Correntes da História VI

29/12/2009 – terça-feira

         Da arte amazônica pré-cabralina, realçada ontem nas tangas de argila marajoaras e nos vasos cariátides de Santarém, muito ainda haveria a observar. Mas estamos agora diante de um objeto totalmente diferente: uma harpa. Não uma harpa qualquer, mas uma harpa sagrada sumeriana, do 3º milênio antes de Cristo.

          Esta harpa é adornada com uma cabeça de touro esculpida em madeira e revestida de ouro puro. O imponente bucrânio dourado possui longos chifres recurvos e comprida barba; seus olhos são extremamente realistas, feitos de pedra de lazulite incrustada. A caixa de ressonância da harpa é decorada com figuras geométricas triangulares e losangulares esculpidas de plaquetas de pedras policromadas (azul, branco e vermelho), que se sucedem num padrão rigoroso ao longo de faixas perfeitamente delimitadas, tudo muito diferente da liberdade de experimentação espacial marajoara e santarena.

          Note-se que estamos diante de uma peça que conjuga as artes da carpintaria, da metalurgia, da escultura e da música. Estamos na História.

          Já não era sem tempo. Detemo-nos por 7 dias, neste diário, a escavucar a cultura e a arte do homem primitivo. Arrastamo-nos pelas estreitas passagens de suas cavernas, contemplamos suas catedrais da caça ao mamute, adentramos suas rudimentares aldeias agrícolas e apreciamos sua trabalhada cerâmica.

          Quando falamos de Suméria, no entanto, não estamos falando de uma aldeia, de uma tribo, mas de uma sociedade complexa, sob organização política de um pesado aparelho estatal. Uma sociedade dotada da arte da escrita (a famosa escrita cuneiforme, gravada em placas de argila), da ciência matemática e – o mais importante de tudo – da astronomia.

          Com efeito, o soerguimento da civilização sumeriana, em 3.500 a.C., tem por base os conhecimentos adquiridos pelo exaustivo trabalho de observação e mapeamento das estrelas “fixas” no céu, em contraposição ao movimento do Sol e da Lua mais os 5 planetas de trajetória visível (Mercúrio, Vênus, Marte, Júpiter e Saturno). Os sumérios descobriram, assombrados, que as 7 esferas celestiais moviam-se não a esmo, mas segundo uma ordem regrada e constante.

          A descoberta de que o céu possui uma ordem inabalável impressionou profundamente os sumérios. Sua civilização, a partir daí, foi uma tentativa de imitação terrena da ordem celestial. Neste esforço surgiram gigantescos (quase milagrosos) marcos civilizatórios: foram descortinados doze signos (marcas visíveis, referentes às 12 principais constelações reconhecíveis, as atuais Escorpião, Peixes, Libra etc.) que distinguiam as partes do zodíaco (faixa no céu onde se observa a trajetória dos astros); o dia foi dividido em dois ciclos de 12 partes (12 “horas”), a circunferência total do horizonte foi dividida em 360 partes (360 “graus”) e foi criado um calendário anual de 360 dias, com o qual o tempo da cidade se punha em sintonia com o tempo astral.

           Do mesmo modo, a sociedade se organizou em rígida ordem (daí o nome hierática), com cada camada da população exercendo sua função em vista da reiteração do sistema estabelecido, inquestionável porque legitimado pelo poder estelar, com o qual o homem deveria obrigatoriamente se harmonizar (o termo egípcio para esta ordem imanente do universo viria a ser ma’at; o hindu, dharma; o chinês, tao).

          Na sociedade hierática, portanto, não há espaço para o individualismo, o qual deve ser sacrificado em prol da coletividade. Esta concepção de vida era tão radical na Suméria, que quando seus reis e rainhas – com responsabilidades na Terra equivalentes às do Sol e da Lua no céu – morriam, toda a alta corte era ritualisticamente sacrificada junto.

           Mas como foi que se desenvolveu tamanha grandeza (e gravidade trágica) de visão astrológica do mundo? Precisamente pelo surgimento de uma classe social especial: a dos sacerdotes “profissionais”, voltados em tempo integral para as questões religiosas, isto é, questões de ligação do homem com o universo divino (não à toa a palavra religião vem do latim religione = “religação” do homem com o céu). Estes sacerdotes-astrônomos dedicavam-se exclusivamente aos estudos, e, além da matemática e da astronomia, desenvolveram uma arte litúrgica, incluindo música – a “arte de tornar audível a harmonia ordenadora do mundo das esferas celestes” –, segundo o eminente professor Joseph Campbell.

          Os sacerdotes trabalhavam junto ao rei no interior dos chamados Zigurates, monumentais palácios-templos e observatórios astronômicos conservados até hoje, tamanha é sua resistência, seu peso, fixidez e senso de eternidade, só superados pelas colossais pirâmides egípcias.

          Este modelo de sociedade hierática, surgido na Suméria, foi o mesmo que vingou nas antigas civilizações do Egito (em sua máxima expressão), da Índia e da China, só para citar as maiores. Sua arte pode ser representada nessa harpa sagrada sumeriana, onde a música, a pintura e a escultura estão conjugadas em função exclusiva da ideologia do poder estatal.

          Convém ainda lembrar que foi da antiga cidade sumeriana de Ur (então sob domínio do rei da Babilônia, Hamurábi) que, em 1800 a.C., partiu Abraão – ancestral comum de israelitas e árabes, patriarca do judaísmo, do cristianismo e do islamismo – em direção a Canaã (atual Palestina, ao ocidente de Ur) para fundar a civilização dos hebreus, no seio da qual se daria o advento do Messias, visitado na noite de seu natalício por três magos (sacerdotes-astrólogos) “do oriente”.

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