Dia Agitado na Repartição [capítulo de Jogo Arriscado]

Ai, moça, disfarça que ele tá vindo!

– E agora?

– Não sei, moça, ELE VAI ME MATAR!

A agente administrativa Simone, momentaneamente sozinha na sala de recepção do Centro de Assistência Social, mal teve tempo de responder à franzina mulher à sua frente, provável vítima de violência doméstica, quando o suposto agressor adentrou o recinto.

– Por que você desligou o celular!? – perguntou o sujeito à esposa num tom ameaçador, depois de lhe tomar o telefone das mãos. Havia-a seguido até ali, desconfiado de que fosse denunciá-lo, embora ela lhe tivesse dito pouco antes, em casa, que iria sair para tirar documentos.

A psicóloga Taís, colega de Simone no Centro de Assistência Social, voltava de uma sala de atendimento e entrava na recepção.

– Espera um minutinho – disse Simone à mulher cercada pelo marido e levantou-se, no que chamou a colega Taís para uma rápida conversa particular na sala adjacente, restrita aos técnicos. Simone e Taís decidiram ligar para a psicóloga Melissa, coordenadora do Centro, que voltava de uma visita domiciliar.

– Melissa!, a mulher que você atendeu de manhã está aqui! – sussurrou-lhe Simone ao telefone – ela voltou e seu companheiro veio atrás, e parece que ele está ameaçando ela. O que a gente faz?

– Onde ela está?

– Lá na recepção.

– Tenta trazê-la para aí dentro, na sala dos técnicos, onde é mais seguro, para saber direito o que está acontecendo, qual a gravidade da situação.

– Tá bom.

Não foi, porém, preciso fazer uso do famoso “A Srª pode me acompanhar um minuto, por favor?”, pois a própria mulher colocou-se parada à porta da sala reservada aos técnicos, mal Simone desligara o telefone.

– Vai demorar muito?? – perguntou angustiada.

– Vem pra cá! – chamou-a Taís decididamente, fechando a porta assim que ela entrou.

A essa altura, os outros dois membros da equipe presentes no dia, o estagiário de psicologia Macedo e a estagiária de serviço social Jussara já haviam retornado do almoço e acompanhavam com suspeita a movimentação nervosa na sala reservada, sem contudo poderem adivinhar a complexidade da situação, e mantinham a discrição que se fazia necessária.

Simone voltou a ligar para a coordenadora.

– Melissa, ela [a mulher ameaçada] está aqui. Fala com ela!

Muito nervosa, a mulher começou a explicar por telefone a Melissa que, ao retornar ao Centro de Assistência Social, o marido a seguira e agora a estava ameaçando. E desatou a chorar.

– Estou chegando aí! – falou-lhe Melissa, a qual vinha acompanhada de um colega que, ansioso, lhe per- guntou o que iria fazer.

– Não sei – respondeu decididamente a coordenadora, apertando o passo.

Dentro do Centro, o constrangimento beirou o inadmissível quando o suposto agressor passou pela recepção e adentrou a sala em que sua esposa havia se refugiado junto à equipe. A mulher esboçou a intenção de deixar a sala e ir para junto dele, mas Taís mandou-lhe que ficasse.

– O senhor não pode entrar aqui! Retire-se, por favor – emendou a psicóloga.

– Qual é o problema de eu ficar aqui? Não é só um lugar para “tirar documento”? – questionou o cidadão, entre o ameaçador e o irônico.

A psicóloga, porém, não se intimidou, e, reiterando convictamente seus pedidos, conseguiu encaminhá-lo para fora. O homem, não sem esbravejar um bocado, se sentou no corredor de espera, num banco ao lado da porta de entrada do gabinete do Centro.

Taís voltou e a equipe se fechou na sala com a mulher dentro. Enfim Macedo e Jussara puderam entender a desconfortável situação, especialmente para a agente administrativa Simone, a qual havia sido vista pelo suposto agressor falando ao telefone, e depois ainda teve de passar por ele para ir a à sala ao lado pegar o prontuário da usuária, sob o olhar de fuzilamento do mesmo, que abanava sinistramente a cabeça como um sinal de jura.

