Ex-prisioneiros de guerra no Grande Hotel

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 André Luiz F. Torres

       Há uma história interessante sobre o Grande Hotel Campos do Jordão – hoje funcionando como hotel-escola do SENAC – que remonta à participação do Brasil na II Guerra Mundial.

Em dezembro de 1939, um luxuoso navio germânico de turismo de nome Windhuk (“Canto do Vento” em alemão), sob comando do capitão Willy Brauer, em uma arriscada manobra para escapar da perseguição da marinha inglesa que rondava a costa africana, desembarcou seus passageiros na Cidade do Cabo na África do Sul, disfarçou-se de navio japonês (na pintura e nas bandeiras) e, partindo do porto de Lobito, em Angola, cruzou o Atlântico e aportou em Santos com o nome falso de Santos Maru. O verdadeiro Santos Maru desatracara um dia antes do porto santista de volta para o Japão, o que causou confusão entre as autoridades e rebuliço na população caiçara.

O Brasil era então neutro no conflito mundial. Não obstante, o Windhuk foi detido e seus 244 tripulantes impedidos de deixar o país. Como as autoridades brasileiras prolongassem por tempo indeterminado o estado de dubiedade deles, nem presos impedidos de circular nem livres para deixar o país, os tripulantes passaram a se virar morando uns no próprio navio atracado, outros em pensões e hotéis santistas. Em espécie de férias forçadas, recebiam do consulado alemão seus soldos de marinheiros.

Em agosto de 1942, contudo, o Brasil declarou guerra ao Eixo. Já havia se propagado, pouco antes, a notícia de que o Windhuk seria confiscado pelo governo federal e vendido aos Estados Unidos. Os tripulantes alemães então, em outra manobra ousada, sabotaram a valiosa embarcação, atirando toneladas de areia, pedra e cimento nas caldeiras, o que custou a prisão imediata de todos, incluindo o capitão Willy Brauer.

Os 244 prisioneiros foram encaminhados para a Casa de Detenção do Carandiru, em São Paulo. Como agora fossem, entretanto, presos de guerra estrangeiros, e o governo brasileiro não pudesse detê-los como criminosos comuns, foram instalados em prisões provisórias em Pirassununga, Bauru e Ribeirão Preto, até ficarem concluídas as obras de dois campos de concentração brasileiros, um em Guaratinguetá e o outro em Pindamonhangaba.

Enquanto isso, na Europa, os vinte e cinco mil soldados da Força Expedicionária Brasileira embarcados para o cenário de guerra lutavam junto dos norte-americanos contra a resistência nazifacista nas montanhas geladas da Itália, com destaque especial para a difícil tomada de Monte Castelo. Já no final da guerra, a FEB fez mais de vinte mil prisioneiros do Eixo, particularmente com a rendição em peso da 148ª Divisão Alemã em abril de 1945, ocorrida depois da vitória brasileira em Montese. Na realidade, depois dessa batalha, os exauridos soldados alemães da 148ª Divisão, cercados na localidade de Fornovo, convencidos de que a guerra como um todo estava perdida, ademais sem comida e munição, com mais de quatrocentos feridos sem atendimento, temiam ser entregues no fim da sacrificante campanha a um batalhão exclusivo de negros (comandados por oficiais brancos) dos norte-americanos, conhecido por sua hostilidade para com os prisioneiros nazistas, e preferiram aproveitar a oportunidade de se render aos brasileiros com quem estavam frente a frente (brasileiros os quais, a propósito, constituíam a única força miscigenada não oficialmente segregacionista entre as tropas aliadas). Também foi aceito o pedido alemão, nos termos de rendição, de que os italianos que compunham a força nazifascista fossem tratados como prisioneiros de guerra, pois costumavam ser fuzilados pelos italianos comunistas que integravam as tropas aliadas. Outro item do termo era de que os soldados conservassem suas medalhas de honra adquiridas em combate.

