AULA DE RES AOS “artistas” brasileiros

03/02/10 – quarta-feira

            Às 20h deste dia 3 de fevereiro de 2010, ocorreu no interior da galeria Mário Schenberg a aguardada aula de quarta de Rubens Espírito Santo.

            Desta vez, os ingressantes se depararam de imediato com uma espécie de cancela que lhes impedia a livre entrada, uma mesa composta de uma porta vermelha de geladeira sustentada por dois cavaletes, ornada com flores, detrás da qual Jan Nehring figurava como leão-de-chácara (RES tem encarregado Nehring de cobrar os demais discípulos, que pagam R$50,00 pela aula).

            Mesmo este escrivão, acompanhado de sua noiva, foi interpelado por Nehring ao atravessar a cancela:

            “Quem é você, mano?”

            “Eu sou o escrivão deste lugar”

            “Cadê os 50 reais?”  

            “Eu não pago”

            “Ele não paga”, autenticou RES.

            Sem a mesma sorte, alguns ingressantes demonstravam embaraço perante Nehring. Nisto se contrariava RES: “Brasileiro não sabe lidar com dinheiro! Por isso que este país é pobre!

             Apesar da tempestade que conseguiu colocar o eficiente metrô paulistano em colapso, levando a estação da Catedral da Sé à beira do caos (a cidade está há mais de 40 dias sob temporal), a aula de quarta começou pontualmente, o que fez alguns brasileiros sentirem o incômodo de puxar suas cadeiras em meio à fala adiantada do palestrante principal.

            RES na ocasião abordava a questão “separação entre mão e mente”. Antes exigira de cada discípulo uma definição sumária da palavra discurso, pertinente ao tema “dicotomia entre discurso e fazer-realização“ com que abrira a sessão. Cada qual oferecera uma definição aceitável do termo, mas RES só ficou satisfeito quando a atriz Flávia Tavares enfim disse “discurso é corpo” – o que no contexto não chegou a ser surpreendente, dado a mais aplicada defensora da doutrina de RES infelizmente não ter conseguido, nos últimos sessenta dias de cabana, articular sua fala sem recorrer às palavras “corpo” e “gato” – outro termo caro a seu mestre. Não obstante, tal recorrência obstinada não desmerece absolutamente o pensamento autônomo de Flávia Tavares, na medida em que ela parece almejar conscientemente, com o volume quase mântrico de sua repetição, apropriar-se do discurso do mestre, numa espécie de recurso antropofágico de autoencorpamento.

            Assentida a premissa inicial de Flávia Tavares de que discurso é corpo, RES tomou a premissa genericamente consentida de que a obra do artista é seu discurso para chegar logicamente à conclusão de que a obra do artista é seu corpo. “Se levarmos essa lógica às últimas consequências”, resumiu Rubens aos artistas, “temos que a sua obra é você, ou seja, se eu rasgo o desenho de alguém que está 100% ali, ele morre”.

            Esta constatação serviu de introdução coerente a um duro sermão, mais ou menos nestes termos:

            “O artista deveria ter a mesma responsabilidade, ao elaborar sua obra, que o alpinista tem em sua atividade: admitimos que o alpinista deve ser sério no seu trabalho, porque a sua vida está em jogo; mas não pensamos o mesmo sobre o nosso ofício, que é tão arriscado quanto o de alpinista! Qualquer infeliz que nunca leu nada na vida, que não conhece porra nenhuma, que estuda uma ridícula horinha por dia, se mete a ser artista. Qualquer imbecil que vive na noite, na boemia, na cocaína, em conversas com amigos inúteis o dia inteiro, acha que é artista. O que nós temos no Brasil é uma molecada fazendo arte, um monte de marmanjos que não passam de moleques inconsequentes.”

