Jogo Arriscado [capítulo]

A encomenda valia cinco mil reais. Era um celta. Por volta das oito da manhã, numa quebrada do Capão Redondo, periferia de São Paulo, quatro rapazes adrenados de cocaína, um deles menor, sobem em duas motos e partem para um assalto. Encontram a encomenda trafegando na altura da estrada de Itapecerica da Serra, e perseguem-na até a entrada de um motel.

O menor salta da moto com pistola em punho e enquadra os ocupantes do veículo, dois homens desarmados, que são arrancados para fora e deitados com a cara no chão. Toma-lhes documentos, chaves, celulares, o que consegue vasculhar. Outro rapaz, mais experiente em pilotagem, assume o volante do carro das vítimas e parte em alta velocidade. As motos o seguem, e as vítimas são deixadas intactas no chão da entrada do motel.

Pouco depois, porém, o menor viajando na garupa de uma das motos olha para trás e vê uma viatura da ROCAM em sua perseguição. Seguidos? Traídos? Sem tempo para divagar: o menor avisa os comparsas, que aceleram tudo e se dividem por caminhos diferentes.

A moto com o menor entra na contramão de uma avenida, e consegue despistar a polícia temporariamente. Logo o piloto para a moto e dá uma ordem ao menor:

– Desce e sai correndo, moleque! Daqui eu vou sozinho.

A intenção era dividir ainda mais o grupo, dificultando a perseguição pela polícia. Mas o menor, sabendo que a moto em fuga é que continuaria sendo visada na perseguição, e ele próprio não, manteve outros princípios:

– Não! eu estou com você, parceiro: vou até o final. Se for para ir preso, vamos nós dois. Eu não vou deixar você na mão, truta.

– Não, moleque, sai fora, sai fora!!

– Não, eu vou com você!

Como o menor não descesse, partiram. A polícia estava por perto e os encontrou de novo. Nova fuga em velocidade pela avenida.

Mais à frente, um farol fechado. Pressionado pela aproximação da viatura policial, o piloto tentou passar direto pelo cruzamento – a mais de 150 km/h. Chocaram-se contra um motociclista que passava regularmente no sinal verde, e voaram. O menor aterrissou de ombro contra a guia da calçada e sentiu a clavícula deslocar. Paralisado, viu seu parceiro em pior estado, desacordado junto à moto, banhado de sangue. O motociclista que não tinha nada a ver com aquilo, por pura sorte, não ficou gravemente ferido (diferentemente do que aconteceu, por exemplo, neste mês de julho de 2011 na cidade de Guarulhos, quando três menores, dois de 15 anos e um de 12, assaltaram um carro e, na fuga, bateram num veículo matando duas jovens mulheres, uma delas mãe de um bebezinho de nove meses, que também estava no carro e foi arremessado para fora como um saco inerme, tendo sofrido traumatismo craniano). Imediatamente os policiais chegaram. Um deles pisou a cara do menor com a sola de sua bota. Era a terceira vez que caía nas garras da lei. E agora já tinha 17, quase 18 anos.

*

A primeira foi quando tinha 13 para 14 anos. Vinha desde os 12 fazendo pequenos furtos com seus colegas de gangue, onde aprendeu a fazer uma “bolsa antialarme”, especialmente forrada, com a qual furtava em shoppings e supermercados sem ser descoberto. Com a prática, foi aprimorando a técnica de ação com a bolsa, usando-a cada vez mais profissionalmente.

No dia em que haveria de cair, entrou no hipermercado de mãos dadas a uma garota da turma – o desbaratino, como é chamado este expediente de dissimulação. Ela já tinha estado no interior da loja fazendo um levantamento do local, e passara para o menino a posição das câmeras. Foram então até o fim de um corredor desprotegido e encheram a bolsa antialarme de mercadoria. Não contavam, porém, com o olho vivo de um segurança que, à distância, ganhara o movimento. Este apontou para o menor na saída:

– Ei você, garoto, parado aí!

Mas o menino disparou com a bolsa pelo acesso ao pátio do estacionamento. Lá fora, carros e mais carros, e a cerca divisória com a rua só muito adiante. Olhando para trás, viu vários seguranças no seu encalço. Então correu abaixado por entre os carros até o meio do pátio, enfiou-se embaixo de um deles e depois ainda rolou para debaixo de outro.

Quieto, imóvel, acompanhava os passos dos vigilantes se aproximando, dos quais só via os calçados correndo pra lá e pra cá. Até ouvir um deles falar: “Tá aí, ó!..”, certamente apontando para seu esconderijo. Estava cercado. Logo sentiu uma mão puxando seu pé. Reconheceu que perdera, e não reagiu mais. Somente ao gerente do hipermercado, que num quartinho lhe atirou água no rosto reclamando do furto em seu estabelecimento, respondeu:

– Não estou roubando nada do que é seu!

O menino tinha a língua afiada.

Com a chegada da polícia militar, foi levado para um abrigo provisório de menores, donde seu pai, tendo sido comunicado pelo Conselho Tutelar, retirou-o três semanas depois – falando um montão na sua orelha.

Não adiantou. Pelo contrário: depois desse dia, o garoto parece ter perdido o medo, e se  empolgou em furtar. Afinal, já tinha passado pela experiência de ser pego pela polícia, já tinha decepcionado o pai, sabia que não era o fim do mundo. De agora em diante não haveria mais o medo do desconhecido.

Porém, na segunda vez em que foi pego – desta vez furtando um tênis numa loja de shopping – não foi mandado para um simples abrigo provisório, mas direto para a internação na FEBEM.

*

Foi no dia de seu aniversário. Segundo o costume de sua pequena gangue, quando um dos membros fazia aniversário, todo mundo se juntava para furtar para o aniversariante, arrumando-lhe presentes. E  assim o fizeram: já de manhã, furtaram roupas de uma loja com sucesso. Se tivessem se dado por satisfeitos, não teriam caído. Mas de tarde resolveram empreender novo furto – o tal tênis no shopping – e aí foram pegos.

Assim começava a primeira de uma série de três internações na FEBEM que fariam este menor, hoje com 20 anos, perder a liberdade durante mais de dois anos de sua adolescência, fora os vários meses em semiliberdade, cumprindo medida socioeducativa de Liberdade Assistida no CREAS de Ferraz de Vasconcelos.

Virgílio[1] chegou ao CREAS de Ferraz em fevereiro de 2007. A informação era de que seu comportamento como interno havia sido exemplar: adolescente tido como respeitoso, solícito, disciplinado, interessado, participativo, dinâmico, aplicado. Ainda por cima estudioso. E tudo isso por iniciativa própria, sem necessidade de cobrança da parte de ninguém. O único senão nesse currículo impecável talvez pudesse ser certa predisposição à contestação – mas a própria educação moderna prefere isto à apatia e aceitação automática de imposições, de modo que temos aí mais uma virtude a apontar que um defeito. Então, como explicar esse bom comportamento, tão raro hoje em dia, seja num adolescente de alta ou baixa classe, estudante de escola pública ou particular?   

Vejamos o que diz o menor:

“Lá dentro, no sistema, funciona da seguinte forma: você tem que jogar o jogo. É tudo um jogo. Você tem que jogar o jogo do funcionário, mas não se iludir na ideia dele. E nunca demonstrar pros caras [os outros adolescentes internos] que você está escutando ideia de funcionário. E jogar também o jogo dos caras – e sempre na verdade jogando o seu próprio jogo.”

Em outras palavras, pragmatismo: olhar com realismo para sua situação, ver o que é preciso ser feito para se dar bem, e fazê-lo. Até porque o jogo do sistema está posto de forma inelutável para o interno: é jogar ou jogar. Isto não é surpresa, quando a própria queda no sistema é prevista no jogo como parte integrante:

O cara, quando está na vida do crime, está sujeito a tudo: matar, morrer, ir preso. Então já tem na sua mente o que pode acontecer. Aí quando acontece, não adiante se lamentar. Adianta o quê? Você encarar o sistema com competência. Com a cabeça em pé. Do mesmo jeito que você é homem aqui fora, você é homem lá dentro. Da seguinte forma: não deixando rastro pra ninguém te cobrar nada.

Assim Virgílio procurava se equilibrar no fio da navalha entre funcionários e demais internos, sem escorregar. Um jogo em que cada movimento deve ser bem calculado, haja vista que

“…a partir do momento em que você troca ideia com funcionário, os moleques pensam que você está cagoetando alguma fita.

Na última e mais pesada de suas três participações no “jogo” da FEBEM, Virgílio estava mais corrido no crime e, confiante como sempre em seu poder discursivo, arriscou apresentar cartas altas assim que chegou, diante de mais de 100 adolescentes internos de seu alojamento. Estes perguntaram-lhe, como de costume, qual era o seu B.O., isto é, a infração que o levara a cair ali.       

– Firmeza –  respondeu Virgílio –, meu B.O. é tal, moleque, sou de tal quebrada. E a caminhada é a seguinte: vim preso sozinho e vou sair sozinho.

