O MILAGRE DE RESPIRAR SEM APARELHO (cont.)

20/01/10 – quarta-feira

          Ontem, André Sztutman não se preocupou em rebater as acusações feitas contra si, nem ninguém da mesa encontrou nelas maior gravidade, cientes de que estavam muito mais diante de um recurso retórico de provocação deliberadamente exagerada por parte do escrivão do que de uma peça de acusação montada para levar a cabo uma condenação efetiva. Pelo contrário, percebeu-se nitidamente que o escrivão, atacando impiedosamente Sztutman, aproveitava a dinâmica da mesa – o pedido de RES de ataque feroz deixado em aberto – para desenvolver uma estratégia de defesa de Nehring e Schlosinski baseada no contra-ataque, utilizando a técnica de desqualificação moral do próprio promotor da demanda, Sztutman, responsável pela convocação do tribunal-relâmpago ora instaurado – o escrivão intentava uma virada de mesa, por assim dizer.

            Sua tática foi em alguma medida eficaz, retirando momentaneamente Schlosinski e Nehring do foco de ataque, no que lhes propiciava sobrevida e novas chances de reação. Já o desgaste frente a Sztutman – homem de excelentes relações no interior da cabana – certamente cobrará seu preço. Na verdade, a vítima do golpe sequer se abalou; talvez porque a situação de Sztutman, atual vencedor da Anual da FAAP, garoto-prodígio bem cotado no circuito, seja mesmo muito confortável no interior da cabana.         

          De qualquer modo, o resultado final foi que RES aquiesceu em justificar seu critério de seleção (mesmo não sendo obrigado a fazê-lo, por mais misterioso que fosse). Fê-lo, todavia, com o engenho que lhe é peculiar, por meio da seguinte parábola:

          “Suponhamos que isto é um barco, eu sou o capitão, e surge uma terrível tempestade. Ora, é lógico que eu vou escolher para estar do meu lado os marujos com quem tenho facilidade de trabalhar.”

          Com isto afirmava que seu critério era ainda, coerentemente, o do pragmatismo, mas não o pragmatismo da técnica – RES não precisava, por exemplo, de alguém como Jan (subindo pelas paredes) ou Schlosinski (manejando uma câmera de vídeo) para “operacionalizar” suas idéias – mas um pragmatismo da confiança. E disto ele não via sinais de parte de nenhum dos dois, os quais, portanto, tinham razão de ser indicados à exclusão.

          Schlosinski contra-argumentou que esta era uma falha mútua numa via de mão dupla, implicando assim RES, de quem também não via partir os mesmos sinais. Afinal, estaria também esperando um sinal de aceitação, de boa-vontade, da parte de RES.

          RES, visivelmente tocado, afirmou: “Eu não sou o dono da verdade; assumo todos os meus erros com você, Lucas”, mas redarguiu com o fato – irretorquível – de que esta “falha de comunicação”, ainda que mútua, torna-se um problema real apenas para Schlosinski, na medida em que só este é afetado pelas consequências da mesma quanto à participação na cabana.

            Esforçando-se sobremaneira por não deixar escapar sinais da tensão que o tomava, Schlosinski tentou mais uma vez defender-se, explicando que esta sua “rigidez“, esta sua “incapacidade de realizar uma ligação direta” no campo das relações humanas não era uma questão particular com RES, mas sim constitutiva do seu próprio “eu”, uma forma de ser que ele desenvolvera no enfrentamento com o mundo real, mundo implacável que não perdoa a inocência e a paixão, mundo-aparelho frio e cruel dentro do qual, por necessidade, ele aprendera a respirar.

            RES lamentou que fosse assim, porque, independentemente do motivo, o fato é que um não tocava o coração do outro, e que, se não fosse possível a ele sentir paixão nos olhos de Schlosinski, este não poderia mais compartilhar sua obra. No mais, Schlosinski, com todo seu profissionalismo técnico, poderia se dar bem em qualquer lugar, talvez “na Rede Globo” ou coisa assim, mas na cabana nada disso importava, se Schlosinski não fosse capaz, uma única vez, de dizer ou fazer algo que importasse, algo que tocasse o coração de Rubens. Se a fortaleza mecânica de Schlosinski tornava isto impossível, então ele não tinha mais função na cabana.

            Depois desta quase declaração pública de demissão, a situação emocional de Schlosinski na mesa – que tanto esforço (ainda que em vão) vem dedicando nos últimos dias no sentido de flexibilizar seu ser para se adequar à cabana e aqui permanecer – chegava visivelmente ao limite.

            “Talvez minha função seja exatamente a de ver um milagre ocorrer aqui“, proferiu então Scholosinski, como que saindo inesperadamente do mar escuro com uma pérola.

             A declaração suspendeu a mesa a um novo grau de atenção.

            “Mas eu não sou o Messias…”, redarguiu Rubens Espírito Santo, explicando que não estava obrigado a operar milagres (de relacionamento) que salvassem (incluíssem) a todos. “O milagre é ‘feliz‘; você só quer fazer a viagem com quem está pronto”, acrescentou, exemplificando metaforicamente que, no caso de sua relação com Rafael Pajé Aboud, o “milagre” (a sintonia de personalidades) tinha vindo naturalmente, espontaneamente. E que, infelizmente, era com este tipo de pessoa – com quem o “milagre” simplesmente “se dá”, seja lá por que razão – que ele compartilha sua obra.  “Você pode ficar à espera de um milagre, mas não entre eu e você, porém entre você e você mesmo”, completou Rubens.

