentam no CREAS e que não existem esperanças quanto à solução de problemas tão graves. Mas o que se quer explicitando todas esses detalhes do trabalho é desmistificar algumas ideias imediatistas e simplistas da forma de resolução de conflitos, enfatizando que a transformação de qualquer problemática humana em nível psicológico e social é muito complexa, demora um certo tempo (imprevisível), é singular e depende do comprometimento de todos, ou seja, da rede de serviços e dos próprio usuários e seus familiares.

Pois bem. Falamos da escuta (das angústias do usuário) e da orientação (das reflexões sobre os seus problemas). O acolhimento, por sua vez, trata-se mais propriamente daquela receptividade para com os usuários, traduzida em disponibilidade, educação e boa vontade no trato com eles. O acolhimento, além de ser um excelente demolidor de barreiras (favorecendo o estabelecimento do vínculo de confiança nas situações delicadas que se apresentam no CREAS, em que os usuários encontram-se muito vulnerabilizados emocionalmente devido às violações sofridas) é também uma ação socioeducativa em si: tendo suas demandas acolhidas socialmente sem necessidade de atrito, o indivíduo aprende que não precisa agredir para se defender em sociedade. O acolhimento, então, é um elemento a mais para romper com o círculo de violência que costuma brutalizar os cidadãos socialmente vulneráveis. Estes, com efeito, são frequentemente tratados com falta de tato em sua vida familiar e social, mesmo nos serviços públicos, e depois de tantos entrechoques acabam desenvolvendo, em suas relações sociais, um certo mecanismo de defesa baseado na agressividade, algo como “a melhor defesa é o ataque”: prevendo um embate social, armam-se de uma postura prévia de afronta tentando dar – e não levar – o primeiro golpe moral. Quando, então, chegam a um lugar que lhes acolhe pacífica e educadamente, isto contribui para desarmar os ânimos, mostrando que é possível um relacionamento social que não passe pela violência simbólica.       

Além dos atendimentos, muitas vezes fazem-se necessárias, no decorrer do acompanhamento, visitas domiciliares às famílias. Estas ocorrem quando se precisa compreender de forma mais próxima o contexto cultural e socioeconômico vivenciado pela família, ou averiguar o motivo da ausência aos atendimentos agendados (por telefone ou aerograma) e agendar novo atendimento. A visita domiciliar muitas vezes é percebida pelo usuário como uma atenção a mais, pois em geral demonstram sentir que o CREAS está mais próximo deles e atento às suas necessidades.

Nem sempre a visita é fácil. Além das barreiras físicas – as casas dos usuários frequentemente se encontram em local de difícil acesso, como barrancos e beiras de córregos –, há usuários que não recebem a visita do CREAS tranquilamente, especialmente nos casos em que ela ocorre devido a solicitação de autoridades a respeito de uma denúncia. Em função disto, a primeira abordagem do CREAS junto à família, seja em visita domiciliar seja em atendimento, precisa ser habilidosa e cuidadosa para que, aos poucos, a família possa perceber que o serviço tem o objetivo de auxiliá-la, e não julgar, punir ou vigiar. Somente estabelecendo um vínculo de confiança com a família é que o trabalho do CREAS torna-se possível.

Enfim, se ao longo do acompanhamento as violações cessarem e os vínculos familiares se fortalecerem, o atendimento pode ser encerrado – não esquecendo que a família pode retornar em qualquer momento ao CREAS se necessitar. Este acompanhamento pode perdurar por meses ou anos dependendo da situação atendida.

            Quando as violações não cessam e a criança ou adolescente encontra-se em iminente risco, o CREAS precisa notificar o Conselho Tutelar para que sejam tomadas as medidas cabíveis em sua defesa: advertência aos pais, abrigamento, perda da guarda, entre outras previstas no Estatuto da Criança e do Adolescente.  