Todos ficaram calados, observando. Virgílio prosseguiu:

– Isso quer dizer o quê, moleque?: eu faço a minha caminhada, eu corro com as minhas pernas, eu faço o que eu quero.

Sem dúvida falava um sujeito determinado. Um dos mandachuvas dos garotos comprou sua ideia:

– Moleque, é um desse que a gente queria, truta. Pode vir pro nosso lado.

Virgílio não se deu por satisfeito:

– Moleque doido, não tem essa de vir pro nosso lado. O certo é o certo. Se você está me chamado pro seu lado, e um dia você estiver errado, você vai ser cobrado por mim também, mano.

            Tuchê! A esgrima verbal terminava a seu favor. Ainda mais que a referência sobre “o certo” – isto é, o domínio da “lei” da bandidagem – indicava que o novato na unidade não era, contudo, novato no crime.          

– Aê, moleque, é isso mesmo! Nós também é radical, pode vir!

            E assim se enturmou.

            Em breve, seria uma liderança na unidade. Bem articulado, tornou-se espécie de porta-voz dos internos frente à diretoria. Teve atuação destacada numa rebelião, servindo de interlocutor entre as partes, colocando de modo claro e firme as reivindicações dos colegas para o diretor, no que colaborou para o efetivo sucesso em atendê-las.  

No dia a dia comum, era malandro com quem tinha de ser malandro, sem deixar de ser um “aluno nota dez” com a equipe educacional. O tipo “malandro-agulha”, que só anda na linha? Ele mesmo diz:

Enquanto nós [o grupo de estudantes aplicados] estávamos estudando, os caras [a maioria indisciplinada] estavam trocando ideia, perturbando um o outro – e nós só lá, estudando“.

 Ao longo desses anos de internação, Virgílio diz ter lido mais de 50 livros na biblioteca na unidade. De fato, participou de todas ou quase todas as oficinas e atividades extracurriculares oferecidas. Ganhou campeonatos. Aprendeu a fazer boné, tapete, quadro, touca, encanamento, grafiato em parede, até bonecas para crianças.   

Todas essas aulas, todas essas experiências que eu tive lá dentro, hoje em dia servem, porque se eu tiver que trocar o cano da minha casa, não vou chamar ninguém. Eu mesmo vou lá e troco.

Isso por um lado, porque por outro, embora Virgílio reconheça que “ali eles dão várias coisas para você fazer; lá tem várias oportunidades, vários cursos, várias coisas”, completa dizendo:

 “Mas aquilo dali não significa nada pra ninguém. Significa para os que querem; mas no meio de mil, é um que quer sair da vida do crime. Então é uma faculdade do crime, sabia? Porque ali é o dia inteiro com os malucos pensando coisa errada. Eu fiquei 2 anos trancado no meio de 250 cabeças, e essas 250 cabeças era o dia todo maquinando o mal: ah, eu arranquei cabeça de tal fulano, eu matei tal fulano, quando eu sair daqui eu vou matar tal fulano… sempre assim.”

Mas no final das contas, Virgílio demonstra é gratidão para com a FEBEM,

 “Porque lá dentro eles viram o meu potencial. Eles pensaram: pô, esse mano é inteligente. E falaram: você vai sair daqui uma nova gente.

Daqui se vê o quanto o reconhecimento e a valorização são importantes no processo de ressocialização (e que aplicar isso é possível).

Quem vê esses resultados talvez possa ser levado a imaginar Virgílio como um sujeito que, na FEBEM, tornou-se calado, reservado, afastado das más companhias, das patuscadas e tirações de sarro típicas de adolescente – um típico c.d.f. ou nerd, por assim dizer. Nada mais falso: sua dedicação aos estudos e respeito aos professores não o impediam, de modo algum, de conviver confortavelmente entre a “turma do mal”, de manifestar seu talento comunicativo e caráter expansivo de modo irreverente. Mas era um sarrista tão liso, tão pronto a atiçar uma confusão sem nela se comprometer, que mereceu o apelido de CORINGA:

– É, você é o Coringa, moleque! – repetia-lhe um amigo, aludindo ao famoso personagem dos quadrinhos.

Virgílio um dia perguntou-lhe por quê.

– Você dá risada, mas gosta de ver o inferno, né?

Ao que Virgílio argumentou:

– Mano, a alegria do palhaço não é ver o circo pegar fogo? Então, eu estou dando risada, estou deixando o circo pegar fogo… 

E assim ia ateando fogo sem se queimar, de modo a poder afirmar que

 “Graças a Deus, em todas as situações que teve lá dentro, eu nunca deixei a desejar. Desempenho nota dez. Aí sim, eu posso dizer: desempenho nota dez“.

O dez aqui significa zero, isto é, nada (zero) a dever para um lado (a bandidagem) ou para o outro (os funcionários). E isto sem fugir, sem se esconder; pelo contrário: participando ao máximo da vida comunitária da unidade. Talvez também porque o curinga seja aquela carta do baralho que se encaixa facilmente com todos, e no fundo com ninguém; aquele que ri com todo mundo, mas está sempre de fora. Junto de todo mundo, e sempre sozinho. Porque neste mundo cão não se confia por inteiro em ninguém, senão em si mesmo.

*

Mas houve pelo menos alguém “de fora” que durante todo este tempo de queda no sistema nunca deixou Virgílio inteiramente sozinho: Reginaldo[2], seu pai. Este jamais deixou de visitá-lo, jamais desistiu dele. Por mais errado que soubesse estar o filho, contratou advogados para defendê-lo, acompanhava o processo de perto. Levava-lhe cigarros. Em meio ao nevoeiro da internação, seu Reginaldo foi ancoragem em águas conhecidas, seguras, além de intercessor: com ele, Virgílio sabia que não estava esquecido dentro do sistema jurídico-administrativo do Estado, para o qual cada interno é mero número, dado anônimo. Virgílio tinha nome e sobrenome, tinha pai.

Segundo Virgílio, a presença do pai, com quem mora hoje, foi fator determinante para que largasse a vida do crime:

Meu pai foi quem fechou comigo em todas as vezes que eu fui preso. Ele estava lá, indo me visitar, toda vez. Estava lá, com o jumbo [comida]. Eu trocava a maior ideia com meu velho. E hoje em dia eu dou o maior valor pra ele. Se não, era pra eu estar com um oitão na cintura e um pacote de droga no pé, vendendo, ou então assaltando por aí. Mas não. Eu prefiro ficar duro, sem um real, e estar aqui“.

Nem sempre foi assim. O depoimento abaixo mostra uma imagem menos favorável do pai, segundo uma escala de valores bastante clara e consciente, bastante reveladora das motivações do jovem:

Eu gosto do meu pai pra caralho. Ele é batalhador. Só que… e aí? Da batalha que ele fala pra mim, que ele já teve e fez, hoje em dia eu falo pra ele: pai, você não tem nada. Me desculpe eu falar, mas você não tem nada. Porque hoje em dia você vale o que você tem. Se eu tenho uma Oakley® original, os caras falam: pô, mano, uma Oakley®! – quinhentos mil reais, mano, e o cara tá com uma! Então o meu valor está aqui, mano. O meu valor está numa botinha da Oakley®, numa calça da hora, numa Lacoste®. É assim, mano. Eu falei pra ele: você não vale o que você é, você vale o que você tem. Mas isso para algumas pessoas, porque para mim, isso daqui não significa nada. Pode vir alguém, meter um revólver em mim e levar embora. Pra mim, importa o que você é, não o que você tem, o que você está usando. Porque às vezes eu posso estar de terno e gravata e ser um sem-vergonha. Então eu aprendi isso também na vida. Eu falo pra ele: você trabalhou, trabalhou, trabalhou, e aí, mano, o que você tem? ‘Eu comprei essa chácara, eu e seu vô’. Firmeza, comprou a chácara – firmeza, nota 10. E mais o quê? Mais nada. Hoje em dia eu prefiro tirar uma moto, ou um carro, dormir dentro do carro, mas eu tenho um carro. É o que você vale. Foi que nem eu falei pra ele: meu, me orgulho pra caralho… todo mundo aqui gosta do velho, é bandido, polícia, traficante, todo mundo gosta dele. Mas foi o que eu falei pra ele: não adianta a gente ficar só iludido que, se a gente vai seguir uma regra, a gente vai se dar bem. Às vezes se dá. Às vezes você só vai seguir, vai ficar seguindo, só vai ficar no raso. E o mundo vai passando, e você vai ficando pra trás. É onde o mundo passa por cima de vc.”

A visão de mundo superficial acima não surpreende: é o resultado mais do que conhecido cientificamente – e esperado – do bombardeio ininterrupto de “sonhos fabricados” com que a indústria cultural, interessada em empurrar as vendas de seus patrocinadores, procura absorver o público na cultura massificada de nossa sociedade, na qual prevalecem, de modo disseminado, os valores de aparência e consumo – consumo até das pessoas – acirrando o utilitarismo (uso das pessoas como instrumentos), a luta cega por sinais de status, o vale-tudo na concorrência social, o individualismo, blá-blá-blá. Ou seja: o pobre discurso do nosso jovem é reflexo, infelizmente (para nós), de uma leitura realista do mundo em que vivemos. Por isso, por mais que seu pai lhe fale insistentemente, com toda a razão do mundo, que “ser pobre não é defeito“, o jovem não consegue aceitar essa verdade que contradiz a realidade do mundo, onde a aparência de status forçada pelo símbolo de uma marca no tênis acaba valendo mais que o espaçoso terreno de uma chácara num bairro afastado, invisível. 

