Olavo em revista – crônica inacabada da (contra)revolução bolsolavista

O mito e o mistificador: Bolsonaro e Olavo de Carvalho destruindo o Brasil  - Marcia Tiburi - Brasil 247

Quando eclodiram as gigantescas manifestações nacionais a partir de junho de 2013, em reação espontânea à repressão policial e ao abafamento da grande mídia sobre o levante do Movimento Passe Livre em São Paulo contra o aumento das passagens, Olavo de Carvalho estava pronto.

Saídas do facebook (então novíssima possibilidade de interação social e política) direto para as ruas, sem passar por partidos ou sindicatos e associações, as massas subitamente mobilizadas em meio a um turbilhão político anárquico, sem lideranças, e já tradicionalmente alienadas, mais do que nunca confusas e paranoicas com a ideia de estarem servindo de massa de manobra a interesses desconhecidos, estavam predispostas a obter alguma orientação sobre O mínimo que você precisa saber para não ser um idiota, do “professor” Olavo (assim era chamado em muitos vídeos na internet), livro publicado logo em agosto daquele ano de 2013. O Brasil, enfim, parecia estar também pronto para Olavo de Carvalho, intelectual autodidata, filósofo conservador, autor polemista, que oferecia desde 2009 seu curso pessoal online de filosofia – o COF – transmitido de sua casa na Virgínia, nos Estados Unidos, onde vivia desde 2005.

Até então, durante as décadas de 90 e 00, as ideias conservadoras, contrarrevolucionárias, anticomunistas de Olavo não haviam encontrado repercussão senão marginalmente. Não era para menos: num país recém-saído (em 1985) da contrarrevolução real de um regime militar de 20 anos, o qual havia prosperado em certo ponto mas afinal entregue um país em frangalhos, não era de se esperar que vingassem ideias contrarrevolucionárias tão cedo. O autoritarismo e o reacionarismo, tendências permanentes da sociedade brasileira, estavam portanto fora de moda nos anos 90 e 00, permanecendo subterrâneos. E assim permanecia Olavo, mas sempre atuante, sem esmorecer perante a maior permissividade de valores morais trazidos pela redemocratização e a vinda à tona da hegemonia cultural progressista.

Mas agora nos anos 10 do século XXI, em que a Nova República completava 30 anos de desgaste e o governo brasileiro eleito, com Dilma Rousseff, ela própria ex-guerrilheira contra a ditadura, se inclinava (depois de FHC e Lula) efetivamente mais à esquerda, chegando a instalar uma Comissão da Verdade para apurar os crimes do regime militar, e integrando o Brasil numa UNASUL francamente esquerdista, agora uma reação da velha direita anticomunista tornava-se oportuna. E as palavras daquele homem pregando no deserto, ou melhor, nos vídeos reproduzidos nos canais do youtube (outra nova e poderosa arma de comunicação) de influenciadores simpatizantes de sua retórica polemista, insatisfeitos e revoltados com a situação geral do país, começavam a encontrar mais ouvidos atentos. Fora que Olavo, pelo seu destemor e alto preparo tanto intelectual como de ativista forjado no combate de ideias, além de formidável comunicação, já era o mentor de um núcleo fiel de alunos, leitores e ouvintes que constituíam uma pequena mas aguerrida militância conservadora anticomunista.  

            Não que Olavo trouxesse algo de absolutamente novo. Pelo contrário: as próprias Forças Armadas brasileiras, atores políticos de primeiro plano na história nacional, têm em sua doutrina, desde o levante comunista de 1935, o comunismo como inimigo interno do país.

Recapitulando rapidamente essa história do anticomunismo nas Forças Armadas, vê-se que, com sua participação na Segunda Guerra Mundial sob comando norte-americano, a influência das forças militares americanas sobre as brasileiras tornou-se determinante. Finda a Guerra em 1945, os oficiais brasileiros passaram a ir costumeiramente aos EUA receber formação, continuando sua americanização. E a subsequente disposição explícita dos Estados Unidos, a partir de 1947 com o presidente Truman, de combater o comunismo militarmente em escala global, opondo-se à União Soviética, levou a uma polarização radicalizada mundial ao longo dos anos 50 e 60 que culminou, no Brasil, com a contrarrevolução de 64 enquadrando de vez o país no bloco capitalista dos EUA.

