O MILAGRE DE RESPIRAR SEM APARELHO

19/01/10 – terça-feira          

          A realidade deste dia extraordinário certamente compôs uma peça dramática completa, cuja narração em prosa, a ser feita aqui, implica necessariamente uma limitação de suas inesgotáveis implicações.

          Talvez aqui a literatura, enquanto arte narrativa, se depare com aquele deslocamento de confiança identificado pelo crítico literário alemão Erich Auerbach, que viu no “tom irresoluto” do estilo de Virgína Woolf, exemplar da narrativa moderna, a convicção de que “não há possibilidade de o escritor ser completo tentando abarcar integralmente o universo exterior e, simultaneamente, fazer reluzir nele o essencial“, no que demonstra receio de impor à vida, ao seu tema, uma ordem que ela própria não tem“. A esse posicionamento irresoluto do narrador diante da realidade é que Auerbach chama “deslocamento de confiança”, definindo-o nas seguintes palavras: “descrente da possibilidade de elaborar uma narrativa que cumpra uma tarefa de compreensão global, integral e essencial da realidade, o escritor evita os grandes pontos cruciais externos e os golpes do destino, preferindo, a eles, aquilo que aconteceu a poucas personagens no decurso de alguns minutos, horas, ou, em último caso, dias“.

          Feitas estas ressalvas, vamos aos fatos:

         André Sztutman convocara para hoje uma reunião às 20h, à qual compareceram RES, Silvia Mharques, Rafael Pajé Aboud, Bhagavan David, Bruno Shintate, Jan Nehring, Lucas Schlosinski e este narrador.

         RES cedeu a palavra a Sztutman, que se demonstrou preocupado com a definição dos papéis a serem assumidos por cada integrante da ocupação, justificando que a reunião do dia 04/01/10 (cf. O CORPO é quente como o SANGUE) teria sido insuficiente para tanto. Outrossim, Sztutman demonstrava ansiedade por interferir esteticamente na cabana concreta, sugerindo a “possibilidade de fluxo nos trabalhos plásticos coletivos” como um segundo tema.

           RES retomou a palavra e salientou que o compromisso com uma função clara e definida por parte de cada integrante do grupo não se limitava ao projeto em andamento – a ocupação da FUNARTE/SP, que se encerra no dia 28 de fevereiro – e nem pertencia à dimensão ideológica; pelo contrário: tratava-se de definir um papel estritamente pragmático a ser assumido, no mínimo, ao longo de 2010, não no interior medíocre da galeria Mario Schenberg, mas na construção de uma grande obra (da qual RES não falou expressamente, mas que parece tratar-se, no entendimento deste narrador, da permanência e extensão da poética da “escultura social” de RES, realizada na prática em experiências do tipo “cabana” em maior dimensão física e geográfica – a insurreição de um movimento de cabanagem, por assim dizer).

            Ainda assim, RES insistiu que não se tratava simplesmente de cada membro definir seu papel num projeto de longo fôlego, mas de cada um de fato provar que é capaz de exercer esse papel, mais do que isso: provar que seu ser é indispensável para o Grande Projeto. Pois RES – nisto foi muito claro – eliminaria quem fosse incapaz de sê-lo, chegando a dizer que “se não servir para a minha obra, eu elimino ele da minha vida; se eu perceber que é leviano, eu elimino da minha vida; parece pesado, mas a gente poupa sofrimento e tempo“.

Em seguida, mandou que cada um dissesse exatamente no quê poderia servi-lo, isto no âmbito estritamente utilitário, pragmático.  

            O primeiro a falar foi Sztutman, que disse ser capaz de dar continuidade ao pensamento de RES.

            Rafael Pajé Aboud afirmou – com a segurança que lhe é natural – que oferecia desde já seu comprometimento.

            Bruno Shintate, simples e direto como sempre, foi o primeiro a ferir o ponto em questão, respondendo estritamente ao que foi perguntado: propôs-se Shintate a franquear ao público, por meio da divulgação fotográfica, cinematográfica e digital, o acesso ao pensamento de Rubens, possibilitando uma ampliação de sua influência.

            Em seguida Lucas Schlosinski, com sua potente racionalidade calcada no real, defendeu que, além do suporte técnico em mídias digitais, poderia servir como uma espécie de interlocutor do grupo em ambientes menos tolerantes ao discurso artístico, ou seja, proporcionaria ao grupo a existência de uma interface realista em contraposição à monotônica e generalizada interface poética.

            O escrivão, por sua vez, defendeu a importância de sua habilidade literária na realização de um projeto inédito – a redação de um manifesto artístico, a ser publicado, entre outros lugares (jornais, revistas, internet etc.) nas próprias paredes da FUNARTE/SP, no último dia da ocupação.

            Silvia Mharques – que, na opinião emitida então por este narrador, não precisava dizer nada, tamanha a efetividade de sua presença – propôs-se a ajudar o grupo a lidar com as questões mais humanas (em contraposição às meramente estéticas) de relacionamento íntimo e coletivo, em razão da maturidade que sua bagagem de experiência – a maior do grupo – naturalmente lhe confere.