            Quanto ao seu notado desencanto pela vida regrada, certinha, pacata – que já é desmoralizada normalmente pela cultura de massa (que aliás valoriza o oposto: o predador, o dominador etc.) –, o que dizer a esse jovem, se dentro de sua própria casa, o “homem da regra” – seu pai Reginaldo –– foi para ele o exemplo concreto de alguém que “o mundo passou por cima”? Isso principalmente porque seu Reginaldo, que trabalhou honradamente 20 anos como mecânico de empresa (hoje é ferrador de cavalos), acabou passando por seus problemas (pessoais e de classe social) e se enrolou com a bebida. Quase pôs tudo a perder, principalmente sua honra. A desmoralização que o alcoolismo trouxe ao pai foi determinante para a revolta do filho:

Meu pai é um cara muito sofredor, um cara muito batalhador, um cara que eu respeito demais. A bebida deu sim, uma acabada com ele. Isso me deu mais revolta ainda. Ver meu coroa na porta de bar, sendo chamado de pinguço, apanhando, esses bagulhos aí me revoltaram.  Eu falei pro meu pai: nunca ninguém vai levantar a mão pra você. Se um dia alguém levantar, eu corto na frente dele. Assim, ó: toma. Já era. Ali no rostinho do velho, ali ninguém bate não. Pode bater no meu, mas no dele não, mano. E tem pessoas que chamavam ele assim [de ‘pinguço’] antigamente, e hoje em dia eu nem converso. Hoje em dia eu só quero isso aqui só, pra eu dar uma na cara – ‘Essa daqui é por aquela palavra!’. Então tem tudo isso, toda essa revolta.” 

            Pode-se supor que haja aí também, psicanaliticamente falando, uma revolta estendida contra toda autoridade, posto que a derrocada moral do pai constitui, no filho, uma vergonha/humilhação e, por isso, motivo de revolta contra o pai, o qual constitui figura de autoridade referencial para todas as demais, o que enfim acarretaria desprezo contra as leis verbais que, igualmente, se apresentam sem legitimidade prática.

            Afora essa suposição (algo provável), o que se vê, em várias declarações, é um grande amor pelo pai, ainda que contraditório. Este amor parece ter-se intensificado pela reconciliação ocorrida durante a internação de Virgílio na FEBEM, hora difícil em que seu Reginaldo revelou ao filho a firmeza da fidelidade paterna.

É possível que esse amor tenha se alimentado, também, do reconhecimento a um homem que, afinal, criou o filho sozinho, sem o auxílio de companheira, sem o auxílio da figura da “mãe”. Porque a verdade, além (e aquém) de tudo, é esta: Virgílio praticamente não teve mãe (eis um diferencial importante de seu caso, numa sociedade em já estamos acostumados à ausência do pai, e que cada vez mais começa a sentir a ausência também da mãe). Sim: a figura da mãe – esta instituição tão fundamental na vida de um ser humano, tão intrínseca – nosso jovem quase não chegou a conhecer.

Diz-se quase, porque, na verdade, Virgílio até a conheceu pessoalmente: mas só quando tinha 9 anos de idade, momento em que ela reapareceu subitamente na porta da sua casa para se apresentar. Estava muito diferente da mulher bonita que ele conhecera por foto: agora estava magra, pálida, abatida, arruinada. 20 dias depois morreu. Tinha câncer. Viera se apresentar ao filho antes de se despedir para sempre. E assim passou a mãe de Virgílio pela sua vida, como um raio. Assim terminava a vida de mais uma vítima do crack, droga pela qual aquela mulher havia deixado marido e filhos.

Eis como Virgílio comenta o fato:

Eu já não tinha ela presente. Isso já me revoltava. Ela me aparece depois de nove anos, e depois de vinte dias ela morre? E aí? Como é que você acha que a minha mente não é? Minha mente é totalmente confusa, esperta, minha mente é assim: é briguenta, é inquieta, acho que mesmo dormindo eu estou brigando com alguém. Por eu não ter essa estrutura, foi o que me abalou. Mas me abalou e não me abalou; sabe por quê? Eu não tinha uma convivência com ela. Não tinha aquele apego de “mãe, vem cá! mãe, vai lá!”. Mas dói. É a mãe. Aí eu tive que construir as minhas colunas. Eu tive que ser o meu eixo. Eu tive que ter o meu rebolado“.

*

            Claro que este rebolado desenvolveu-se principalmente nas habilidades de rua, não nas escolares. Era na rua – na malandragem da rua – que Virgílio via retorno prático de sua astúcia, via potencial de ascensão. Não que Virgílio não tenha tentado jogar o jogo da escola:

Nesse jogo [da escola], eu joguei. Minhas notas eram dez, nesse jogo. Mas só que eu, por mim, eu vi que, se eu continuasse jogando esse jogo, eu não ia me dar bem em nada. Aí eu escolhi outro jogo, o jogo que me ofereceram, certo? Foi que nem se diz: ‘A família dispensa, o crime acolhe’, sabia?Às vezes eu vou ali, pedir a oportunidade de um trampo, ninguém me dá. Aí eu desço ali na biqueira: ‘Ô, arruma um trampo pra mim’, os caras falam:’tá aí, moleque!’ Tá vendo como é fácil ” 

Além desse alegado “senso de oportunidade”, outros fatores provavelmente contribuíram para o desinteresse de Virgílio pela escola. Primeiro, porque o “jogo da escola” (buscar a premiação por meio de notas boas e evitar a reprovação) precisa ser considerado importante antes de tudo pelo próprio aluno, para que este queira jogar e possa se desenvolver. Se falta este interesse, falta o essencial. E tal interesse pela escola e suas competências deve vir, antes de tudo, da própria casa do aluno, da própria família. A família é o parâmetro e o exemplo. Ora, absolutamente não é isto que ocorreu com Virgílio, que não teve mãe presente e cujo pai, que só estudou até a quarta série, parece não ter valorizado suficientemente a escola:

Eu já não tinha minha mãe presente. E quando tinha reunião, meu pai não se apresentava em escola. Meu pai geralmente ia me levar de bicicleta. Mas sempre eu voltava sozinho.”

            Ao responder sobre o motivo de seu pai não ir às reuniões nem buscá-lo na escola, Virgílio revela – de modo espirituoso – uma mágoa (para com o pai) e uma carência (desse pai):

Meu pai não ia porque tinha muito serviço; por isso, se eu descobrir quem inventou o serviço, ele tá na merda.

A relação de Virgílio com o jogo morno da escola (e o jogo quente da rua) resume-se nas falas abaixo:

O que me atraía mais era a rua. Bem ou mal, eu estudei, só que eu aprendi mais com o mundo do que com a escola. Minha escola real mesmo foi o mundo, não foi ali escrevendo não. Aprendi na prática. Hoje em dia tudo o que eu sei, agradeço sim um pouco à escola, mas o resto eu não agradeço mais nada. Agradeço a mim!

Quando eu era criança eu não queria nem saber de estudar. Só de brincar em sala de aula. Brincava mas não repetia. Eu era um cara que não repetia: chegava na hora da escola, eu não estudava: me dava lá a prova, eu – pzz – já sabia. Eu era da turma do fundão, mas eu já sabia de tudo. Brigava? Brigava muito! Eu sou um cara inquieto. Sou um cara impaciente, não consigo ficar trancado num lugar. Pergunta pro meu pai: eu acordo 7-8 horas da manhã, tomo banho e saio. Minha dificuldade não era com estudos; era ficar confinado, escrevendo. Você acha que aquilo não cansa, ficar escrevendo? Então, eu não via a menor graça nisso.

Já na 5ª-6ª série, eu falava que ia pra escola mas não ia. Eu ia pra escola e saía fora. Simplesmente a diretora olhava pra minha cara: ‘Você não vai entrar?’ – ‘Não, meu! Não vejo graça aí dentro’. Sabe por quê? Porque a rua me agradava. Lá na quadra no lado de fora tinha som, tinha uns caras fumando maconha, tomando vinho, jogando baralho. Então, eu ficava de lá de cima da sala de aula olhando e pensava: ah, o que que eu vou ficar fazendo aqui no meio dum monte de trouxa? Então eu vou sair fora. Eu ficava olhando e falava: tá bom que eu vou ficar perdendo meu tempo aí com esses nerd.