No mesmo ano de 1964 foi fundado o SNI – Serviço Nacional de Informações –, órgão de espionagem da ditadura para identificar os inimigos do regime, notadamente os comunistas. Em 1968, era oficializada por lei a Doutrina de Segurança Nacional concebida na Escola Superior de Guerra, especialmente pelo general Golbery do Couto e Silva, prevendo o alinhamento do Brasil ao bloco ocidental liderado pelos Estados Unidos e o combate a inimigos internos, sendo seus mais notórios, sem novidade, os subversivos esquerdistas (alinhados à União Soviética).     

O Brasil deixou o regime militar em 1985. Os partidos comunistas saíram da ilegalidade. A constituição da Nova República foi promulgada em 1988.

Mas em 1989, em pleno fim da Guerra Fria, curiosamente, um relatório confidencial do Centro de Inteligência do Exército, hoje público, de autoria do general Sérgio de Avellar Coutinho, apresentava ideias parecidas às de Olavo de Carvalho, demonstrando preocupação com o suposto fato de que, com a redemocratização, os anistiados políticos repatriados haviam sido “inspirados e influenciados quando de sua estada no estrangeiro pelos pensamentos do filósofo italiano Antonio Gramsci”, e “passaram a buscar o domínio das instituições culturais e de educação. Pretendiam, assim, criar uma contra-hegemonia social, viabilizando as transformações que permitiriam a conquista do poder e a modificação da estrutura vigente”.       

            Com “modificação da estrutura vigente”, a Inteligência do Exército não queria identificar outra coisa senão aquele perigo permanente – revolução – que sempre julgou ser seu papel combater no âmbito interno, desde a monarquia, assim como ameaças à unidade territorial, conforme sua doutrina.

O Exército influenciou Olavo ou Olavo influenciou o Exército nessa atualização do anticomunismo brasileiro para a noção de “guerra cultural”, opondo revolucionários e contrarrevolucionários no campo das ideias? Não se sabe. De todo modo, Olavo tinha relações próximas com as FFAA, onde deu várias palestras, tendo recebido do Exército a honraria da Medalha do Pacificador em 1999, demonstrando, no mínimo, afinidade entre ambos.

Poder-se-ia perguntar: seria o professor Olavo ele próprio um agente do SNI (Serviço Nacional de Inteligência, hoje Abin)? Eis aí uma teoria da conspiração, levantada pontualmente neste parágrafo, que não pode ser atestada, mas que não seria estranha. Afinal, Olavo falava com propriedade da “técnica da desinformação”, ação planejada típica dos serviços secretos de inteligência, para confundir e reorientar decisões políticas no sentido desejado. Mas, se Olavo foi (nada ratifica) ou não um agente secreto de carteirinha, recrutado – o que é mera especulação –, isso pouco importa, porque já era às claras por vontade própria, a par de ser filósofo, um aguerrido ativista político e cultural público do anticomunismo, partilhado ideologicamente pelo Exército. Se chegaram a trabalhar em conjunto secretamente, não se sabe, e também não mudaria muita coisa. O que mais parece é que Olavo, como intelectual público, era chamado para falar nas FFAA e ajudar a capacitar o oficialato pela coincidência ideológica doutrinária.

Voltando ao ano de 2013. A partir desse ponto histórico de virada política no Brasil, a sucessão de fatos mostrará a crescente importância do filósofo no cenário político nacional. E seu súbito declínio, correspondente à ascensão e queda do que passaria a ser chamado também de “bolsolavismo”.