Na sala dos técnicos, sua esposa, pálida, tremia des controladamente e chorava. Todos procuravam acalmá-la. – Vocês não estão entendendo, ELE VAI ENTRAR AQUI E VAI ME MATAR! – argumentava desesperada.

– Calma, aqui tem segurança, eu vou lá falar com eles – disse-lhe Taís, que deixou a sala, passou pelo homem sentado na entrada do gabinete e dirigiu-se brevemente, sem alarde, ao primeiro segurança do corredor, quase sussurrando sobre o atendimento delicado, ocorrendo no Centro, a uma vítima de violência doméstica que vinha seguida pelo suposto agressor, parado do lado de fora do gabinete.

A partir de então o segurança ficou por perto, de prontidão, mas sem interpelar o indivíduo, já que Taís de fato não solicitou qualquer tipo de intervenção direta nem deu maiores detalhes do caso, achando mais prudente aguardar a orientação da coordenadora, que estava para chegar.

Taís retornou à clausura da sala, onde todos estavam à espera, um tanto apreensivos com a situação, para a qual não se via desfecho claro.

Simone pegou o telefone para ligar novamente para a coordenadora Melissa.

Nesse mesmo momento, porém, a própria coordenadora entrou na sala.

Sua equipe, acuada no ambiente reduzido da sala dos técnicos, transparecia o elevado estado de apreensão. De fato, a situação era delicada: como a vítima de ameaça iria embora dali, se o potencial agressor, visivelmente zangado, a esperava na porta? Os três seguranças do Centro conteriam, decerto, qualquer tumulto interno com toda a eficácia, mas o que aconteceria da porta do Centro para fora? Como liberar a usuária numa situação de risco iminente de agressão?

O estagiário de psicologia Macedo, que permanecia na saleta junto ao restante da equipe, já cogitava ir a um posto policial próximo providenciar uma escolta. Todavia, assim que entrou, Melissa o destacou para a recepção, a fim de prevenir, antes de tudo, nova entrada abrupta do indivíduo na sala dos técnicos.

Em seguida, Melissa ligou para a Delegada de Polícia da região, com quem mantém cordial interlocução profissional. Esta imediatamente enviou dois investigadores à paisana para o Centro.

No momento em que chegaram, estava Macedo na recepção, e não os reconheceu.

– Pois não? – disse-lhes com naturalidade.

– Pois não?… – repetiu um deles algo contrariado – Nós viemos para uma ocorrência.

– Ah, sim, entrem por favor.

Na sala dos técnicos, os agentes foram apresentados a Melissa e receberam da coordenadora um rápido parecer do caso.

Nesse ínterim, porém, o sujeito ameaçador parado à porta do Centro – que fora capaz de perceber a dupla de investigadores quando passaram por ele – já tinha dado no pé, de modo que, quando um deles deixou a sala dos técnicos para ir interrogá-lo, ele já estava fora do prédio.

Um dos seguranças do Centro mostrou para o investigador onde o sujeito estava: parcialmente oculto atrás de um caminhão do outro lado da avenida em frente ao prédio, de olho no movimento.

O investigador desceu para a rua e, da calçada, chamou o indivíduo com um gesto de “vem cá” com a mão. Este, porém, não só não atendeu como se pôs a fugir na direção contrária. O policial então sacou a pistola automática e atravessou a avenida em perseguição, mas o sujeito rapidamente pulou um muro da avenida – com extraordinária agilidade – e caiu para dentro da estação ferroviária próxima ao Centro.

O policial chegou até o muro e, dali, pegou o telefone celular, no que parecia acionar colegas.

O outro investigador, que ficara no Centro, disse então que a mulher já poderia deixar o prédio em segurança. A coordenadora Melissa desceu com ela até a viatura, na qual a mulher enfim seria levada à Delegacia para registrar queixa. Feito o B.O., o motorista do Centro transportou a usuária até um local de abrigamento sigiloso.

Que essa mesma mulher tenha, poucos dias depois, ligado para seu ex-companheiro e suposto agressor, revelando a localização do abrigo – destruindo assim o necessário sigilo do serviço e arruinando não só sua própria segurança como a de todos os abrigados, provocando ainda um gasto enorme de dinheiro e esforço humano com a consequente mudança do serviço para outro endereço – isso é outra história.

***

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