Esse era o pensamento… tanto que hoje em dia eu falo: caramba, já era pra eu ter terminado os meus estudos, eu sou o maior burro. Então hoje em dia o pensamento é diferente: os caras não são nerd, os caras são inteligentes. E os burros são os caras que estavam lá fora…

 Se eu não sei ler, eu não sei escrever. Pra eu poder saber ler e escrever eu tenho que estudar português. Pra eu trabalhar com negócio, no ramo de negócio, eu tenho que saber fazer conta, então eu tenho que estudar a matemática…

(Este último parágrafo, Virgílio recitou-o na entrevista de modo ligeiramente artificial, como reproduzindo-o de discurso alheio posteriormente incorporado)

O fato é que o menino foi assim se desenvolvendo nos jogos e brincadeiras de rua, se destacando como moleque esperto, bom de bola e de briga, rápido na palavra, perdendo cada vez mais o interesse pela escola.

Por volta dos 12-13 anos, Virgílio Começou a andar no bairro com companhias mais pesadas:

Os caras eram mais velhos, eu andava junto, a gente colava em padaria, em bar… ‘Vamos beber? Vamos jogar bilhar? Vamos jogar um dominó?’, e assim foi indo…. Truco, caixeta, tranca, aprendi tudo isso em bar, porque você vê ali o cara só ganhando dinheiro. Você fala ‘ah, vou apostar 10 pra ver no que dá!’. Bilhar a mesma coisa: jogo bem, tem umas jogadas que às vezes nem eu acredito que dá certo. Eu assim fui me misturando… Outras mentes, você vai adquirindo outros conhecimentos…

…aí é onde você acaba ou infracionando, né, meu? Ou então arrumando um jeito melhor, que é o serviço. Mas eu tinha optado pelos caminhos errados.

            (Este último parágrafo também destoou do conjunto por sua artificialidade, principalmente na parte “ou então arrumando um jeito melhor, que é o serviço“, indicando possível cinismo pragmático na assimilação do discurso social)

O fato é que Virgílio foi perdendo a inocência de suas brincadeiras infantis, partindo para jogos cada vez mais arriscados, menos saudáveis. A pipa e os banhos na lagoa cederam espaço à farra em boteco, ao movimento nas quebradas. E a admiração pelos caras da turma da pesada ia crescendo.

            Logo montou, com os amiguinhos de sua idade, uma pequena gangue delinquente – espécie de berçário do crime, brincando de imitar a máfia adulta – não muito por necessidade material, mas por desejo de aventura e vontade de afirmação pessoal. Entrava assim no jogo dos furtos, onde, como vimos, se empolgou até a “bolsa antialarme” e acabou por cair preso na FEBEM, que lhe pôs em contato com a marginalidade juvenil em suas diversas manifestações.

*

Na volta para as ruas, entrou para o tráfico, que era o verdadeiro lugar dos caras da pesada no seu bairro. Aqui a coisa ficou mais séria:

A partir do momento em que você está ali, que você entra na vida do crime, você já está se arriscando por completo. Não tem essa de pequeno risco, maior risco. De eu ficar ali na esquina com uma maleta de droga, eu estou me arriscando a ir preso. Ou então vir um pé de pato [policial aposentado] e me matar. Porque eu ficava a madrugada inteira. Tinha risco de vir um noia e eu não querer vender fiado pra ele, e ele me dar uma facada…

Mas Virgílio parecia possuir as habilidades necessárias para se dar bem nesse jogo arriscado, de modo que sua ascensão na carreira do tráfico foi rápida: tornou-se gerente de sua biqueira (ponto de venda de drogas), comandando uma célula da organização, cerca de cinco criminosos armados. Que habilidades seriam essas?

Todo jogo tem sua regra. E no jogo do crime a regra é a seguinte: nunca errar. Porque se você dá uma jogada errada, já era: é xeque-mate; os caras tem pegam e já era. Então, uma das habilidades nesse jogo é você saber ludibriar uma pessoa na conversa, certo? Outra habilidade é você saber distinguir o certo do errado. Em que sentido? De repente, um maluco talarica alguém – talaricar é pegar mulher dos outros, entendeu? –, aí você está ali pra quê? Pra distinguir o certo do errado. Às vezes o cara pode estar errado, mas e a mulher? A mulher também está errada. Então a gente vai pôr na balança o peso do erro dos dois. Conforme o peso, vai vir a cobrança. A cobrança vem na altura do erro: se você tirou uma vida, você vai pagar com sua vida. De repente, o porquê que você tirou aquela vida: se você tirou estando certo, firmeza; mas se você tirou estando errado – você não comunicou ninguém que você ia tirar aquela vida –, então você vai pagar com a sua vida.”          

Dotado assim da inteligência retórica e do senso de “justiça”, Virgílio esmerava-se em aplicar o código de conduta do crime nas mais variadas situações:

Código do quê? Nunca errar. É como se diz: ‘Quem não nasceu para servir, não serve para viver’. Esse é o lema do CV, e infelizmente a gente segue esse lema… Se o cara quer usar a droga dele, nós temos pra vender, mas o negócio é o seguinte: jamais ele vai roubar a mãe dele, um botijão de gás, e vai vir na biqueira trocar. Porque se ele vir com o botijão de gás, ele vai apanhar com o botijão de gás; e nós levamos até a casa da mãe dele, pomos ele de joelho – ‘vai, beija o pé da sua mãe’. Eu já fiz isso. O cara roubou o quê? Um saco de arroz; vendeu e foi na nossa biqueira comprar pedra, e a mãe dele gritando na rua ‘você não vai devolver o pacote de arroz?’. Eu: ‘O quê!?! Quer dizer então que você rouba sua mãe pra fumar crack!? Então vem cá que nós vamos trocar uma idéia: Vai lá, ajoelha no pé dela e pede perdão!’ – falei isso na frente da mãe dele, eu com o oitão na mão assim, sete janelas. Aí a mãe dele olhou pra minha cara, eu falei: ‘Tia, não se preocupa que nós não vamos matar seu filho, mas só que o couro que a senhora não deu, nós vamos dar, certo? Então, ‘Pede perdão pra sua mãe, e vamos ali que nós vamos trocar uma idéia’. Já era: chegou lá ele apanhou que nem criança, devido a ele ter feito isso. O cara quer usar o que ele quer, dane-se. Só que sustenta seu vício, mano. Eu aprendi um bagulho na minha vida: se você não pode pôr dentro de casa, nunca tire; se você não pode trazer nada, jamais tire alguma coisa. E principalmente de família. Jamais.

O rigor na aplicação da “justiça”, aliado ao zelo para com o território parecem ter valido a Virgílio algum reconhecimento enquanto “protetor” da quebrada:

Pelo lema que eu conheço, que me ensinaram, e pela convivência que eu tive com vários caras, os caras sempre ensinaram: ‘Seja humilde com todo mundo. Aonde você chegar, saiba entrar e saiba sair; mas seja humilde’. Por isso – pelo menos ali na minha quebrada – todo mundo me adora. Mesmo eu tendo sido do crime. Ali dentro a população já presenciou tanta coisa que eu e mais 5 caras fazíamos. Mas a gente nunca virou as costas pra sociedade, pra população. Direto a gente dizia: ‘Ô tia, tá precisando dum botijão de gás?’; ‘Dona, a senhora quer uma ajuda para subir com a cesta básica?’ Sempre isso: ‘Tá precisando de um remédio? De alguma coisa?’ Jamais deixava alguém de fora vir zoar na quebrada: tipo roubar um bar da quebrada, roubar um varal, um dvd, jamais. A gente não admite isso. Por isso que, do jeito que a gente deixou a quebrada, o bagulho está. Tem pessoas que falam pra mim ‘Pô, mano, minha moto dorme no portão da minha casa, ninguém mexe; meu carro, com o vidro abaixado, dvd lá dentro, ninguém mexe’. Não desandou. É tipo um dilema, mano.”

Claro que a posição de gerência no tráfico trazia mais responsabilidades, riscos maiores ainda e, consequentemente, mais paranoia: 

Tem outros riscos: sair uma treta e eu ter que estar envolvido pra separar, e de repente tomo um tiro. Também tem a inveja – tem muita inveja, mano. Muitos rivais. Porque mesmo que o cara cole na sua quebrada, ele pega na sua mão, mas você vê a inveja no olhar, no jeito dele pegar na sua mão, no jeito dele trocar idéia com você; porque o cara que te considera mesmo, ele troca ideia olhando no olho, jamais ele vai ‘ah, que não sei o quê e pá’ – isso aí já é falsidade. Tem tudo isso na vida do crime.

Certa vez, bandidos de outra praça começaram a fazer bagunça no território de Virgílio, deixando lá os carros que roubavam, atraindo a polícia para o pedaço. Virgílio recebeu então a seguinte ordem de seu superior:

            – Moleque, vai lá e fala a primeira vez, fala uma só vez: “É para tirar todos os carros roubados que estão lá”.

            Virgílio fez como lhe foi mandado, mas ninguém deu ouvidos. Ligou de volta para seu chefe:

            – Foi falado uma vez conforme mandado, mas o bagulho não adiantou de NADA.

            – Moleque, taca fogo em todos os carros que estiverem parados!

            Virgílio ousou interceder a seu chefe:

            – Mas, e se tiver carro de alguém que mora lá?

