Arquivo para novembro \19\-02:00 2020

Haja preparo artístico…

André Luiz F. Torres

Parece que um imperador chinês da dinastia Han, apreciador de frutos do mar, teria pedido ao maior artista de seu tempo que lhe pintasse a figura de um caranguejo. O artista pediu o prazo de seis meses para apresentar a obra, bem como o necessário provento, e o imperador lhe concedeu.

            Ao longo desse ano, porém, observou-se que o pintor fez de tudo menos pintar: folgou para além das fronteiras do império em retiros do Himalaia no Nepal, atravessou o Tibet, cruzou a grande muralha, peregrinou pelo deserto de Gobi na Mongólia e até pescou no lago Baikal na Sibéria.

            Chamado à corte, o grande artista solicitou mais seis meses para terminar seu trabalho, assim como o indispensável provento. O imperador, ciente da ínfima importância do custo diante da longanimidade da arte, concedeu-lhe.

            No fim do prazo, contudo, foi preciso mandar arrancar o pintor de sua vida mansa nas ilhas Nanchan, sem que nesse período houvesse tocado em tinta um dia sequer. Sentado ao tapete diante do imperador, com um machado suspenso sobre sua cabeça, o artista foi intimado a pintar o caranguejo.

            Depois de tomar seu chá, o artista pegou do nanquim e, em cinco minutos, traçou a obra-prima imortal, com a naturalidade de quem desenhava a mais fácil das figuras.

            “Você podia ter-me feito esta obra em cinco minutos e passou esse tempo todo me enrolando?”, perguntou-lhe o imperador.

            “Não: eu passei um ano de minha vida meditando nesse caranguejo”, respondeu-lhe aquele que era o maior dos artistas do império.

            Esta foi uma das anedotas que o artista plástico e professor Rubens Espírito Santo (RES) contou àqueles que estavam presentes, como eu (não lembro agora direito, mas eu estava), à sua breve palestra na galeria Mario Schenberg da Funarte paulistana para elucidação do lema “2010 sem esforço”, proposto por ele no início daquele ano para os integrantes da Cabana Extemporânea*.

            Outra foi a do capitão cipriota que, tendo o motor do seu navio cargueiro entrado subitamente em pane no meio do Mar Negro, sem que ninguém a bordo fosse capaz de consertá-lo, mandou urgentemente um escaler à Crimeia a fim de encontrar um engenheiro naval que pudesse fazê-lo. Vieram um russo e um ucraniano, mas nenhum dos dois pôde identificar a raiz do problema: o motor simplesmente não funcionava, apesar de tudo estar aparentemente em ordem na sala de máquinas.   

            Mandou então o capitão outro escaler a leste. Vieram um engenheiro de máquinas búlgaro, um romeno e um moldavo, mas nenhum atinou com a solução. Até a um renomado engenheiro turco, o melhor de Istambul, recorreu o capitão. O resultado, porém, foi o mesmo.

            Na viagem a Istambul, todavia, os marujos ficaram sabendo de um mecânico armênio cuja perícia era proverbial em todo o Cáucaso. A carga do navio já começava a estragar, e o capitão mandou que fossem logo buscar esse sábio nas montanhas para além da Geórgia.

            Os marujos, contudo, voltaram da Armênia com a notícia de que o mecânico não deixava seu chalé nas cercanias de Ierevan por menos de vinte milhões de drans, o equivalente a 22 mil libras cipriotas (US$ 53.000,00).

            “NEM A PAU!”, esbravejou o capitão. A carga equivalente a bilhões de drans, contudo, começou a feder, e o prejuízo-monstro tirou a noite de sono do capitão.

            “Me tragam esse armênio!”, gritou o capitão de sua cabina no meio da noite.

            No dia seguinte, subiu a bordo o dito mecânico, homem de avançada idade e aparência simplória, um tanto desleixado no vestir, portando uma maletinha de couro velha e esfarrapada. Solicitou ao capitão que o levasse a determinado ponto do navio, certa câmara adjacente à sala de máquinas. Ali, abriu uma portinhola de ferro na parede, olhou, retirou da sua maletinha de couro um martelo e desferiu, uma única vez, uma pancada a meia força. O motor voltou imediatamente a funcionar.

            “E você me cobra 20 mil libras por uma marteladinha!?!”, sobressaltou o capitão.

            “Vinte e duas mil, porque eu sei exatamente onde dá-la”.

            Eis algumas das anedotas contadas por RES em torno daquele mote 2010 sem esforço, com minha livre-adaptação literária, viajando um bocado (no bom sentido) na incrementação dos detalhes. Essa é uma das crônicas que me agradam daquele criativo período.

E que veio a calhar em 2020 para encorpar estes Contos do Jordão no prazo curto para sua publicação, que não estava prevista e só saiu pelo súbito chamado para inscrição em edital da Secretaria de Valorização da Cultura da cidade, por conta da Lei Federal de Emergência Cultural Aldir Blanc para auxílio nos tempos de pandemia ao setor da cultura.

*

* A Cabana Extemporânea foi um evento artístico coletivo integrante da mostra nacional Em Torno De: Nos Limites da Arte – 2ª Edição da Funarte, idealizado e capitaneado pelo artista plástico Rubens Espírito Santo, e que deu ensejo ao blog Diário da Cabana, narrado por este que vos fala como espécie de escrivão, que mais tarde fez do Diário seu blog pessoal, hoje DCAL – Diário da Cabana: Abrigo Literário, de onde foram extraídos estes Contos do Jordão.


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