            Rafael Pajé Aboud então ergueu a mão, e todos pararam para ouvi-lo. Numa manobra ágil de subversão do pensamento (dando “um gato” no discurso, como gosta de dizer Rubens), Pajé disse que não via em Schlosinski essa suposta fortaleza mecânica, fria de que todos falavam, mas, pelo contrário, um homem pleno de emoção, e que Schlosinski deveria justamente investir nessa emoção em seu trabalho. 

             Schlosinski, ainda resguardado a emoção em seu semblante fechado, apontou, com a voz embargada, para a diferença entre “ter emoção” e “transparecer emoção”, bem como não ser preciso que houvesse tal exposição radical – esse rasgar o peito e apresentar o coração batendo – para que o trabalho prático coletivo fosse melhor. E que, muito pelo contrário, o conjunto da obra perde sempre com isso, no momento em que um de seus componentes se fragiliza, se fragmenta. “Eu não posso deixar isso aberto… eu não me permito entregar… essa frieza, essa falta de paixão, isso é parte do que eu sou; EU SOU O CARA QUE APRENDEU A RESPIRAR DENTRO DO APARELHO…”  

           “Se essa coisa sufocante não se resolver, você vai morrer!”, exortou-lhe Rubens.

          “Mas eu tenho essa fortaleza como uma bombinha que eu carrego para respirar, e agora essa bombinha não está funcionando [referia-se a uma lágrima que deixara escorrer], e ela não funcionando eu não produzo bem, e a obra coletiva fica prejudicada…”

          “Mas eu não quero você usando essa bombinha aqui dentro! Use-a onde você quiser, instale-a onde você quiser, mas não na minha obra!”, disse-lhe Rubens.

         Emocionado, Schlosinski levantou-se da mesa e retirou-se da sala.

        Os mais experientes da mesa – Rubens Espírito Santo, Silvia Mharques e André Falacho Torres – puseram-se imediatamente a debater o grau de urgência da situação e o desfecho a ser dado. Porém, mal tiveram tempo de tomar qualquer medida, porque Schlosinski voltou para dentro da galeria Mario Schenberg recomposto, retomando seu lugar à mesa. Havia chorado.

          “Ainda acho que isto não era necessário”, declarou Schlosinski.

         “Sim”, respondeu Rubens, “porque ali onde você acha que depõe contra si mesmo, esse é o lugar que mais te dignifica. Nenhum dos presentes aqui seria louco, seria estúpido de dizer que qualquer ação sua na noite de hoje tenha deposto contra você. Muito pelo contrário. Quando eu vejo você respirando na máquina, eu te odeio; quando eu te vejo romper com o aparelho, te olho com doçura. Me toca muito, e de maneira violenta, quando eu sinto que há em você um embate. E você está aí, você voltou, foi capaz.”  

          “O MILAGRE É RESPIRAR SEM O APARELHO”, proferiu André Sztutman como um lampejo inspirado. Todos da mesa perceberam que este era o ponto final da obra de hoje.

           Operado o milagre, foi feita uma vaquinha para comprar pizza e cerveja. Era preciso recompor as energias. Durante o jantar, após comentar a difícil situação financeira de um professor do estado, RES prometeu dar gratuitamente uma obra sua a André Falacho Torres, para que este saísse a vendê-la, a fim de angariar fundos para seu casamento. Torres topou a aventura na hora. Os demais artistas, inspirados por Rubens a fazer o mesmo, aprovaram unanimemente a idéia.

4 Respostas to “O MILAGRE DE RESPIRAR SEM APARELHO (cont.)”


  1. 1 macadden 23/01/2010 às 3:51

    me desculpem pela ausencia,bom primeiramente(uaaaaa,som de um bocejo) e segundamente,segundo a minha mente digo,deveriamos mudar o nome(ja me inclui na diretoria)para,casinha do res,que tal…por que é o que esta parecendo,esse res ai,o que ele faz heim,tudo bem pode ser até um grande artista mais perai,acabaram de morrer 110 mil la no haiti,eles sim tem motivo pra chorar,vamo produzi criançada,vamo cria,vamu pras cabeça sem bla la la,é nois

  2. 3 BOCÂINA 04/02/2010 às 16:17

    BOM…OLÁ
    É a minha primeira vez aqui, colisensa
    calma ai macadden…Maracujá eu recomendo para ti filhão…
    apressadinho vc hein, quer dar cheque-mate sem tomar o centro do tabuleiro.
    esse monte de letra que vc escreveu ai, parece até uma jogada pastorzinho do xadrez, até agora, essa me parece a unica jogada que conhece…ataca com um argumento, é defende a casa que atacou com otra peça… Pros mais experientes ela não pega, talvez você deva ser mais cauteloso…
    Fale sobre o haiti, me conta como estão as coisas por lá…a terra tremeu por aqui tambem na mesma hora que lá…
    Seu bocejo me parece o bocejo do ignorante na partida, que perdeu o turno do ataque e nem sabe que lá vem bomba…
    a sua ausencia é desculpavel, uma vez que perdeu o turno e recebeu o xeque-mate no contrataque, obrigado pelo incentivo ele mostra seu espirito esportivo por ter perdido essa partida.

    BOCÂINA

  3. 4 Lucas Schlosinski 08/02/2010 às 18:38

    Discute as leis, para retardar a própria execução


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