Correntes da História V

28/12/2009  – segunda-feira

           Uma comparação entre a produção cerâmica de Halaf e Samarra com a de Marajó e Santarém é inevitável. 

           Embora tão distantes no tempo (as primeiras são de 5.000 a.C. e as segundas de 1.200 a.C.) e no espaço (as primeiras são da Mesopotâmia e as segundas da Amazônia), apresentam importantes características em comum.

            A cerâmica amazônica também adota o preenchimento compulsivo do vazio espacial por meio de formas geométricas, revelando que as diacrônicas culturas mesopotâmica e amazonense compartilhavam certo “horror ao vazio” e adotavam soluções estéticas semelhantes para enfrentá-lo. O dinamismo das formas geométricas está igualmente presente, embora os vasos amazônicos apresentem não exatamente as hélices (cruzes giratórias, suásticas) de Samarra, mas linhas terminando em rodopio espiral, como conchas de caracol ou redemoinhos. Isto não impede que cruzes simétricas sejam também encontradas na cerâmica amazônica, sem qualquer simbologia, com a única função – puramente estética – de demarcar o ponto exato do centro de uma forma.

          O mais surpreendente – diria espantoso – da pintura dos vasos amazônicos, entretanto, não é a interessante presença da linha curvilínea e espiral análoga à dinâmica hélice mesopotâmica, mas justamente a linha e o ângulo retos, que arquitetam nada menos do que o universalmente reconhecível “padrão grego antigo” de ornamentação geométrica: aquela linha reta horizontal que, quebrando sucessivamente em ângulos retos (90°) unilaterais, converge sobre si mesma numa espiral quadrada cada vez mais apertada, até que, no momento crítico, uma milagrosa tomada de decisão – não uma nova guinada fechando para um beco sem saída, mas abrindo na direção oposta – impede que a linha trombe consigo mesma, fazendo com que tome o caminho de volta para fora do labirinto, paralelamente a si mesma, criando a nítida impressão de que estamos diante de duas linhas. Mal-saída dessa forma labiríntica, a linha reta entra em outra espiral quadrada idêntica, e assim sucessivamente, escapando a esses becos sem saída como Teseu no labirinto do Minotauro, com a ajuda do fio de Ariadne.

          Como explicar essa coincidência estética entre Amazônia pré-cabralina e Antiguidade Clássica? Para responder a isto, teríamos que, no mínimo, elencar os argumentos da Teoria da Difusão e do Paralelismo na cultura, coisa para a qual nos falta tempo.

           Além da pintura abstrato-geométrica, a cerâmica amazonense destaca-se pela estatuária antropomórfica e zoomórfica. As figuras reproduzem as formas humanas e animais às vezes em tentativas realistas, outras de maneira estilizada, sem preocupação com uma imitação fiel da realidade. Nos motivos zoomórficos também há analogia com a arte mesopotâmica, que desenvolveu uma profusa estatuária de pessoas e animais mais ou menos estilizados: lá, touros, bodes e ovelhas; aqui, cobras, sapos e urubus, especialmente o urubu-rei.

           É interessante notar que, como Halaf e Samarra tinham lá suas diferenças estéticas, assim também Marajó e Santarém: o forte da cerâmica marajoara está na qualidade da pintura que recobre a superfíce, enquanto a santarena destaca a argila em si, dando relevo e corpo às formas usadas na ornamentação. Em outras palavras: na sua cerâmica, Marajó dá ênfase à arte da pintura (uso da superfície), ao passo que Santarém valoriza a cerâmica em si (uso do volume).

          De fato, Santarém excede sobremaneira Marajó no trabalho plástico da argila, chegando a formas bastante complexas e de difícil execução técnica. Um dos recursos ornamentais recorrentes da cerâmica santarena, por exemplo, é a presença de cariátides, figuras humanas que sustentam, como colunas, a parte superior de um vaso (mais uma vez remetendo à arte da Antiguidade Clássica). Os vasos de cariátides santarenos são tão ricos formalmente que chegam a sugerir uma verdadeira civilização escondida sob as árvores da floresta – embora isto, até hoje, não possa ser afirmado.

            Mas uma coisa nem Santarém, nem Halaf nem Samarra têm, porque só Marajó tem: a tanga. Sim, a tanga de argila, com furos laterais para passar os lacinhos e tudo! Tangas primitivas femininas, recobertas daquela belísssima geometria marajoara, que cairiam muito bem na mulher moderna. Que maravilhosas essas tangas milenares, que parecem estar à frente da moda!

          Sobre qual teria sido o uso original dessa tanga – se puramente estético ou cerimonial – não se pode afirmar ao certo. A tendência, contudo, é presumir que seja mesmo cerimonial, e é provável que assim o fosse, posto que é difícil imaginar problemas de pudor numa cultura amazonense pré-cabralina. Mais plausível é que as mulheres só vestissem esses aparatos em determinadas cerimônias. Mesmo porque seria estranha a idéia de tomar um banho de rio com tangas de argila, e carregar esses trambolhos pela aldeia seria um fardo desnecessário. Mas quem sabe? Pode ter sido moda, também. O fato é que nunca saberemos ao certo seu uso, se vestido das noivas, se batina das sacerdotizas, se distinção das mulheres do cacique, se véu das virgens destinadas a ritual de sacrifício etc. De qualquer modo, uma boa versão em tecido desses biquínis será produto de exportação assim que o primeiro estilista esperto ler este texto.

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