Pois bem. A marchas disparadas em junho de 2013 sacudiam o país, rachando o consenso de centro-esquerda que dominara a política de FHC a Dilma, passando por Lula. Em meio às confusões de rua daquele histórico ano, um acontecimento quase despercebido, mas indicativo dos novos tempos polarizados chegados com os ventos de junho: um ataque de um pequeno grupo de manifestantes de direita contra participantes de esquerda do XIX Foro de São Paulo, encontro da esquerda latino-americana realizado coincidentemente em agosto daquele ano num hotel na capital paulista. Os manifestantes contrários ao Foro carregavam cartazes de “intervenção militar já”. Aproveitando que todo o Brasil saía para se manifestar, a direita também saía do armário e levantava pela primeira vez a cabeça nas ruas depois de décadas.  

Paralelamente, o professor Olavo martelava em seus vídeos e hangouts a ideia de que o PT era um partido com um projeto totalitário, integrante de uma conspiração do maquiavélico e poderoso Foro de São Paulo para implantação do comunismo na América Latina. A ideia, como se vê, estava pegando.

O  futuro “bolsolavismo” também dava sinais de desenvolvimento.  Em fevereiro de 2014, o agora badalado (pelo sucesso de seu livro O Mínimo) filósofo conservador Olavo de Carvalho e o político reacionário Jair Bolsonaro, então deputado federal, ambos polêmicos e defensores da ditadura militar, participam de uma videoconferência, junto com os filhos de Bolsonaro Flávio e Carlos. Na ocasião, o filho mais velho de Bolsonaro, Flávio, que era por sua vez deputado estadual, relembrou a aproximação com o filósofo ocorrida em 2012, quando entregou pessoalmente a Olavo, na casa do filósofo na Virgínia, a Medalha Tiradentes proposta por ele Flávio e aprovada pela assembleia legislativa do Rio de Janeiro. A entrega foi transmitida no True Outspeak, programa de rádio online conduzido desde 2006 por Olavo de Carvalho. Nessa videoconferência de 2014, Flávio Bolsonaro comenta:

Eu tive a honra de te entregar aquela Medalha Tiradentes, e desde então eu acho que a gente tem estreitado esse laço e, com certeza, nós, mais jovens, temos muito a aprender com toda a sua experiência e a sua bagagem intelectual.

A nova onda conservadora, contudo, não chegou a ser suficiente para evitar a reeleição de Dilma em 2014. Não por outro motivo senão pela simples falta de voto de seu concorrente Aécio, do PSDB, candidato fraco e sem base social. Mesmo assim, a vitória de Dilma foi apertada.

O comportamento de Olavo nessas eleições é digno de nota. Acreditava a princípio que o processo eleitoral era uma fraude armada para manter o PT no poder, mas bem aceitou o resultado das urnas quando viu Aécio dar uma surpreendente arrancada final para o segundo turno, e ficou na expectativa de vencer pelo voto, legitimando assim o processo de uma hora para outra. Mas na sequência, quando Aécio enfim perdeu, não por roubo, mas por aquela falta de voto crônica dos tucanos, saiu esperneando de novo que era tudo fraude. Imediatamente os insuflados militantes anti-Foro de São Paulo, entre eles o famoso músico Lobão, então ardoroso discípulo de Olavo, foram defender “intervenção militar” – golpe de estado – na Avenida Paulista. A reeleição legítima de Dilma, nas urnas, não seria aceita pela extrema-direita.

Em 2015, as manifestações de rua, agora já tomadas definitivamente pela direita verde-amarela, ostentava cartazes com o bordão “Olavo tem razão” pelo país, convencida de que o PT era uma organização criminosa impondo sorrateiramente uma ditadura socialista. Impressionante demonstração de influência política de um intelectual. A nova direita conservadora, mentoriada pelo professor Olavo, começaria então a ter impressionantes vitórias políticas no mundo real, longamente preparadas pela pregação do filósofo.   

Entre essas vitórias, estariam os diversos vetos à “ideologia de gênero” nos planos de educação estaduais e municipais (em reação ao plano nacional de Dilma), depois de grande campanha da direita com manifestações nas assembleias legislativas de todo o país, com destaque para a militância dos padres José Eduardo e Paulo Ricardo, expoentes do campo católico conservador de influência olavista. Eis aí uma das carcterísticas fundamentais do neoconservadorismo brasileiro: o combate ao feminismo. O que não foi difícil, devido aos erros evidentes do feminismo, como a política de que a sociedade deve reconhecer oficialmente um homem como mulher, e vice-versa, se a pessoa assim preferir, o que contraria a realidade dos fatos. 