            Passou-se então para o referido tema “separação entre mão e mente”. RES utilizou-se do termo ipseidade (do latim “ipsum” = o mesmo) para defender a “conformidade fundamental entre aquilo que o artista fala e o que vive”, acrescentando que “alguém ipseidado é alguém encarnado; alguém desipseidado é alguém desencarnado”. Como modelo ideal de ipseidade RES citou seu grande ídolo, o artista alemão Joseph Beuys: “O colete, o chapéu do Beuys eram uma segunda pele dele, uma extensão dele, uma outra orelha. Havia total conformidade entre sua obra e sua vida. É isto que me importa no Beuys: como se vestia, como falava, como comia, como era o seu apartamento, se ele traía ou não a esposa, se ele andava ou não em festas, como era o seu dia a dia, como era a sua vida”. 

             Já o exemplo contrário – a total “desipseidade” – ficou por conta da figura de Roberto Winter – aquele jovem artista intelectual que, depois do episódio ocorrido no interior da cabana no dia 16/12/2009 (cf. O dever), entrou com uma representação contra Rubens junto à diretoria da Funarte (cf. Diretor Nacional da Funarte visita cabana – continuação).  À total “dicotomia entre mão e mente” Rubens Espírito Santo denominou jocosamente winterismo, neologismo cuja autoria alegou provir da mente do “filósofo” Piero Chiaretti, seu discípulo. A troça sobre Roberto Winter foi recebida com gargalhada geral.

            “Por isso eu quero que se foda se o cara vem aqui falar de Nietzche, de Beuys, de Deleuze, do raio que o parta, se não existe uma relação fundamental sobre o que ele fala e o que ele é”, acrescentou. Retomando sua concepção de que o discurso (a fala/obra do artista) é seu corpo, RES concluiu que “ter corpo é o artista ter uma obra fora dele idêntica à obra que ele tem dentro dele; é como nós nos comportamos no mundo: isso é ter um corpo”, arrematando que “se a gente leva a sério o que se está falando, sobra pouca gente em São Paulo”. Enfim, o versículo bíblico “e o verbo se fez carne” serviu de ilustração para a afirmação de que “o corpo é o próprio pensamento no mundo”; assim RES terminava de “esclarecer e investigar o que entendo por corpo”, conforme o programa da aula distribuído aos participantes. 

            O próximo tema foi “fala débil/voz débil”. Sobre isto RES afirmou que “ter voz potente é fazer com que aquilo que se fala se materialize no mundo real”, sendo para isso imprescindível haver “adequação entre essa voz e o que se está comunicando”, pois a própria voz “revela se a pessoa tem alma, coração, medo…” Como modelo de voz potente citou o sânscrito enquanto língua sagrada, “língua dos deuses”, cuja simples pronúncia tornaria concreta a presença real daquilo de que se fala.

          Em seguida veio à baila o tema “suscetível demais/ implícito demais”. Aqui Rubens foi taxativo:Aprendam rápido a deixar de ser suscetíveis; abandonem completamente a questão de ser suscetível. Implorem para que alguém ache seu trabalho ruim, rezem para que as pessoas sejam agressivas com você. Vocês aprendem mais assim do que com aqueles que os elogiam.

            Especificamente quanto ao “implícito demais”, propôs que cada um fizesse o seguinte exame de consciência: “Será que eu consigo dizer pro outro o que realmente está no meu pensamento? Que abismo há entre o que está dentro da minha cabeça e o que eu consigo comunicar?

            Aprofundando essa noção de abismo, RES incluiu a “elaboração infinita de projetos e mais projetos que nunca se realizam” como uma manifestação sintomática da falta de atitude daqueles que se dizem artistas por aí, mas não passam de amadores que denigrem a própria palavra artista na sociedade. “Eu não tenho projetos,” – disse RES veementemente – “eu tenho realizações no mundo real”.