            – Moleque, só olha o carro: se você ver que o carro é bode [roubado], taca fogo. E se o mano que é 157 [roubo] vier reclamar com você – que é 12 [tráfico] –, fala pra ele que quem manda na quebrada é o 12, e não o 157. Então nós falamos o que pode entrar na quebrada e o que pode sair. Está na hora de eles saírem da nossa quebrada…

            Na ocasião, os bandidos do 157 tinham roubado um Astra, um Golf e um Vectra zerados, todos devidamente parados e enfileirados numa rua da biqueira, cintilando. Admirado de vê-los, Virgílio pôs-se a pensar na fortuna que os donos haviam gasto para comprá-los, concluindo com resignação: “A ordem que eu tenho… eu tenho que exercer”. Comprou cinco litros de gasolina, quebrou a janela dos carros, tacou gasolina dentro e ateou fogo.

            A coisa virou um escarcéu: alarmes disparando, bombeiros chegando, polícia, curiosos de plantão. Do jeito que o fogo apagou, todos se foram, sobrando na rua os 3 entulhos fumegantes de metal retorcido.

            Até que caiu a noite. Virgílio continuava na quebrada como de costume, sentado na mesa do bar, supervisionando o movimento da venda de drogas. Havia muita gente no local por conta do forró. Então três carros chegaram sinistramente, motores roncando alto. Eram os assaltantes de carro.

            – Agora molhou, mano… – disse discretamente Virgílio na mesa a seu parceiro – agora vamos pra ideia, que vai sobrar pra meio mundo…

            – AÊ, QUEM É O VIRGÍLIO AÍ? – perguntou um dos brutamontes para o bar todo.

            Ninguém respondeu nada, mas o clima ficou pesado. O brutamontes perguntou a segunda vez:   – AÊ, e o VIRGÍLIO?

– Truta, sou eu mesmo! – respondeu-lhe o próprio sem se levantar da mesa – Você quer falar comigo, você vem até aqui!

– Não, moleque, é assunto particular…

– Comigo não tem particular não. Pode sentar aí e vamos trocar uma ideia, truta.

– Não tem como nós trocar a idéia lá fora? – insistiu o brutamontes.

– Espera aqui que eu já venho….

Virgílio deu um pulo dentro do bar e avisou os comparsas:

– Prepara os armamentos que a fita é o seguinte: os caras estão aí, e os caras vieram cobrar que eu queimei os carros deles, certo, mano? Mas quem manda na quebrada somos nós; estão errados são eles. Então se eles vierem conspirar, eu estou desarmado, porque eu vou trocar ideia. Se vocês perceberem qualquer fita errada, pode sacar e atirar, que depois a gente troca ideia, certo?

– Certo! 

            E foi Virgílio para a reunião. Eram vários caras do 157 de frente para ele. Seus comparsas mais à distância, atentos. 

            – Por que você queimou os nossos carros? – foi a primeira, simples e direta pergunta feita a Virgílio.

            – O porquê, moleque? Primeiramente, eu vou te explicar um bagulho. Eu fecho nessa quebrada desde os meus 13 anos de idade, truta. Desde os meus 13 anos de idade, eu nunca vi ninguém roubando carro e vir trazer pra esta quebrada, certo? Em primeiro lugar: você mora onde aqui?

            – Eu moro lá naquela outra quebrada.

            – Então porque você está trazendo carro roubado na minha quebrada? Por que você não leva na sua quebrada, truta? Se você não sabe, aqui tem uma disciplina, e quem põe a disciplina na quebrada somos nós. Pra você pôr um carro roubado aqui, você tem que chegar em quem? Você tem que chegar no gerente da quebrada, você tem que chegar em mim e perguntar se eu autorizo deixar você entrar com o carro aqui dentro. Nem isso você não fez. Então você está exercendo sua função completamente incorreto, meu. Eu não vejo você o cara de uma visão de chegar aqui: ‘E aí, Virgílio, eu vou esconder dez carros aqui, mano, pode?’. Se eu falar ‘pode’, mano, você pode entrar até com um caminhão aqui dentro. Mas você já passou por cima da minha palavra, certo? Primeiro, eu cheguei a primeira vez, dei a ideia em vocês; vocês olharam pra mim… ‘ah, é um moleque…’. Então: a segunda vez já não tem mais ideia, truta. Infelizmente, queimei mesmo. Você achou ruim? Aciona lá a torre do Primeiro Comando, e nós vamos trocar idéia. E quem estiver errado, você tá ligado, mano… Ou você acha melhor resumir a ideia aqui entre nós, ficar entre nós aqui, a gente apaziguar, vocês seguirem o caminho de vocês, ou você quer esticar o chiclete? Porque o único que vai ficar mascando o chiclete vai ser eu, porque eu estou certo.

            – Mas você não podia ter feito isso; você devia ter ligado pra nós antes.

            – Opa!.. eu avisei na sexta-feira, não avisei? Pra vocês tirarem os carros? O que que vocês falaram? Que vocês são 157, que vocês sabem o que estão fazendo, que vocês não iam tirar os carros da quebrada… Então, na segunda vez eu já botei fogo mesmo. E a fita é a seguinte: se trazer de novo, eu vou botar fogo de novo, cara. Então, vamos fechar redondo: eu não estou impedindo vocês de roubar, mano. Eu não sou dono de vocês. Quem sou eu para falar que vocês não podem roubar? Só que eu não quero o seguinte: que vocês roubem e tragam pra dentro da quebrada. Se for trazer, chega no menino que está trabalhando ali no 12 e fala ‘ó, estou trazendo o carro pra cá’. Sabe por quê? À vezes a polícia vem na intenção de pegar vocês, e pegam o mano que tá no 12. E aí? Estou errado, mano?

            – Não, moleque, você não está errado não. A gente só achou errado porque a gente já ia vender os carros…

            – Mano, infelizmente os carros agora estão lá… foram diretamente pro pátio, truta. Certo? Fechou, assim?

            Um dos caras, mais inquieto e arrogante, não se deu por satisfeito:

            – Que, mano! Essa quebrada nunca teve isso!

            – Quando, mano, nunca teve isso? Só quando eu estava preso. Porque quando eu passei os dois anos em cana, eu tenho certeza: a quebrada estava a maior bagunça. Mas como eu saí pra fora agora, ganhei minha liberdade, o bagulho tem que estar redondo, do jeito que eu deixei, mano. E não são vocês que vão bagunçar. Você está querendo o quê? Você está querendo continuar, esticar o chiclete? Porque se você falar pra mim que você tá querendo esticar o chiclete, moleque, nós vamos até o final. E não adianta ficar de cara feia, que a gente não tem medo de cara feia; nós falamos a verdade. Não é mais pra roubar carro, certo mano?, aqui na quebrada. E ponto final.

            Fez-se silêncio. Virgílio arrematou:

            – Quem for do contra, já levanta a mão aí e fala. Se eu estiver errado, já fala agora. Se quiser esticar o bonde, já fala agora, mano.

            Ninguém levantou.

            – Rapaziada –, completou Virgílio com cortesia – obrigado pela atenção, desculpa ter queimado o carro de vocês, mas é o certo. Quer tomar uma cerveja, vamos lá tomar uma cerveja…

            Os caras agradeceram o convite, mas foram embora. E até hoje não apareceu mais carro roubado para a quebrada.

            Mas gerente de biqueira nunca tem sossego. Poucas semanas depois, estava Virgílio comprando pão na padaria da quebrada quando entrou um maluco com um revólver.

            – É um assalto, é um assalto!

            “Caralho, não acredito! Quem é o filho da p..?”, pensou Virgílio. O maluco olhou para ele:

            – Vai, mano, passa todo dinheiro, passa a carteira”

            – Você quer minha carteira?

            – É, a sua carteira.

            Virgílio tinha uns oitocentos reais na carteira. Na sua contenção, cinco comparsas armados lá fora.

– Meu querido, não me leve a mal: não vou dar a carteira pra você”

O maluco ficou abismado com a resposta de Virgílio, que repetiu:

– Não vou dar a carteira para você.

– Quer dizer então que você é o bandidão? – retrucou o assaltante balançando o revólver – Você é folgado… você quer morrer?”

– Meu querido – respondeu-lhe Virgílio calma e pausadamente –, você sabe com quem você está falando? Eu sou o dono de onde você está pisando. Essa quebrada aqui é minha. Eu que comando o bagulho. A gente é do Comando também, truta. Que que você me diz? Vai bater de frente com o Comando? Se você for bater de frente, eu já dou um salve nos camarada ali fora. Não sei se você viu uma banca ali fora, então: os caras estão todos armados. Nós somos do corre também, e aqui é uma biqueira. Está vindo roubar na rua da biqueira, malandro? Tá querendo se arrastar, truta?

            O assaltante pensou um pouco, ainda meio abismado. Nisso um comparsa de Virgílio viu a cena pelo vidro da janela da padaria e acionou os demais que estavam na banca de jornal. Imediatamente entraram:

– E aí Virgílio, que que tá pegando?

– Nada, já era – adiantou-se o assaltante –, eu ia fazer uma cena aqui mas o moleque mostrou a caminhada que aqui é uma biqueira. Desculpa.