Recém-eleita, Dilma balançava. Contudo, sem força ainda para a sonhada “intervenção militar”, a extrema-direita de intervencionistas e “Revoltados Online” parte para o impeachment, junto com a direita mais branda de atores como MBL e Vem pra Rua. A contragosto de Olavo, que não queria essa solução institucional para não legitimar a eleição de 2014, que ele não reconhecia como válida. Sua opção era mesmo a intervenção cívico-militar direta – o golpe – para deposição do PT, mais a seu gosto.

A onda conservadora ia virando um maremoto.

Paralelamente, em 2016, o juiz da lava-jato Sergio Moro, depois de determinar uma desnecessária condução coercitiva de Lula no processo do triplex, atua novamente à margem da legalidade e divulga para a Rede Globo conversas privadas do ex-presidente com a presidente da república, divulgando-as o Jornal Nacional como escândalo. A pressão da direita, na esteira do fato, torna-se enorme, chegando o MBL a acampar com barracas em plena Avenida Paulista.

Enfim, depois de desgastante processo de impeachment, cai o governo do PT. Dilma é afastada sob pretexto de “pedaladas fiscais”. Assume Temer.

Em 2017, o juiz da operação lava-jato Sergio Moro condena Lula em primeira instância no controverso processo do triplex. 

Em 2018, o general Villas-Boas, comandante do Exército, pressiona o STF a não conceder um habeas corpus para Lula. Em abril, Lula é preso, e depois impedido de concorrer às eleições no fim do ano.

Jair Bolsonaro, a essa altura já bastante ligado ao olavismo, surfando na grande onda neoconservadora, é eleito presidente, depois de sofrer um ataque a faca durante a campanha.

Começa seu governo em 2019, com dois ministros indicados diretamente por Olavo de Carvalho, na Educação e nas Relações Exteriores.

O olavismo passava assim da oposição para a situação, vinha enfim à tona.

Detalhe: na pasta da Justiça, assumia como ministro o agora ex-juiz Sergio Moro, algoz de Lula.

Façamos uma rápida revista do conturbado mandato de Bolsonaro, para avaliar como se portou o bolsolavismo no poder.

Empossados, Bolsonaro e Ernesto Araújo, ministro olavista radical das Reações Exteriores, começam pondo o Brasil quase em guerra com a Venezuela do socialista bolivariano Maduro, numa ação orquestrada com a Colômbia pelos Estados Unidos de Donald Trump, ídolo neoconservador de Bolsonaro, em favor do autodeclarado presidente venezuelano Guaidó, oposicionista aliado dos norte-americanos. A tentativa dos EUA de mudança de regime na Venezuela, em conjunto com Brasil e Colômbia, quase joga os países sul-americanos em guerra, que é evitada por ações de prudência de última hora do vice-presidente Mourão e do comando do Exército.  

No plano administrativo, o governo, eleito sem ter conseguido apresentar na campanha um plano de governo por escrito completo, é um improviso em todas as áreas. 

E os exageros de extrema-direita seguiam. Já em 2019 o novo governo tenta emplacar um de seus únicos projetos, o Escola Sem Partido, de inspiração olavista. Elaborado às pressas, o projeto pretendia, nada menos, que afixar cartazes nas salas de aula do Brasil com “5 deveres do professor”, como o 1º:

O professor não se aproveitará da audiência cativa dos alunos para promover os seus próprios interesses, opiniões, concepções ou preferências ideológicas, religiosas, morais, políticas e partidárias”.

O elaboradores do projeto previam a recepção de denúncias contra os professores e “sanções de natureza civil (reparação dos danos eventualmente causados aos alunos), administrativa (punição disciplinar) e penal, podendo render ao professor uma condenação a até 6 meses de detenção, a perda do cargo e a inabilitação para o exercício de qualquer outra função pública por prazo até três anos (Lei 4.898/65)”.

