Depois da Quarentena

— Eu saí do isolamento na quarentena.

— Saiu? — repetiu Rubens, um dos cinco amigos reunidos à mesa no Don Juan, do lado do Jegue no Jaguaribe, após a pandemia, no famoso clube do bolinha de quinta.

— Sim — respondeu André — Comigo foi ao contrário. Quando deu aquele alarma geral, pelo dia 20 de março, que até tinha estrada fechando aqui no litoral, e eu vi que podia ficar ilhado, parti de Campos e fui pra junto da minha família em Ibiúna, que se disponibilizaram em me acolher antes mesmo de eu pedir. Ainda bem que a Dutra e a Raposo estavam livres. Fiquei lá, fiz duas visitas a Campos, mas só voltei de vez em 15 de junho, pegando o resto da quarentena.

— Fez bem, André. Família fortalece.

— Pois é. Uma coisa é morar só, mas sair regularmente para trabalhar, ir pra academia, pra Abernéssia, ver pessoas. Outra é ficar confinado em casa sozinho com suas paranoias, tendo bronquite e síndrome do pânico. A hipocondria vai a mil.

— Total. Por isso que eu digo: quem diz gostar da solidão geralmente não conhece a solidão, quer dizer, a solidão por falta de opção de companhia.

— Mas sós nós somos — interferiu Fábio –, até na multidão, frequentemente. O outro pode auxiliar, mas tem momentos em que você tem que procurar fazer boa companhia a si mesmo sozinho. Você precisa dizer a si mesmo que você tem valor, e merece estar bem. Você é filho de Deus também.

— Pode crer, cavaleiros solitários do sol poente — brincou Evandro, o mais novo da turma — Mas e aí Andrezão, como foi lá em Ibiúna?

— Pô, foi muito bem, graças a Deus. Foi um momento muito especial, porque eu pude viver em família novamente.  Vocês sabem, eu saí de Santos em 99 e fui pra São Paulo fazer faculdade, com vinte e um anos, e embora tenha me formado e tido uma carreira por lá, acabei destrambelhando feio, perdi quase tudo, fiquei doente, me separei, e vim pra Campos do Jordão em 2014, com 36 anos, me recuperar.

— É a vocação desta cidade: ser um grande sanatório a céu aberto — declarou Rubens.

— Exatamente. Pior que eu nem sabia. Vim por instinto, como um bom lugar para parar, pôr a cabeça no lugar e recomeçar. E realmente na primeira vez que vim, no começo do ano, pra me inscrever no SENAC, que dava alojamento e tudo, e me hospedei naquele hostel da praça da Abernéssia, senti através do ambiente ameno (tudo bem que não era inverno né, que é rigoroso), mas senti um alívio e reconforto, uma descompressão, em relação ao estresse  que eu vinha passando em São Paulo.

— E você teve conquistas aqui. Trabalhou em hotel, em bar, em escola, em restaurante. Voltou a estudar. Tocou piano. Teve contos premiados.

— É verdade. Mas em 2020, com 43 anos, embora realmente bem mais centrado, ainda não tinha de fato me acertado profissionalmente em Campos, nem constituído família. Então fazia anos que eu não vivia assim, em família. Tá certo que já vivi em algumas repúblicas, em São Paulo e aqui, o que já ajuda.

— É. Tem república que é praticamente uma segunda família. Mas e aí, como foi lá afinal? — perguntou Evandro.

— Em Ibiúna? Ah… como é bom se familiarizar!

— Haha.

— É — continuou André –, no convívio diário numa casa de família, com irmãos (e sobrinhos), e cunhado, e cachorro, e gato, entre brigas e gentilezas, cada um do seu jeito, a gente vai se conhecendo, se acostumando, se familiarizando. Até os filmes e séries de TV parece que vão humanizando a gente. Tava mesmo precisando voltar a aprender com a televisão.

— A Gata e o Rato era um bom seriado pra isso — lembrou Rubens.

— Putz, esse era. Eu que o diga. Grande Bruce Willis. E que loucura a Cybill Shepherd…. — concordou André.

— Eu quero saber é da Crush… — perguntou William, que até então não havia comentado, sondando algum nível de atração das mulheres do bar.

— A Crush é uma longa história… Nos ajudamos muito nesse período, como inspiração. Mas fica pra outro clube do bolinha…

— Conta aí, pô. Vai deixar o bolinha sem o tema principal?

— Não, já falei demais. Também não quero que saia assim no conto publicamente né, hehe.

— Tá bom — riram.

— Me falem aí de vocês. Qualquer coisa ponho em anexo também.

— Então… — sorriu William — Damas à parte… chegamos como tínhamos de chegar, uns com mais dor, outros com menos. Uns buscaram e tiveram apoio, outros apoiaram, outros enfrentaram sozinhos. E cada um teve uma experiência própria, uma lição, um desenvolvimento.

— Verdade. E ainda muita gente foi atingida diretamente pela doença, muitos faleceram, outros perderam pessoas próximas. A gente que não passou por isso nem imagina como é, nessa situação. — ponderou Rubens.

— Difícil. E fora a reconstrução financeira que vai ser punk pra maioria da população. Muitos vão ter que se reatualizar, quando não se reinventar– acresceu Evandro.

— Verdade. É barra. Mas com tempo as coisas se recompõem. Já houve crises assim no mundo e estamos aqui. Enfim… só de estarmos vivos hoje, temos de dar graças a Deus! Ainda mais tendo saúde para enfrentar essas batalhas — disse Fábio.

— Amém, padre Fábio! E estamos aqui, pra novas histórias, guerreiros. Vamos brindar, vai… — completou Evandro.

— Eu com a sem-álcool — arrematou William.

— Como de costume — comentou André.

— Saúde!

E puseram-se todos a observar o nível de atração ao redor.

* Dedico este pequeno conto pessoal aos novos amigos de Campos do Jordão, e aos velhos amigos de Santos e São Paulo do ENCONTRO MACHÃO INTERNACIONAL EM ÁGUAS PROFUNDAS.

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