Com relação ao atendimento da mulher adulta que sofre violência doméstica, o CREAS procura compreender qual é a situação específica de violência em que ela se encontra e quais os recursos para romper com o ciclo de violência, considerando, inclusive, a possibilidade de sua retirada do ambiente de risco iminente de vida – o próprio lar – e seu abrigamento em local seguro (casa de acolhimento sigilosa), o que se dá somente em casos extremos, e não sem difíceis implicações. Entretanto, mesmo para um rompimento comum e gradual entre a mulher e o agressor, há dificuldade devido às mulheres frequentemente não estarem preparadas para o afastamento de seu companheiro, em razão de dependência econômica, emocional, pelos cuidados com os filhos ou por medo de represálias. As situações, como se vê, são delicadas e complexas; de qualquer modo, estas mulheres são auxiliadas a refletir sobre sua condição e, caso optem por realizar a tentativa de rompimento da relação, são-lhe oferecidas as orientações necessárias psicossociais e jurídicas para a tomada de atitude.

 Com relação aos idosos e pessoas com deficiência, geralmente são necessárias visitas domiciliares para atender estes usuários que, quase sempre, têm dificuldades de locomoção. Também são realizados atendimentos individuais e com diversos membros da família a fim de mediar a relação de cada familiar nos cuidados junto ao idoso ou pessoa com deficiência, uma vez que a violação sofrida por este público é, na maioria das vezes, a negligência. Quando não é possível acordar com a família a responsabilidade por estes cuidados ou quando a situação se agrava por violações que exigem medidas jurídicas (subtração de cartão de aposentadoria, corte de energia, prejuízos à saúde do idoso ou da pessoa com deficiência em decorrência da negliência ou maus-tratos etc.) torna-se necessário o envio de relatório ao Ministério Público.

Enfim, nos atendimentos em medidas socioeducativas, a coisa funciona mais ou menos assim: o assistente social do CREAS, depois de ter recebido guia de execução do fórum solicitando acompanhamento para determinado adolescente em cumprimento de medida (de Liberdade Assistida e/ou de Prestação de Serviços à Comunidade), agenda o primeiro atendimento através de carta solicitando o comparecimento tanto do adolescente como de um adulto responsável. Este primeiro atendimento é chamado IM – Interpretação de Medida –, pois entre seus objetivos consta sempre o de esclarecer os usuários sobre o significado, segundo o ECA, da medida socioeducativa em questão, explicitando os deveres e direitos pertinentes ao adolescente, à família, ao equipamento e à comunidade. Nesse dia também são apresentados os recursos materiais e a oferta de serviços de que dispõe o CREAS para atendê-los. Enfim, os técnicos acordam com os adolescentes o compromisso de assiduidade nos atendimentos subsequentes.

A partir deste primeiro atendimento, o técnico orientador da medida começa a elaborar o PIA – Plano Individual de Atendimento – do adolescente, no qual se tenta traçar metas específicas para seu acompanhamento em quesitos objetivos e subjetivos, considerando o contexto particular do caso. No campo da objetividade tem-se, por exemplo, a discussão com os adolescentes sobre a necessidade de providenciar a retirada de documentos pessoais faltantes – fato muito comum – como 2ª via de Certidão de Nascimento, RG, CPF, Carteira Profissional Título Eleitoral e Certificado de Alistamento Militar, bem como comprovantes de matrícula, frequência e aproveitamento escolar. Além disso, levanta-se a possibilidade de inserção em cursos profissionalizantes e encaminhamentos para equipamentos de saúde, esporte e lazer. Quanto às metas subjetivas, tem-se por exemplo a percepção, por parte do adolescente, das questões psicossociais anteriores e contextuais ao cometimento do ato infracional, como suas relações com a família, seu bairro, sua escola, suas expectativas etc., bem como a conscientização sobre as motivações e implicações de seu ato, conscientização esta que visa ao empoderamento de sua autonomia enquanto sujeito capaz de avaliar conjunturas, pesar consequências e tomar decisões próprias. Quando questões emocionais se apresentam de forma incisiva, pode se fazer necessário o devido encaminhamento para tratamento na saúde mental. 

Para complementar a construção do PIA, os técnicos utilizam, além do diálogo, também alguns instrumentais preparados, como o Trajetória do adolescente pelo Sistema de Justiça (redação feita pelo adolescente contando o seu caso, desde o cometimento do ato, passando pela delegacia até a passagem pela internação etc.), o Quem Sou Eu (preenchimento de lacunas sobre itens pessoais como “nome”, “música”, “filme”, “esporte”, “lugar”, “pessoa”, “lembrança”, “desejo”, “palavra”, etc.), o Minha Família (idem, com itens como “fazem parte da minha família…”, “Eu gosto da minha família quando…”, “Eu não gosto da minha família quando…”, “Foi muito bom para a minha família quando…”, “O momento mais difícil para a minha família foi quando…”, “A minha família acha que sou…”, “Eu acho que minha família é…” etc.) e outros instrumentais do gênero como Meus Sentimentos e Meus Planos (este geralmente aplicado nos primeiros dias, visando a colaborar com a definição dos quesitos objetivos do PIA – lembrando que, ao longo do acompanhamento, as expectativas do adolescente quanto à sua vida podem variar, mesmo porque um dos objetivos do acompanhamento é justamente aumentar o seu leque de escolhas quanto ao futuro).