O projeto enfrenta, obviamente, enorme resistência da comunidade acadêmica e escolar, sendo rejeitado. As discussões no Congresso e na sociedade em torno do fracassado projeto foram reveladoras. O absurdo proposto, que implicava levantar suspeitas, denúncias e censura sobre o professorado brasileiro, expunha na concretude da realidade as consequências práticas do olavismo cultural, recebido por pessoas sem preparo intelectual e obstinadas ideologicamente. O malfadado projeto depunha contra a árvore intelectual de Olavo, que produzira tais frutos, ainda que Olavo, constrangido pela ignorância radicalizada de seus seguidores, tenha tentado se distanciar do projeto, criticando-o: sugeriu que o nome do projeto mudasse para Escola Sem Censura, já tarde.

Ainda em 2019, o STF abre – arbitrariamente, é preciso registrar – o “inquérito das fake news”, em reação à campanha de difamação da Suprema Corte dos “gabinetes do ódio” bolsolavistas .

Em novembro, o ex-presidente Lula é solto após 580 dias de prisão na Polícia Federal de Curitiba, onde vigorou o acampamento “Lula Livre”.

Em 2020, a pandemia do coronavírus chega ao Brasil. Bolsonaro adota uma postura negacionista, e assim Olavo. Diante da atitude temerária do governo federal, negando-se a enfrentar o problema, o STF delega o combate à epidemia também a estados e municípios.

Uma nota a favor de Bolsonaro: quanto à sua forma de lidar com a pandemia, pode-se dizer que sua política anti-isolamento, apesar de imprudente porquanto baseada na negação do problema (uma “gripezinha” que, na sua avaliação, não mataria mais de 800 pessoas num país inteiro do tamanho do Brasil – mas que veio a matar mais de 600.000…), e defendida pelo presidente de forma truculenta, sem cooperação, pelo menos não cedeu, é preciso reconhecer, à histeria geral do primeiro momento, recusando-se o presidente a fechar as estradas do país, como queriam muitos, o que seria caótico. Outrossim, a política de “nenhum isolamento” de Bolsonaro (ele parecia preferir o contágio livre para alcançar a imunidade de rebanho, espécie de roleta-russa individual em prol do coletivo), se era errada, tinha o ponto positivo de manter a população também atenta à realidade de que não seria possível um “fique em casa” prolongado de um país inteiro, dado o risco de caos social. Em suma: Bolsonaro foi errado em ignorar ou minimizar o risco sanitário, mas tinha razão ao alertar para o risco social.

De qualquer modo, a falta de liderança e cooperação política prosseguiria ao longo da pandemia, com os poderes batendo-cabeça às raias do conflito.

Paralelamente, em abril de 2020, num revés para Bolsonaro, Sergio Moro deixa o governo, dando a entender que o presidente intervinha na Polícia Federal para proteger seus filhos nas investigações das rachadinhas (divisão e reembolso dos salários de assessores). Bolsonaro, contudo, consegue amenizar os estragos políticos.

Sua pauta, por outro lado, agitando o país com manifestações, além do anti-isolamento, é de pressão sobre o Supremo Federal Tribunal, incluindo ameaças constantes de intervenção, chegando os militantes bolsolavistas a atirar fogos de artifício no prédio do STF.

O STF, por sua vez, aumenta a retaliação a aliados de Bolsonaro e Olavo, levando o filósofo a se pronunciar nas redes sociais:

“Bolsonaro: se você não é capaz de defender a liberdade dos seus mais fiéis amigos, renuncie e vá para casa antes de perder o prestígio que em outras épocas soube merecer.”

Em 2021, a segunda onda da pandemia atinge em cheio o país, levando à crise da falta de oxigênio em Manaus, enquanto o governo federal insistia em cloroquina. 