            Virgílio emendou:

            – Então, moleque, sai fora que aqui ninguém vai chamar a polícia pra você não. Mas a fita é o seguinte: se voltar a acontecer , nós vamos te pegar, truta.

E o maluco saiu fora. O dono da padaria – que estava perplexo com aquele debate entre um homem armado e outro desarmado – esqueceu até de cobrar o pão de Virgílio, e lhe disse:

– Meu, acho que você não bate muito bem…

– Não é questão de não bater muito bem, meu truta. Não é loucura. Porque a fita é o seguinte: mostrar que a gente é também do corre. Não vem ameaçar na nossa quebrada! Quer roubar, vai roubar uma lotérica. O território é nosso, a gente demarca ele.

E assim ia o nosso adolescente defendendo sua posição de gerente da quebrada. Até contra os próprios caras de dentro. Sim, porque um dos caras que trabalhava para Virgílio, certa vez, pôs em risco sua posição. Virgílio deixara a mercadoria na mão dele no começo da semana:  

– Aqui tem 500 de tal droga, 500 de tal e 500 de tal na sua mão. Então você tem ao total 1500 de mercadoria. Fechou?

–Fechou.

O total da mercadoria, entre capsulas de cocaína e pedras de crack, dava cerca de R$15.000 reais no varejo. Na sexta-feira, Virgílio voltou para “bater o fecha” (contabilizar). Só que o encarregado não estava mais lá.

– Aí mano, cadê o moleque? O moleque está trampando?”

– Vixe, mano, – responderam-lhe – ele estava muito louco aí, cheirando pra caralho, e sumiu….

Virgílio devia prestar contas daquela mercadoria também a seu chefe, e gelou: “Caralho, agora eu to na merda, mano. Como é que eu vou fazer pra pagar esse bagulho??”. Apelou então para algo que, afinal, não era tão extraordinário assim para ele: roubar. Pegou sua moto e assaltou um açougue, depois uma lotérica. E chegou a tempo com o dinheiro para dar na mão do seu chefe.  Então veio a sua cobrança: “vou atrás do cara!”

Mas o tal cara ficou uma semana fora da quebrada, deixando esfriar. Quando voltou, apareceu com um desculpa para Virgílio:

            – Não, meu. É que meu parente de lá do Itaim estava passando mal eu tive que ajudar.

            – A, seu parente… Por que você não me ligou? Você tem meu número para quê?

– Ah, mas não deu tempo…

– Eu não quero mais saber de nada! Vamos bater um fecha, lá!  

            – Ah, mas agora não dá, porque…

            – Como que agora não dá? Porque não dá? Você está devendo alguma coisa? Você mexeu no bagulho que não é seu? Porque se você mexeu no bagulho que é seu, pra mim tanto faz. Eu só quero bater o fecha, e os meus estarem batendo; os seus você faz o que você quiser.

            O mano não tinha mais resposta, e começou a gaguejar.

            – Mano, cê tá errado. Pode trazer!

            Quando bateram o fecha, faltavam 500 pinos.

– Você fez o que com esses quinhentos?

– Ah, mano, não fiz nada.

– Como você não fez nada? Melhor falar a verdade. Fala a verdade.

O mano não respondia nada. Virgílio começou a usar de “psicologia”:

– Você usou a noite inteira; eu te compreendo, truta. Eu já fiz isso também, moleque, isso aí não dá de nada não. É mais bonito você chegar e falar: ‘aí, mano, usei mesmo, estava na maior neurose aí com a vida’. Eu te compreendo, moleque, ninguém vai estar pondo a mão em você aqui, não. Pode falar a verdade pra nós

– Pois é, moleque, você tá ligado então, né? Quando bate a neurose… eu estava mesmo na maior neurose…

– NEUROSE É NEUROSE MAS RESPONSA É RESPONSA… Eu tenho minhas neuroses, eu tenho meus problemas… mas não é responsa? Então É RESPONSA! – e deu-lhe um golpe na boca do estômago, no que chamou  os capangas  – Pode levar, mano! Pode levar e fazer o trampo, que eu não quero nem por a mão…

Os capangas cataram o colega da mão grande e levaram para um terreno baldio. Quebraram os dedos. Encharcaram a mão de gasolina, e atearam fogo.

Assim nosso adolescente ia impondo sua férrea disciplina, não só na quebrada, mas em todos os campos da práxis moral, inclusive na vida privada.    

            De fato, por esses dias vinha namorando uma moça de Itaquera, há 8 meses. Logo depois que terminaram, Virgílio ficou sabendo que ela estava de namorado novo. Chamou seu parceiro:

– Se liga, mano: não passou nem um mês, e a mina já está com outro. Vamos lá que eu vou trocar uma idéia com essa pessoa, truta, que eu não vou de acordo com isso!

Foram de Ferraz para Itaquera em duas motos. Chegaram na casa dela, chamaram-na pro lado de fora:

– E aí, mina, não deixou o colchão esfriar não?

– Por que você está falando isso?

– Por quê, mano? Você acha que eu sou bobo, que eu nasci ontem? Eu não nasci ontem não. Quando você está pensando que tá vindo, eu tô indo! Cadê o cara, que você tá junto?

– È um cara dali de cima.

– Dali de cima daonde? Monta na garupa da moto e vamos lá agora!

– Ah, tá sem capacete.

Virgílio levantei a camisa e mostrou o ferro na cinta.

–  Truta, você vai montar ou não vai?

A moça subiu na moto e levou Virgílio e seu parceiro até a biqueira da favela onde trabalhava o tal namorado novo, que também era função, tendo uns 25 anos, sendo portanto mais velho – e mais forte fisicamente – que Virgílio. Ao ser chamado, apareceu falando alto de longe, sem camisa, peito estufado e queixo erguido para Virgílio:

– Qual que é a fita, bonitão?

– Moleque, primeiro: você senta aí, certo, que nós vamos trocar uma idéia. Não chega gritando comigo não, truta, que eu sou um cara que pra eu estourar é um-dois. Principalmente com pessoas sem educação que nem você.

Os caras da biqueira passaram a acompanhar o movimento com redobrada atenção. Virgílio prosseguiu:

– Ó, já vou logo avisar, pra você nem tentar nada, certo, truta? Eu estou armado aqui, certo meu companheiro? Então eu estou te avisando. E o bagulho é o seguinte: tá vendo essa moça? Ela é o que sua?

– Ela é minha namorada.

 – Como é sua namorada, meu truta, se faz duas semanas que eu larguei dela? Ela é minha ex-mulher. E o combinado é o quê, truta? Você não conhece o lema?

– Que lema?

Virgílio referia-se ao fato de que uma mulher de criminoso tem de esperar três meses de jejum de homem antes de  arrumar outro.

– Moleque, tu não me leva a mal, truta, mas eu acho que você nem é o cara pra eu estar trocando essa idéia. Tem alguém que é responsável por você, truta? Porque se você não sabe, mano, o prazo é três meses pra cama esfriar, viu? E eu acho que você tá infringindo a regra – você e você, vocês dois.

Nesse momento interveio um negrão da biqueira, muito forte e sério, mas que pela cortesia  notava-se ser o disciplina daquela quebrada:  

– É aí, meu querido, quer sentar e tomar alguma coisa?  

– Ô moleque – respondeu-lhe Virgílio – quero sim, uma tubaína. Nós tomamos um guaraná aqui.

Sentaram-se todos no bar, menos a garota.

– O que que pega?, perguntou o negrão.

– Tá vendo essa indivídua aí, ó. Chamo de indivídua porque pra mim não serve mais que um real. Pra mim é uma inútia. A partir do momento que ela pôs esse cara aí – seu irmão, né? – na minha cama, truta, pra mim ela já é um lixo. A caminhada é o seguinte: o prazo não é três meses pra esfriar a perereca?

– É, moleque, três a dois meses.

– Então, não passou nem duas semanas, mano, e já tem outro esquentando minha cama lá, truta? Qual é que é? Então eu tô bobo, então? Então eu sou o trouxa? Banquei a mina 8 meses, pra eu sair com uma mão na frente e outra atrás, e o outro vim e gozar?

– Então, moleque, você está certinho. Só que a fita é o seguinte: meu irmão falou que ela não tinha marido, não tinha namorado nenhum.

– Opa! Vamos reverter então o papel… Moleque, o que que ela falou pra você?

            – Que ela nunca teve marido. Só teve um relacionamento muitos anos atrás com outra pessoa, com quem ela teve as duas nenê, certo, e não teve mais nenhum.

– Ah, moleque doido, a fita é o seguinte: desde quando eu saí da cadeia, eu estou com ela, mano. Então a fita é o seguinte: ela está mentindo. Tá mentindo pra nós dois. Então, moleque, você não vai tomar nenhum tapa, truta – nós corremos pelo certo. Agora, se eu pegar ela e você for se intrometer, aí o bagulho vai ser diferente.

O próprio negrão-disciplina olhou pro seu protegido e corroborou a idéia:

– É, moleque, você fica de boa.

Virgílio então levantou e deu uma rasteira na garota, que se espatifou no chão e ficou olhando feio para ele, que acrescentou:

            – Mano, você só vai tomar só um rodo. Você ainda está dando sorte que vai tomar só um rodo.

