O CORPO é quente como o SANGUE

04/01/10 – segunda-feira

            A complexidade dos fatos ocorridos hoje no retorno do corpo de artistas à FUNARTE vai além das possibilidades de uma análise imediata, e encerra algo oculto cuja dimensão não pode ser inteiramente determinada.    

           Uma tempestade tropical inundou diversos pontos da cidade de São Paulo e atrasou a chegada de RES ao QG da cabana, na galeria Mario Schemberg, que sofreu queda de energia. Esperavam-no Rafael Aboud, André Sztutman, Renata Junqueira e este escrivão.

            Às 19h00, já com luz, RES chegou acompanhado de André Albuquerque, Silvia Mharques e Bruno Shintate. Prontamente iniciou-se a 1ª reunião de trabalho do ano, cuja pauta incluiu, além do agendamento de atividades objetivas, uma exortação no sentido de maior “domínio plástico da cabana” mediante engajamento e produção intensos.  No decorrer da preleção, a insistência de RES no lema “2010 sem esforço” foi recebida com certa estranheza por alguns dos presentes, muito provavelmente pela contradição aparente com o discurso geral de comprometimento, responsabilidade e empenho. Todavia, ainda não se descortinava o real sentido daquele dizer.

            Lilian Soarez logo chegou à reunião, durante a qual foi apresentado ao grupo Lucas Schlosinski, jovem de 23 anos que se responsabilizou pelo registro em vídeo da ocupação, tendo recebido de RES aval para fazê-lo segundo sua óptica criativa pessoal. O fato de suas atribuições colidirem em alguns pontos com as de Bruno Shintate, especializado em vídeo e fotografia, não ganhou relevo polêmico, bem como o anúncio de que outro escritor também está, a partir de agora, encarregado de manter diariamente na internet um registro escrito da ocupação, paralelamente a este. As iniciativas foram recebidas com naturalidade, descartando-se qualquer potencial conflitivo – até o momento.

            Terminada a reunião, o grupo pôs-se a trabalho. Cinco enormes caixas de madeira de até 4 metros de comprimento por 3 de altura haviam sido cedidas cortesmente pela transportadora especializada Alves Fergan, cujo interessante lema a arte de transportar arte, grafado nas tampas, verifica-se na alta qualidade do acabamento dado às urnas, ainda etiquetadas com o nome de seus recentes destinatários: MAM-RJ, Itaú Cultural, Instituto Tomie Ohtake.   

            RES não hesitou em serrá-las para montar aposentos para os ocupantes. Como resultado deste trabalho – que exigiu intenso envolvimento de todos os presentes – as caixas da Fergan passam, agora, a comportar artistas – que também não deixam de ser obras, não obstante vivas.

            Após a montagem de toda uma ala de dormitórios, a galeria Mario Schemberg passou por uma reorganização geral do espaço. Um dos aspectos de maior destaque foi a redução sensível da parte destinada ao som, agora restrita ao mínimo necessário. Outro foi a retirada de material considerado estorvo, incluindo esboços de obras, sem anuência prévia de possíveis interessados ausentes.

            Enfim, os remanescentes deixaram a FUNARTE para jantarem na pequena e modesta pizzaria da esquina, La Romanita. O jantar, acompanhado de vinho, seguia em clima fraterno e ameno.

             Uma atmosfera mais densa começou a ganhar corpo a partir de questionamentos que RES, de modo incisivo mas polido, passou a endereçar à pessoa de Lucas Schlosinski, especialmente quanto ao seu trabalho e vocação. Uma ou outra resposta mais ríspida da parte de Schlosinski faiscaram na atmosfera cada vez mais inflamável da mesa.

          RES, sempre calmo, relevou completamente certos comentários, mas um terceiro elemento, subitamente exaltado, apontou severamente uma suposta afronta presente na fala do ingressante do grupo, passando, a partir de então, a questionar o jovem Schlosinski com extrema acidez. O jantar, a partir daí, transformou-se numa espécie de sabatina, e terminou como um batismo do novo integrante, cujo nome foi brindado por todos os presentes. Ainda assim, o desgaste coletivo foi alto, em decorrência da elevada tensão permanente, simbolizada na figura do dono do La Romanita, homem corpulento, de aspecto rústico, que, sem que a maioria dos que estavam à mesa percebesse, postava-se de pé detrás de uma pilastra conforme subia a temperatura da discussão, em evidente estado de prontidão para um eventual quebra-pau com garrafas e cadeiras. Mais uma vez, os ocupantes da cabana arriscaram andar sobre gelo fino.    