Enfim começa a vacinação. Vencido na opinião pública, o governo federal adere ao processo iniciado pelo governador de São Paulo. A pauta política de Bolsonaro, no entanto, não é a vacinação, mas sim o “voto impresso auditável”, contra as urnas eletrônicas. Bolsonaro reitera que houve fraude na eleição de 2014 e em sua própria eleição (!), e que haverá fraude na de 22. Sem apresentar provas, Bolsonaro desestabiliza o país com sua agitação e incorre em prevaricação, mas as instituições (os outros dois poderes, Congresso e STF) parecem preferir ignorá-lo para não pôr lenha na fogueira, a bater de frente criando mais agitação.

Paralelamente, Sergio Moro, ex-juiz e agora ex-ministro, é declarado suspeito pelo Supremo Tribunal Federal. Lula tem seus processos anulados e volta a se tornar elegível.

Reunindo toda sua militância no dia 7 de setembro de 2021, sob o lema golpista “eu autorizo”, Bolsonaro tenta um golpe final para emparedar o Congresso e o STF, mas o tiro sai pela culatra. Caminhoneiros que achavam que tinham sido convocados por Bolsonaro para a tão esperada intervenção militar, se recusam a destravar as estradas. Pressionado pelas consequências da crise instalada por ele mesmo, e sob ameaça de impeachment contra suas pretensões golpistas, Bolsonaro convoca o ex-presidente Temer para o ajudar na redação de um armistício com o STF, publicado no diário oficial.

A ala “ideológica” – olavista – do governo, que já vinha em franco declínio, perde totalmente espaço, cedendo de vez ao velho centrão. Bolsonaro deixa de ser o agitador antissistema, espécie de oposição de si mesmo, parando de insuflar protestos e enquadrando-se no cargo. Depois do tiro n’água do 7 de setembro, o governo Bolsonaro, já muito avariado em sua popularidade, torna-se melancólico.

Em dezembro de 2021, Olavo reclama de Bolsonaro tê-lo usado como garoto-propaganda para se promover e se eleger, mas de não havê-lo seguido filosoficamente, e enfim tê-lo escanteado.

Nos primeiros dias de 2022, a terceira onda da covid, na sua variante ômicron, se espalha pelo Brasil, tendo já atingido o mundo. Nos Estados Unidos, ainda em negacionismo quanto à pandemia, Olavo é contaminado. Falece, contudo, sem se saber se diretamente pela covid ou por suas comorbidades graves.

Conclusão.

A impressão que se tem, observando-se essa trajetória do bolsolavismo, desde o sucesso d’O Mínimo em 2013 até a morte do filósofo em 2022 – quase dez anos de terra em transe –, é a de que nem Olavo nem Bolsonaro souberam ser situação, guardando a posição conquistada.

De fato, enquanto ambos compunham, um como mentor intelectual e o outro como representante político, o fenômeno de uma nova direita antissistêmica, anti-hegemônica, de oposição, sua ideologia podia ser “subversiva” à vontade, destrutiva-negativa, sem responsabilidade, sem necessidade de aplicabilidade prática construtiva, positiva. Chegando porém ao governo, no centro do palco, confrontados com a realidade da administração de um país continental, plural, a mesma ideologia entrou em parafuso. Pois trata-se de uma ideologia contrarrevolucionária radical, facciosa, unilateral – e contrarrevoluções não deixam de ser revoluções, conturbações da ordem. Espécie de “desentortar o torto entortando pro lado oposto”, ou, mais claramente, desesquerdizar o país fomentando a extrema-direita. Ainda que isso signifique um governo que não governe para todos, e tenha parte da sociedade como inimiga.