            Ela continuava no chão, descabelada e ofegante, com olhar de fera. Virgílio sacou da arma e pôs na cara dela:

– Que que você acha de uma bala? Se eu quisesse, sua vida estava na minha mão, agora. Porque você errou comigo, e errou feio. Só que a fita é o seguinte: você quer continuar a esquentar o seu colchãozinho com ele, esquenta, truta. Foda-se você e ele, certo? É o papo reto: eu quero que você se dane! Só vim cobrar o bagulho pra não deixar passar batido, pra não pensar que eu sou otário. Eu não tenho mais porra nenhuma com você, nem devia estar cobrando; só estou cobrando porque eu não sou trouxa. E se for na minha quebrada com ele, a chapa vai estalar pros dois.

            Dado o aviso, subiram em suas motos e partiram de volta para Ferraz. Mais uma vez, Virgílio fizera sua moral prevalecer no caso. Mais um caso limite, que bem poderia ter tomado outro caminho e acabado mal.

            Mas nem sempre nosso adolescente levou tudo a ferro e fogo. A grande paixão de sua vida, uma mulher mais velha com quem chegou a estar casado, cometeu um erro pior e não foi punida. Com efeito, quando Virgílio esteve em preso uma de suas quedas no sistema, essa mulher não foi visitá-lo – o que, segundo o código do crime, implicaria automaticamente a punição de raspagem completa dos cabelos dela, incluindo sobrancelhas, além de surra e repúdio. Mas neste caso, Virgílio balançou. Sua moral, por um lado, impunha que a “justiça” prevalecesse sempre, por mais que sua aplicação doesse sobretudo nele próprio; por outro, não podia imaginar aquela linda mulher perdendo seus cabelos: a beleza dela o fascinava demais para suportar esse desencanto.

            “Aí o amor falou mais alto. Sabe quando o amor fala mais alto?“, disse Virgílio em entrevista sobre o desfecho do impasse.

            Ademais, ela tinha uma desculpa (pequena, mas que já servia) para não tê-lo visitado: era uma menina de família direita, cujos pais rejeitavam – por motivos óbvios – seu envolvimento com um marginal, e faziam pressão para que ela não fosse visitá-lo. Isto, aliás, fez Virgílio conhecer uma das piores consequências para quem envereda no crime – o invencível estigma, a rejeição social –, contribuindo para fazê-lo desistir dessa vida. Como ele próprio diz:

Só pelo fato de eu estar no crime a família dela já não apoiava. A partir do momento em que você entra na vida do crime, você já é um alvo. Às vezes você nem sabe, mas você é um alvo. Todo mundo te discrimina. Você passa, todo mundo fala: ó o traficante, ó o bandido, ó o perverso, ó o viciado. Tem todo esse jogo.

Mas afora este raro caso de clemência por causa de amor, nosso adolescente continuou a exercer a justiça fria, implacável (e distorcida) do crime, conforme demandava sua posição de gerente de biqueira. No caso mais grave, participou da execução de um estuprador que agiu no bairro. Ao falar dessa barbaridade, Virgílio reproduz o discurso “moralizante” com o qual criminosos procuram justificar a si próprios:

Às vezes eu não consigo entender como que um cara, mano, pode fazer muitas coisas aí que, na visão do crime e da sociedade, é totalmente errado. Por exemplo: estuprar. Quem que é o cara que vai de acordo com isso? Eu já ajudei a matar um estuprador. Porque o cara era um estuprador. Porque eu não tenho coragem de matar ninguém. Agora já pensei o quê? Opa! amanhã ou depois eu posso ter uma filha, amanhã ou depois minha irmã está crescendo…

Para finalizar este relato resumido do que tenha sido a experiência de um menor de idade que assumiu a posição de gerente no tráfico de drogas do crime organizado, virando uma espécie de “pequeno juiz” do submundo, transcrevemos o depoimento abaixo, fundamental para esclarecer definitivamente o fascínio do crime, que consiste – mais do que no dinheiro fácil – em autoafirmação por meio da aquisição de respeito e poder:            

Então tem sim, um RESPEITO na vida do crime. Na vida do crime você ganha sabe o quê? PODER. Sabe o que é o PODER DA SUA PALAVRA valer um tiro, mano? Um tiro certeiro? Você falar: mano, você está morto! e quando você vê, o cara está caído? ESSE É O PODER QUE O CRIME TE DÁ. Mas do mesmo jeito que ele dá esse PODER, ele também TIRA O PODER de você, TIRA ATÉ A SUA VIDA, SE VOCÊ NÃO SABE CONDUZIR TODO ESSE PODER que você tem na mão. Porque querendo ou não, ali EU TENHO O PODER SOBRE MUITAS VIDAS. Eu posso falar: mano, explode aquela padaria, explode aquele bar! Ah, não gosto daquele maluco, queima o carro dele. EU TENHO O PODER PARA ISSO. Mas em vez de eu exercer o PODER dessa forma, eu exerço meu PODER da seguinte forma: de CUIDAR DA POPULAÇÃO. Sabe por que muitas vezes os caras vão presos? Porque não entendem que o DINHEIRO NÃO DEPENDE SÓ DA MERCADORIA QUE ELE TEM: DEPENDE DA POPULAÇÃO, sabia? Porque SE NÃO É A POPULAÇÃO, EU NÃO VENDO. E se eu não agradar a população onde eu estou, a própria população pode me cagoetar e eu ir preso. ENTÃO TEM TODO ESSE JOGO.

*

            Eis como o jovem gerente em ascensão de repente caiu.

Estava casado desde 2007 com aquela sua paixão por quem “o amor falou mais alto”. No dia dos namorados, saiu de casa a pé para comprar um presente e trazer para ela. Pegou também pão na padaria. Além disso levava, como de costume, umas 50 pedras de crack à mão. E assim ia retornando para o sossego do lar. Nisso, uma viatura policial passou rapidamente por ele. No que passaram, brecaram mais à frente. Virgílio sentiu o perigo e imediatamente dispensou as pedras de crack no meio do mato rente à rua. Na sua pochete, porém, restavam umas 10 parangas de maconha. Os policiais deram ré e o abordaram determinados:

            – Tá com o B.O.?

            – Tô.

            – Está com o quê?

            – Estou com maconha. Sou usuário.

            – Você é usuário?

            – Sou usuário.

            – E esse presente?

            – É pra minha esposa, senhor. Hoje é dia dos namorados.

            O policial abriu sua pochete:

            – É dia dos namorados? Então hoje você não vai passar o dia dos namorados com ela não…

            – Por quê, senhor? Sou apenas um usuário aí, certo meu? Estou indo pra casa levar o pão para minha esposa tomar café, e levar o presente dela. Sou apenas um usuário. Trabalho na firma ali.

            – Mano, você não é usuário. Eu te conheço: você é o gerente de duas biqueiras. É você que toma conta daquela quebrada. O seu nome não é Virgílio?

            – É, meu nome é Virgílio.

            – Então: é você que nós queríamos. Nós já estávamos atrás de você fazia tempo. É fita dada. Já te cagoetaram; nós estamos com sua foto e tudo. Agora a gente quer o seu patrão.

            – Não tenho patrão.

            – Como não tem patrão? Tem patrão sim! Se não a gente vai te forjar e você vai em cana. Vamos fazer um negócio: você  dá o patrão, e nós te soltamos. 

            – Não. Você pode me prender, que não tem patrão.

            – Então você prefere apanhar?

            – Prefiro apanhar, senhor. Pode me bater à vontade, que não tem patrão.

            Nisso tomou o primeiro soco na boca do estômago. Entre socos e chutes, repetia:

            – Não tem patrão, não tem patrão!

            Um policial pegou na viatura um saco com mais ou menos 40 pinos de cocaína e um e pedra:

            – É seu.

            – Não é meu. Quando chegar na delegacia, eu vou falar que é tudo de vocês.

            – É? Você é marrudo?

            Continuaram a sessão. E mais policiais foram chegando. A rua fechou de polícia.

 Uma policial feminina chegou em Virgílio:

            – Você não vai dar o patrão, né?

            – Não. 

            – Abre as pernas!

            – Senhora, minha perna já está aberta.

            Com gosto, a policial desferiu-lhe um chute de coturno nos testículos. No que Virgílio ajoelhou, o policial ao lado deu-lhe um murro bem dado na nuca.

            – Então não tem acordo, você não vai dar patrão? 

            – Aqui não tem patrão não! Agora vocês já me deixaram BRAVO. O único patrão que tem aqui é EU!

            Jogaram Virgílio na viatura, e dali levaram-no até a casa de um suspeito de ser o patrão de Virgílio – um ex-presidiário residente na região, que, na verdade, os policiais já queriam pegar de antemão. Só não invadiram direto a casa do suspeito, arrebentando com tudo (para dar mais impacto de “denúncia fundamentada”) porque havia na entrada da casa um pitbull e um rotwailer enfurecidos. Então chamaram pelo dono da casa, que atendeu:

            – O que vocês querem?