          Como ilustração da ausência de abismo entre pensar e comunicar, citou o processo de trabalho do arquiteto inglês Frank Gary, o qual, em seu megaescritório em Londres, supostamente nem chega a desenhar o projeto de seus edifícios – ele simplesmente os moldaria concretamente com qualquer coisa que lhe estivesse à mão (folhas de papel, por exemplo) e os levaria para os técnicos que – estes sim – desenhariam o projeto e dariam o devido encaminhamento operacional. Outro exemplo foi Anish Kapur, que, quando perguntado numa palestra sobre qual eram seus projetos, teria respondido “Eu trabalho com materiais, não trabalho com projetos”. Assim, RES concluiu este item de sua aula recomendando a todos: “Sem delírios de projetos! Vão pro mundo real e façam! Se der merda, foda-se!

          Chegou então o tema “timidez formal e intelectual, autoestima baixa e pouco ousada, gozo no lugar errado – resistência”. Após afirmar que este era o “triste quadro de nosso país”, RES mudou a dinâmica da aula: mandou que cada um lhe fizesse uma pergunta, que, contudo, não seria respondida por ele, mas por Piero Chiaretti. Deste modo, RES oferecia ao discípulo uma oportunidade de exercitar sua retórica, fortalecendo-a no embate prático com seus iguais.

          As respostas de Piero às perguntas dos companheiros foram variações da tese de que “a falta de corpo não sustenta nenhuma fé”. Dentre as várias perguntas que lhe foram dirigidas, Piero manifestou desdém pela da artista plástica carioca Fernanda Lago, que, convidada por RES a falar (e a estar na cabana), perguntou sobre o porquê da vaidade de os artistas acharem que seu trabalho é sempre melhor que o dos outros: “Desculpe“, disse-lhe Piero, “mas acho que sua pergunta foi fraca, quer dizer, desculpe o caralho, foi muito fraca mesmo”, e não respondeu.

          Fernanda também não insistiu. Em seguida, RES incitou as pessoas a “começarem a ser cruéis e violentas” em suas perguntas. Ninguém, contudo, demonstrou desejo de se desgastar em maiores discussões.

          Terminada a rodada de perguntas dos participantes “oficiais” (aqueles que estavam à mesa com RES), um visitante lúcido, de nome Leonardo Andrade, afundado no estofado da poltrona baixa que lhe coube, se dispôs a fazer uma pergunta antes do iminente encerramento da sessão encabeçada por Piero Chiaretti, no que fez duas:

          “Qual a distância entre ousadia e verdade, e onde está a sua verdade?

          “O que completa essa distância é a fé. A verdade está na fé”, respondeu Chiaretti prontamente.

            Ao que Andrade perguntou:

           “A gente tem que buscar ser ousado… ou verdadeiro?

           “Só quem é ousado enxerga o brilho do que é verdadeiro”, foi a resposta de Piero.

          Como a relação corpo-fé tinha sido a tônica do discurso de Chiaretti, Lucas Rehnmam pediu que se esclarecesse de qual tipo de fé se estava falando, ao que Chiaretti respondeu “fé da pessoa nela mesma”, negando assim qualquer relação com a fé no sentido comum, de “fé em Deus”.

          RES deu em seguida a Flávia Tavares a chance de exercitar sua retórica. Antes, mandou trocassem de lugar Leonardo Andrade e Fernanda Lago, a qual deixou a mesa sem qualquer manifestação e foi ocupar a poltrona baixa de Andrade.

          Começara a sessão de Flávia Tavares. Respondendo à pergunta “onde está a fragilidade da cabana?” de Bhagavan David, a atriz afirmou, entre outras coisas, que era necessário “dar um gato na metafísica, ao que Bhagavan externou que, embora compreendesse o sentido da palavra “gato” entre os participantes da cabana, não estava satisfeito com a resposta.

          RES então pediu que Bhagavan reformulasse sua pergunta, que foi redigida da seguinte forma:

            “Levando-se em conta uma grande potência, um ego forte e protegido, essa é uma posição de risco-limite, na qual, se há uma desaceleração, ele [Rubens] ficaria morto ou louco; nessa hipótese, há assumir outro ser, há reencarnação? Há Ressurreição?”