Concentrados assim em realizar uma revolução de subversão de sistema, de alteração de hegemonia, o ex-militar reacionário e os discípulos do intelectual polêmico não tinham preparo para administrar um país. E nem era mesmo o que pretendiam. Daí se compreendem as palavras de Jair Bolsonaro num jantar na residência do embaixador brasileiro em Washington, onde estavam presentes ninguém menos que o próprio Olavo de Carvalho e o famoso ideólogo conservador americano, ex-estrategista de Trump, Steve Bannon. Declarou Bolsonaro:

Eu sempre sonhei em libertar o Brasil da ideologia nefasta de esquerda (…). O Brasil não é um terreno aberto onde nós pretendemos construir coisas para o nosso povo. Nós temos é que desconstruir muita coisa. Desfazer muita coisa. Para depois nós começarmos a fazer. Que eu sirva para que, pelo menos, eu possa ser um ponto de inflexão, já estou muito feliz. (…) Um dos grandes admiradores meus [sic] está aqui à minha direita: o professor Olavo de Carvalho, que é admirador [sic] de muitos jovens no Brasil. Em grande parte, devemos a ele a revolução que estamos vivendo.

E as honestas palavras de Olavo, em outra ocasião:

“Eu vim para foder com tudo!”

Muito curioso, enfim, que, desta vez, tenha sido a direita a operar na contracultura, de modo subversivo. Quem diria. Olavo de Carvalho, especialista em combater revoluções, aplicou contra e esquerda a mesma técnica de infiltração e ocupação de espaços culturais, mas para sua contrarrevolução. E jogando baixo em seus métodos, abaixo da linha de cintura frequentemente.

A avaliação ponto a ponto, porém, da pertinência de seu ideário anticomunista contrarrevolucionário radical, bem como dos temas de sua filosofia conservadora, fica para outra oportunidade. Pode-se porém adiantar, de cara, que há algo de evidentemente contraditório num conservadorismo revolucionário, ainda que contrarrevolucionário, pois o conservadorismo é por definição antirrevolucionário, isto é, contra revoluções quaisquer que sejam. (Ou o conservadorismo comportaria a ideia de radicalização chegando paradoxalmente à contrarrevolução – o “desentortar o torto entortando pro lado oposto” – conforme a necessidade de oposição a uma revolução? Coisa de se averiguar nos cânones conservadores).

A guerra cultural, contudo, segue.

Até porque a tática contrarrevolucionária parece compreender as “aproximações sucessivas”, os recuos temporários e avanços cada vez maiores, como explicitou o general Mourão.

E, se há um refluxo na atabalhoada contrarrevolução de Bolsonaro e Trump, de Olavo e Bannon, pelos erros de sua obstinação ideológica de viés autoritário, mais reacionária que propriamente conservadora, nada indica o fim da (praticamente permanente, milenar) cruzada supremacista internacional pela defesa da civilização ocidental judaico-cristã, liderada pelos Estados Unidos, contra a infiltração comunista, o Oriente e o Islã.

Ademais, é de se esperar que o Brasil, que, pelo seu tamanho e influência, não pode abdicar de um certo grau de liderança relativa (sul-americana) e independência no jogo internacional, nas horas de crise tome sim o lado do Ocidente, do qual afinal faz parte, não só pela geografia, mas pela história e cultura. De modo que, ache-se bom ou ruim, não se pode negar a pertinência no Brasil do conservadorismo, que defende os mesmos valores (religião e moral judaico-cristã, filosofia clássica, direito romano, economia liberal etc.) tradicionais à cultura ocidental, herdada pela cultura brasileira.

Que Olavo de Carvalho e Bolsonaro sejam bons ou legítimos expoentes do conservadorismo, nas ideias e na prática, isso é questão de se estudar. Igualmente, se era legítimo o método de “desentortar o torto entortando pro lado oposto”, e se contribuíram assim para a evolução do Brasil à direita, ou colaboraram para pôr em crise a nascente nova direita. De qualquer forma, uma avaliação do legado de ambos, seja para o país seja para sua causa, deve ficar mais clara com o tempo.  

Com tempo, inclusive, gostaria de apreciar melhor o aspecto mais literário (li apenas O Mínimo), menos de atuação política, de Olavo, que parece ser mais interessante, menos contraditório.

*

André Falacho Torres, escritor e músico, autor de Contos do Jordão (ed. Coletivo Editorial, 2021) e Jogo Arriscado (Ed. Toró na Cuca, 2012), e do blog DCAL -Diário da Cabana: Abrigo Literário (WordPress, 2010).   

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