No decorrer dos atendimentos, frequentemente aparecem situações em que os adolescentes se entendem como injustiçados perante a medida aplicada pelo juiz, alegando que não cometeram ato infracional, e/ou que sofreram violação de seus direitos por parte de agentes públicos, e/ou que não compactuam com os valores da sociedade expressos pelo Judiciário, sistema sentido como heterônomo e punitivo – ao qual naturalmente associam o CREAS, onde são obrigados a cumprir a medida. Nestes casos de elevada resistência ao acompanhamento, os técnicos valem-se pacientemente da escuta e do acolhimento, orientam o adolescente no sentido de entender as alternativas de intervenção para garantia de seus direitos, mas não deixam de remeter à responsabilização do adolescente pelo seu ato e à necessidade de atitudes concretas de sua parte frente à situação que lhe está posta, qual seja a de cumprimento de uma determinação judicial de medida socioeducativa. Seja qual for o caso, os técnicos sempre trabalham no sentido de ressignificar a medida socioeducativa, minimizando sua concepção punitiva e maximizando a conotação de oportunidade de crescimento para o adolescente.

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Bibliografia

ANTUNES, Celso; GARROUX, Dagmar. Pedagogia do Cuidado: Um modelo de Educação Social. Petrópolis, RJ:  Ed. Vozes, 2008.

BRASIL, Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil, 17 ed. Brasília, 1994. 455 p. (Série textos básicos; n. 25)

BRASIL. Lei Orgânica da Assistência Social- LOAS: Lei nº 8.742, de 7 de dezembro de 1993. Diário Oficial da República Federativa do Brasil, Poder Executivo. Brasília, DF, 8 dez. 1993.

BRASIL, Conselho Nacional de Assistência Social. Resolução nº 207, de 16/12/1998: Aprova a Norma Operacional Básica da Assistência Social – NOB: disciplina a descentralização político-administrativa da Assistência Social, o financiamento e a relação entre os três níveis de governo.  Brasília, DF, 1998.

BRASIL, Conselho Nacional de Assistência Social. Resolução nº 145, de 2004: Aprova a Política Nacional de Assistência Social – PNAS. Diário Oficial da República Federativa do Brasil, Poder Executivo. Brasília, DF, 28 out. 2004.

BRASIL, Conselho Nacional de Assistência Social. Resolução n° 130, de 15 de julho de 2005: Aprova a Norma Operacional Básica da Assistência Social – NOB/SUAS. Brasília, DF, 2005.

BRASIL, Conselho Nacional de Assistência Social. Resolução n° 269, de 13 de dezembro de 2006: Aprova a Norma Operacional Básica de Recursos Humanos do Sistema Único de Assistência Social – NOB-RH/SUAS.

BRASIL, Estatuto da Criança e do Adolescente. Brasília, 13 de julho de 1990. Ed. São Paulo, SP: Conselho Estadual da Criança e do Adolescente, 2007. 

PRADO, Maria do Carmo de Almeida (coordenadora), Vários Autores. O Mosaico da Violência: a perversão na vida cotidiana. São Paulo, SP: Editora Vetor, 2004.

SOUZA, Jessé ; colaboradores. A ralé brasileira: quem é e como vive. Belo Horizonte, MG: Editora UFMG, 2009.


[1] NOB/SUAS-2005, pg. 14

[2] Idem.

[3] Cf. LOAS – Lei Orgânica da Assistência Social, “Dos Princípios e das Diretrizes”.

[4] Cf. PNAS – Política Nacional de Assistência Social, pág. 8.

[5] MDS/SNAS, Guia de Orientação Nº1, item 5.1

[6],Norma de Operação Básica da Assistência Social  – NOB/SUAS de 2006, pg. 21.

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