            Jan Nehring, com a franqueza e desembaraço que lhe são peculiares, defendeu sinteticamente que sua função era a de agilizador, dando encaminhamento prático-operacional às idéias estéticas.

            Bhagavan David também descreveu sua função, mas o escrivão perdeu a concentração e não soube relatá-la, o que não acarreta muito prejuízo, porque Bhagavan é um homem de ação que se justifica pela própria atividade, juízo este evidenciado pelo simples fato de ter sido ele pioneiro em pernoitar na galeria Mario Schenberg, assegurando a ocupação (cf. O Início).

Completada a rodada, a palavra foi devolvida por RES a Sztutman, para que este fizesse uma análise individual da fala de cada um dos presentes, dissecando potencialidades e impotências. Isto com a veemente recomendação de que o analista o fizesse de modo extremamente implacável, contundente, incisivo, feroz, como se fosse desferir uma machadada na cabeça de inimigos.

            O que se seguiu, porém, foi um longo, lento, monótono, sonífero, infrutífero, inofensivo – e o pior de tudo – afetadamente intelectualóide discurso escolar de Sztutman, que muitíssimo frustrou particularmente a RES, o qual expressou em termos severos sua irritação.

            RES então partiu ele mesmo a fazer aquilo que Sztutman fora incapaz.

            Apontou as figuras de Nehring e Schlosinski. Eram eles, em suma, os mais dispensáveis de todos, não vendo RES motivos suficientes para continuar a trabalhar com ambos. A revelação provocou forte choque, permanecendo toda a mesa em silêncio.

            Aproveitando a abertura manifestada por RES para que alguém o contestasse, o escrivão tomou a palavra.

            Disse ele que se propunha, doravante, a exercer a função de “advogado do diabo”, no que provaria que RES emitira um juízo absurdo. Para isso, contestou a contradição entre o julgamento final de RES e seu critério. Este afinal seria o pragmatismo, e, sendo assim, a escolha de Nehring e Schlosinski como os menos úteis – e imediatamente dispensáveis – feria não a eles, mas ao próprio critério de RES, dado que os únicos que defenderam razões realmente pragmáticas para sua permanência no grupo eram justamente os dois apontados (além de Shintate e Silvia Mharques). Ao contrário, se havia alguém que não tinha função prática definida, esse alguém era o próprio promotor da questão, André Sztutman.

            Nesta linha de argumentação, o escrivão apontou para o sintomático fato de que esta era a segunda reunião em que Sztutman manifestava intensa preocupação com o problema de se assumir um papel definido. Ora, cada um dos presentes à mesa demonstrara em seu discurso saber no quê é bom, e, mais do que discutir sobre isso em reuniões, costuma gastar seu tempo sendo útil na prática, agindo. Já Sztutman, que sequer participou do soerguimento da cabana concreta, demonstrava estar novamente insatisfeito quanto à participação dos outros, como de outra feita criticou a suposta “indefinição de função” dos que ocupavam fisicamente a cabana, os quais, embora Sztutman não os tenha nominado expressamente na ocasião, todos sabem que são sempre os mesmos: Pajé, Bhagavan, Jan e Shintate (e mesmo Schlosinski e Renata Junqueira, recém incorporados, se enfurnaram na cabana desde que chegaram); esses são os bravos que não arredam de dentro da Mario Schenberg apesar de todo o desconforto.       

            Por que, então, essa inquietação de Sztutman, o qual se mostra, com a estranha anuência de RES, no direito de analisar e julgar a atuação dos presentes? Defendeu o escrivão que isto seria justamente um sintoma que revelaria um inconsciente questionamento do jovem consigo mesmo, quanto à sua própria função como homem e artista, neste momento em que a presença de seu corpo de obras é quase imperceptível no espaço da cabana.

            Quanto à predileção de RES por Sztutman em detrimento de Jan e Schlosinski, esta, enfim, não poderia ter fundamento racional, estando talvez baseada em ligações afetivas e/ou outros interesses de ordem pessoal desconhecidos. Assim se manifestou o escrivão; com isto, desferiu no próprio Sztutman, convocador da reunião, a machadada que ele, contrariando ordem expressa de RES, poupara aos demais.

             A noite, porém, não estava para Schlosisnki.                    [continua amanhã]

1 Resposta to “O MILAGRE DE RESPIRAR SEM APARELHO”


  1. 1 Lucas schlosinski 21/01/2010 às 18:07

    Lamento ter que esperar até amanha…


Deixe um comentário




Estatísticas

  • 29.278 acessos
Follow DCAL – Diário da Cabana: Abrigo Literário on WordPress.com

Todas as Postagens

CLIQUE PARA VER A IMAGEM INTEIRA

CLIQUE PARA VER A IMAGEM INTEIRA

Entre seu endereço de email para seguir este blog e receber notificações de novas postagens

Junte-se a 8 outros assinantes