            Este episódio típico de confraria não teria maior relevância se não houvesse ocorrido à luz de determinados princípios evidenciados pelo texto de ontem, de autoria de RES e Sztutman (cf. Para os que retornam).    

            Com efeito, desde a tarde de hoje, uma série de coincidências entre intuições, atitudes e acontecimentos acidentais parece revelar que os aspectos de vida e arte que vêm sendo debatidos na cabana extemporânea estão além da retórica.

            Ora, é patente que o terceiro elemento da discussão entre RES e o jovem Schlosinski estava apossado por uma espécie de Alter Ego, não desculpável pela simples vinda à tona do espírito de sátiro que o excesso de bebida costuma proporcionar em muitas pessoas. Mais do que isso, tratava-se de uma evidente canalização de aspirações silenciosas, mas bastante vivas na atmosfera circundante. Aspirações não pertencentes a um único indivíduo, mas anônimas, resultantes da interpenetração de inúmeros vetores desconhecidos e imprevisíveis, cuja somatória parece atender a alguma demanda coletiva tirada como média das diversas demandas individuais.         

            Neste sentido, a possessão, enquanto um estar aberto para algo que não é propriamente seu (embora também o seja), é um fenômeno arriscado, principalmente em ambientes não-propícios. O correto manejo desta arte, no ambiente da cabana, é feito sem prejuízo unicamente por Rubens Espírito Santo, mestre na apropriação do corpo. Sem embargo, recomenda-se a todos os presentes ao episódio do La Romanita a leitura do texto de sua autoria publicado ontem, bem como algumas reflexões iniciais que se desenvolveram neste diário (cf. Líder de si mesmo). Da parte deste escrivão, adianta que o mais bonito desta obra (ópera?) do La Romanita foi ver, sobretudo, a aplicação prática do final do texto de interpretação do Hexagrama 13 (Tung Jen) do I-Ching. Quanto ao desgaste, fica na conta do sacrifício requerido pela criação de uma obra viva coletiva.

6 Respostas to “O CORPO é quente como o SANGUE”


  1. 1 MACADDEN 06/01/2010 às 0:49

    FOI INAUGURADA A ALGUMAS SEMANAS O MAIOR FAROL DE ALCANCE ILIMITADO ARTISTICO SITUADO NUMA TAL CABANA,PREPARADA PARA IDENTIFICAR E DESTRINCHAR QUALQUER POSSIVEL BRUSCA MUDANÇA NESSE OCEANO OU ATÉ MESMO TEMPESTADES,FAROL MODELO FACHIANO SECULO XXI,UNICO NO BRASIL E NO MUNDO,PENA ATÉ AGORA SÓ VEIO MAROLA,QUANTO AO OUTRO CARA, O TAL NOVO RELATOR VOU APELIDALO DE 3 MIGALHAS,QUE É SÓ O QUE FALACHO CUSTUMARA DEIXAR PARA QUE ELE MONTE SEU BANQUETE,3(TREZ)MIGALHAS

    • 2 diariodacabana 06/01/2010 às 17:55

      Um pouco da política que minha condição me obriga a adotar infelizmente não me permite demonstrar o regozijo que, certamente, o Sr. MacAdden sabe que eu sinto em virtude deste seu comentário.

  2. 3 paulomr 06/01/2010 às 9:39

    Independente dos rumos do movimento extemporâneo, as correntes da história ilustram e dão forma ao talento do escrivão. Parabéns pelo trabalho, ótima fonte de consulta aos verdadeiramente interessados. Algo de interessante uma hora apareceria… será que vem algo mais?

  3. 5 Lucas schlosinski 21/01/2010 às 15:53

    Muito refinado o modo como trata as palavras.
    li por mais uma vez este texto, por mais uma vez ele me surpreendeu, será esta a essência da obra?
    espero que muitos tenham o privilegio de ter seus dias narrados por ti cabaneiro…

    Saudaçoes
    Lucas Schlosinski


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