O acordo foi fechado entre brasileiros e alemães, mas um grave imprevisto quase pôs tudo a perder. Eis o que sucedeu, segundo relato do expedicionário General Dionísio ao pesquisador Coronel Hiram Reis e Silva:

Combinada a rendição, cessou o fogo dos dois lados. Na manhã seguinte vieram as formações marchando garbosamente, cantando a canção Velhos Camaradas, também conhecida no nosso Exército. A cerimônia era tocante. Era até mais cordial do que o final de uma partida de futebol. Podíamos ser inimigos, mas nos respeitávamos e parecia até haver alguma afeição. Eles vinham marchando e cada companhia colocava suas armas numa pilha, continuando em forma, e seu comandante apresentava a tropa ao oficial brasileiro que lhe destinava um local de estacionamento. Só então os comandantes alemães se desarmavam. A primeira unidade combatente a chegar foi o 36º Regimento de Infantaria da 9° Divisão Panzer Grenadier. Seguiram-se mais de 14 mil homens, na maioria alemães, da 148° Divisão de Infantaria e da Divisão Bessaglieri Itália que os acompanhava.

Entretanto houve um trágico incidente: um nosso soldado, num impulso de momento, não se conteve e arrancou a Cruz de Ferro do peito de um sargento alemão. O sargento, sem olhar para o soldado, pediu licença a seu comandante para sair de forma, pegou uma metralhadora em uma pilha de armas a seu lado e atirou no peito do brasileiro, largou a arma na pilha e entrou novamente em forma antes que todos se refizessem da surpresa. Por um momento ninguém sabia o que fazer. Já vários dos nossos empunhavam suas armas quando o oficial alemão sacou da sua e atirou na cabeça do seu sargento, que esperou o tiro em forma, olhando firme para frente. Um frio percorreu a espinha de todos, mas foi a melhor solução.”

Durante toda a campanha da Itália, a 148ª Divisão foi a única divisão alemã capturada integralmente por uma força aliada antes da rendição total das forças alemãs ser oficializada em 2 de maio de 1945, pois todas as demais divisões conseguiram se retirar ao norte sem se render. Ao todo, a Força Expedicionária Brasileira aprisionou 2 generais, 493 oficiais e 19.679 soldados inimigos.

No Brasil, os 244 tripulantes do Windhuk permaneceram nos campos de concentração paulistas de Guaratinguetá e Pindamonhangaba até 1945.

Em Guaratinguetá o sistema era mais rígido, e os alemães não tinham contato com os brasileiros.

Já em Pinda o negócio era mais brando. Permitia-se que os prisioneiros recebessem visitas, saíssem para fazer compras na cidade e tocassem em festas. Os soldados brasileiros que guardavam o campo até tomavam caipirinha com os prisioneiros.

Quando libertados, em 1945, muitos alemães subiram de Pindamonhangaba para Campos do Jordão, atraídos principalmente pela oportunidade de trabalho nos recém-construídos hotéis de luxo Toriba (inaugurado em 1943) e Grande Hotel (1944), este último funcionando também como cassino, e tendo como sócio majoritário o alemão Heinz Hillebrecht.

Lá foram os tripulantes do Windhuk serra-acima trabalhar.

Heinz Bohme, cabeleireiro do navio, chegou em 1946 a Campos do Jordão. O depoimento transcrito a seguir, assim como os demais, consta do livro Memória Sentimental de Campos do Jordão, do escritor jordanense Pedro Paulo Filho, no capítulo dedicado ao jornalista e escritor Camões Filho, o qual publicou o livro-reportagem intitulado O Canto do Vento sobre a história do Windhuk. Assim relatou, nas palavras de Camões Filho, o cabeleireiro Heinz Bohme:

“Campos do Jordão, naquela época, não tinha um metro quadrado de rua asfaltada. Na minha primeira viagem para lá, levei 7 horas para chegar. Era uma cidade de tratamento de tuberculosos e só tinha três hotéis, o Toriba, o Vila Inglesa e o Grande Hotel, onde fui trabalhar. Foram mais de cinquenta alemães, saídos do campo de concentração, trabalhar lá, a orquestra toda, garçons, cozinheiros, jardineiro, porteiro, tinha de tudo. Nós iniciamos a hotelaria em Campos do Jordão, cidade que eu amo e onde moro há 47 anos. Não havia no Brasil treinamento de pessoal. Esses estabelecimentos lucraram com a nossa presença. Naquele tempo, o hotel atendia uma clientela exclusiva. Campos do Jordão era uma surpresa para nós. A gente ficava no campo de concentração preso, admirando aquela serra azul da Mantiqueira.”

Werner Ruhig, tripulante que foi cozinheiro do Grande Hotel, e chegou a abrir em Campos a famosa à época Boate 1.003 (localizada nesse número da rua Brigadeiro Jordão), contou que “transportados para os campos de concentração de Pindamonhangaba e Guaratinguetá pela Polícia Especial de Getúlio Vargas, as pessoas olhavam para nós e diziam: Olha os nazistas! Coitados de nós. Não tínhamos nada com a guerra nem com a política. O governo brasileiro não sabia o que fazer com a gente.

Contou ainda o cozinheiro Werner Ruhig que, certa feita, um grupo de alemães necessitado de atendimento dentário foi transportado, com escolta, ao centro de Pindamonhangaba, e na volta pararam todos no Bar Central para relaxar, mas “os soldados quase não tinham dinheiro e começamos a pagar cerveja para eles. E eles ficaram bêbados. Aí falamos: agora, precisamos voltar ao campo. Então voltamos, nós na frente com os fuzis e todos os soldados bêbados atrás”.

Outra patuscada memorável foi a de Paul Scherer, tripulante que foi garçom por muitos anos no Grande Hotel, o qual, enquanto prisioneiro no campo de Pindamonhangaba, foi liberado certo dia para ir ao mercado da cidade. Contudo, como ainda não falasse nem entendesse absolutamente nada de português, acabou se perdendo nas ruas de Pinda. Somente conseguiu chegar de volta ao campo de concentração já de noite, e mesmo assim o guarda não quis deixá-lo entrar, tendo-lhe custado muito convencer os soldados de que era um preso, havia se perdido e que precisava retornar ao seu campo de concentração.

Willi Schlote, tripulante que foi barman do Grande Hotel, declarou que, em Pindamonhangaba, “a vida era boa. Nós cuidávamos da limpeza, plantio, colheita e silagem. Os engenheiros ajudaram a recuperar máquinas e tratores. Morávamos em um enorme estábulo, transformado em dormitório, mas recebemos autorização e material para construirmos cabanas individuais, onde podíamos receber visitas. Chegaram a ser construídas quase cem cabanas de madeira e sapé.

O futebol era de lei nas tardes de domingo dos alemães, que, segundo o barman Willi Schlote, venciam constantemente os amistosos contra a equipe dos funcionários da Estrada de Ferro Campos do Jordão.

Talvez algo que adivinhasse, em pleno território nacional, a catástrofe dos 7 a 1 do Mineiraço na semifinal de 2014, setenta anos depois. Mas nada, igualmente, que parasse Ronaldo, Rivaldo, Ronaldinho Gaúcho, Roberto Carlos e Cafu na final da conquista do penta em cima da Alemanha de Oliver Kahn em 2002. O fato é que não se sabe se os alemães que foram parar no Grande Hotel Campos do Jordão formaram a primeira seleção alemã a vencer em solo brasileiro.

***

2 Respostas to “Ex-prisioneiros de guerra no Grande Hotel”


  1. 1 Marilda Molina 24/11/2018 às 9:39

    Maravilhosas memórias que formaram Campos do Jordão… Sabemos que esses alemães trouxeram para a cidade o famoso Strudel de maçã, sobremesa integrada à nossa gastronomia…


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