          “Pode ser que eu mesma dê esse exemplo”, respondeu Flávia Tavares com firmeza e ao mesmo tempo delicadeza, como esperançosa e confiante da possibilidade de ressuscitar após a total desconstrução do seu ser. Completou dizendo que “o homem Rubens vive o real no talo o tempo inteiro” e que, naquela hipótese (de desaceleração) ele poderia, talvez, “passar para outra dimensão que não a corporal”, embora ainda sendo o mesmo.

            Bhagavan insistiu na gravidade de um erro estrutural na figura de RES, o qual seria exatamente a própria transparência – um erro de transparência de potência – que faria com que Rubens, externando a todo tempo sua força total, tornasse-se um alvo medido e fácil. Esta seria, em suma, aquela “fragilidade da cabana” que ele mesmo [Bhagavan] suscitara como potencialmente fatal e para a qual queria saber se havia antídoto.  

            RES despertou da sonolência do debate e voltou a palavra para si:

          “A característica de um grande artista é essa fragilidade. Senão, há a cristalização, o envelhecimento rápido, a obra fica datada muito rapidamente.”

            “É preciso deseducar-se e assumir outro corpo“, afirmou Flávia Tavares.

            Lucas Rehnman retesou-se e falou: “Eu tenho uma pergunta”

            Não era sua vez de falar.

            “Diga-a”, disse-lhe RES.

            “Rubens, você quer ficar em carne viva?”

             Rubens Espírito Santo, talvez entendendo as conseqüências de uma literalidade da ambígua questão (“carne esfolada” e/ou “carne que vive“), passou longo tempo calado, num minuto cujo silêncio se esgueirou em alguma fresta entre o vazio do constrangimento e a densidade material do trágico.

          “Está boa esta resposta para você?”

          “Sim”, respondeu-lhe Rehnman.

          Rubens beijou a mão do discípulo, no que foi correspondido com um beijo na face.

          “Depois do que aconteceu aqui, acho que não precisa mais nada. Podemos ir embora.”

          As pessoas, porém, insistiam em prosseguir o debate, não achando nada de muito excepcional em uma pergunta como aquela ter sido respondida com um profundo silêncio.

*

6 Respostas to “AULA DE RES AOS “artistas” brasileiros”


  1. 1 macadden 05/02/2010 às 0:34

    se quiserem ouvir meu comentario depositem 55 reais na conta:
    ag;0987–cc–1234566 banco da praça,e mande o deposito

    • 2 diariodacabana 05/02/2010 às 9:30

      O que autoriza o discurso do artista plástico Rubens Espírito Santo é o fato de ele possuir um CORPO DE OBRA: sua fala tem respaldo numa consistente produção material, fruto de anos de intenso e ininterrupto trabalho. Desista da idéia de que alguém vai depositar dinheiro numa conta de banco por meras opiniões.

      • 3 Rodrigo Torres 05/02/2010 às 16:58

        Sr. Macadden , gostaria muito de ouvir suas opniões.
        Tentei fazer o depósito mas a conta está incorreta.
        Você poderia confirmar?

        Abraço aos Adden

  2. 4 fabiola 05/02/2010 às 18:09

    Andre, parabens! Seu texto foi excelente, como sempre me divirto muito.
    É incrível como vc consegue ser profundo e sarcástico ao mesmo tempo! Me senti na aula, que faltei por causa da chuva.

    Bjs
    Fabiola

    • 5 diariodacabana 06/02/2010 às 23:33

      Acredite, Fabíola: não pude ser tão profundo quanto poderia, pois sequer fui completo no relato da aula (muito mais aconteceu do que está narrado, embora o melhor esteja aí). Contudo, insistir na exposição de RES e de seus discípulos, dentre os quais já não sei se me incluo, ultrapassaria o limite do aceitável em matéria de desgaste. Obrigado, mas não se iluda: você NÃO ESTEVE NESSA AULA.

  3. 6 macadden 05/02/2010 às 23:00

    tua indignação foi a mesma que a minha no inicio de seu texto,mais isso é apenas uma mera opinião


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