– O Virgílio falou que você é o Caveira, que você é o patrão! – disse-lhe de cara o chefe dos policiais.

O dono da casa ficou intrigado. Entretanto, um outro policial, com o intuito de pressionar o suspeito, trouxe Virgílio para fora da viatura. Este ouviu a conversa e aproveitou para gritar:   

            – MENTIRA, MANO! EU NÃO TE CONHEÇO DE LUGAR NENHUM! É MENTIRA DESSES VERMES!

            – QUEM MANDOU VOCÊ PÔR ESSE FILHO DA PUTA PRA FORA DA VIATURA!! – gritou o chefe para o subordinado. Virgílio foi jogado aos murros de volta pra dentro do veículo. Mas já havia dado seu recado. O dono da casa reagiu:

            – Aqui não tem nenhum Caveira, não! Meu nome é Marcelo. Não sei do que vocês estão falando. Aqui está meu alvará de soltura, e vocês não tem o direito de entrar na minha casa!

            Vendo que não iam arrumar nada de mais produtivo naquele momento, os policiais contentaram-se em levar apenas Virgílio para a delegacia, onde deram-lhe outra boa surra. Puseram-no de cueca, molharam o chão e ameaçaram dar choque. Mas nada de patrão. Ao final, não aplicaram choque ou qualquer outra coisa afora porrada, e o adolescente – cheio de hematomas, principalmente nos testículos – foi encaminhado para a internação segundo um trâmite mais normalizado.

            Isto não impediu que Virgílio conseguisse colocar, por meio de advogado, um cabeludo processo nas costas desses policiais que, apesar de bem-intencionados em aplicar a “justiça”, afinal usaram de procedimento incorreto com qualquer cidadão que seja, ainda mais menor de idade.

*

            Tendo terminado de cumprir sua medida judicial socioeducativa de Liberdade Assistida (L.A.) no CREAS de Ferraz, Virgílio, hoje com 21 anos e morando de volta com o pai, faz um balanço de sua vida. Em primeiro lugar, sabe o quanto a colocou em risco, na verdade por fazer pouco caso dela:  

“Se eu me preocupasse com a minha vida, eu não fazia tudo o que eu fiz…”

            Agora, um novo e mais amplo horizonte se apresenta para ele. Depois de anos confinado, pagando pelos erros do passado, Virgílio está de novo em liberdade, sem dever nada ao Estado, com o futuro todo pela frente. Uma maior perspectiva de vida, na qual projeta um futuro diferente para si, muito mais seguro e estável:

Quantos falavam: ‘o Virgílio não dura até os 18?’. Este mês eu faço 21 anos. E eu tenho meus objetivos: daqui a cinco anos eu quero ter minha casa, quero ter minha esposa e meu carro. Daqui a 5 anos. É o meu objetivo: quando tiver 25 anos, eu já tenho que ter tudo isso na mão.”

Com semelhante projeto de vida, uma recaída no crime seria um retrocesso:

“Qual é o meu medo? De ir preso de novo. Ir em cana. Eu não tenho medo do sistema, de cair lá dentro. Eu tenho medo de ficar longe da minha família. De perder tempo. Porque lá dentro você está perdendo tempo. O tempo que eu perco lá dentro, eu ganho aqui fora.

Não obstante, Virgílio sabe que esse retrocesso não deixa de ser uma triste possibilidade real, na verdade uma tentação que precisará para sempre ser vencida com luta, devido tanto às condições circunstanciais (ausência de alternativas profissionais, por exemplo) como às próprias inclinações pessoais, que não somem de repente depois de uma década inteira no crime:

“Eu tenho, sim, medo da recaída. Porque hoje em dia o que eles [os criminosos] me oferecem é muito, muitas coisas. Acabei de passar ali e o cara falou ‘e aí, mano? não tá fazendo nada?’. Eu falei que eu fui ver o negócio do CPF, e ele disse ‘Aí, se quiser trampar à noite, é só chegar…’. São várias propostas… E eu falo: ‘não! tô suave, tô indo fazer uma entrevista ali!’. Assim eu tenho resistido à sedução do crime. Mas eu tenho medo da recaída sim, porque não tenho serviço, estou desempregado. E eu sou bem sincero: o meu corpo – o meu corpo não, a minha mente – está fora do crime. Mas ao mesmo tempo ela está dentro, sabia? O meu corpo às vezes  pede: ‘mano, se você sabe exercer uma coisa com capacidade pra você ganhar dinheiro, porque você não exerce, fica perdendo tempo? Às vezes vem esse pensamento na mente: caramba, sei tão bem fazer as coisas para eu ganhar dinheiro rápido assim, puf!”

E o remédio para lutar contra essas inclinações “do corpo” é a própria consciência racional, que enxerga a realidade e pesa as consequências:

“Mas aí vem a consciência… qual é a consciência? Mano, às vezes você pode fazer o dinheiro crescer rápido, mas ao mesmo tempo que ele cresce, ele diminui. E se você fizer crescer e, de repente, dá um desacerto e você vai preso? Pega aí 5, 10 anos de cadeia? E aí? Aí você não vai ter mais 5 anos no seu planejamento pra você construir sua família, certo? Você não vai ter o apoio do seu pai, que já vai estar esgotado, você não vai ter o apoio de mais ninguém. Você vai estar esquecido lá dentro. Esse também é um dos motivos pelos quais eu larguei a vida do crime. Outro motivo é o meu coroa, meu pai. Foi ele quem fechou comigo de verdade, e hoje em dia eu dou o maior valor pra ele.”

OK. Mas o que fazer na prática? isto é, trabalhar de quê? Felizmente, Virgílio dispõe de tempo para experimentar e discernir, pois possui apenas 21 anos. E já sabe daquilo que gosta e de que não gosta, naquilo que é bom, o que é um começo mais do que excelente se levarmos em conta o número de pessoas que muitas vezes passam a vida inteira sem descobri-lo:

” Eu vou continuar os meus cursos – que eu fiz uns cursos aí, de encanador… – que é um ramo que na verdade eu não quero, que eu não gosto, mas que eu trabalho se for preciso. Eu gosto mais é de me comunicar com as pessoas. E não acho que vai ser legal eu me comunicar com um tubo de PVC. Por isso, eu estou procurando uns cursos na área de vendas, de comunicação.”

Dentre todas as possibilidades, Virgílio alimenta um sonho, despertado nos tempos de FEBEM por um professor de português: ser escritor. Não pelo status, pelo glamour, ou mesmo pelo simples prazer, mas antes de tudo pela necessidade vital de expressão e comunicação livres: 

“Hoje em dia eu estou pensando no que é melhor pra mim. O que é melhor para mim? Eu expor o que eu sinto. Ninguém manda no meu pensamento, ninguém pode me prender pelo que eu penso. Eles podem prender o meu corpo, mas a minha mente, a minha sabedoria, eles não podem pôr a mão. A escrita me abriu então uma porta de eu expor o que eu penso. A minha expectativa é oferecer pras pessoas aquilo que elas ainda não viram. Dar para elas lerem o que elas nunca leram. Quero dispor para todo mundo o que eu sinto, o que eu penso, qual é a realidade. Porque muitas pessoas andam com a realidade meio tampada.”  

Virgílio enxerga a literatura, portanto, como um modo de conscientização. Uma ação socialmente engajada, menos estética do que performática, atuante, transformadora:

“Eu sou o tipo do cara que eu sou criativo. Então eu quero usar minha criatividade para coisas boas, porque para coisas ruins, se eu continuar ajuntando com maldade, e a coisa for crescendo, daqui a pouco eu vou estar assaltando o Banco do Brasil. É isso que eu não quero. Eu quero usar pra outro lado. O quê? Chegar ali numa escola, num lugar, dar o discurso ‘olha, funciona assim, já passei por isso e isso, está aqui um livro, lê, reflete em cada coisa que está escrito que você vai ver como é que é!”

Esta sua obra principal, de posse da qual ele poderia começar a dar suas palestras para jovens, alertando-os dos perigos da vida, já teria título: “Quanto vale ou quanto custa?” (ou será que Virgílio é tão vivo que essa obra inicial é esta mesmo que agora você lê? Seria justo, e não deixaria de ser um modo criativo de alavancar uma carreira…). Já escritas, Virgílio tem algumas poesias que guardou dos tempos de internação, como esta que selecionamos para transcrever na íntegra:

“Os meninos são crianças

Os meninos estão crescendo

estão virando homens

estão se matando

matando outros homens

Os meninos estão crescendo

estão se perdendo no tempo

estão se drogando nas ruas

Os meninos estão morrendo

Os meninos são crianças

Muitos não tiveram infância

Brincam com armas de fogo

E matam outras crianças

Os meninos são raivosos

E estão cheios de ódio

E o pior de tudo é saber

que são conhecidos nossos

Os meninos estão crescendo

Estão se matando aos poucos

São milhares e milhares

Espalhados por todos os cantos

Os meninos estão crescendo

Não sabem o que estão fazendo

Vejo muitos no mundo da lua

Quando não são presos

Acabam morrendo”

***


[1] Nome fictício.

[2] Nome fictício.

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