Correntes da História I

23/12/2009 – quarta-feira.

         Arrastamos as correntes da História aonde quer que vamos. Cada sinal gráfico do Código de Hamurábi e do Corpus Juris Civilis de Justiniano, passando pela Lei de Moisés e pelas 12 tábuas de Roma, está incorporado às nossas vidas permanentemente, ainda que não o percebamos. Quem não sentirá uma reverberação de imediato reconhecimento ao ouvir pela primeira vez a expressão olho por olho, dente por dente?

          Voltemos à Pré-História. Falou-se aqui suscintamente do Feiticeiro da gruta de Trois Frères (cf. Pintura-objeto), localizada em Lascaux, região da Dordonha, no sul da França, e da venerável antiguidade desta obra-prima paleolítica. Do que tenha sido o Período Paleolítico propriamente, no entanto, ficou faltando algum comentário. Façamo-lo na medida do possível. 

         O Paleolítico (do grego paleos = ‘antigo’ + litos = ‘pedra’, donde “a antiga Idade da Pedra“, mais conhecida como “Idade da Pedra Lascada“) é o período que vai desde o surgimento na Terra dos primeiros primatas hominídios (cerca de 5 milhões de anos atrás) até 10.000 a.C., quando começa o período chamado Neolítico (‘Nova Idade da Pedra’ ou ‘Idade da Pedra Polida’ ou ainda ‘Idade do Metal’) e sua “Revolução da Agricultura”, que permitiu ao homem estabelecer os primeiros assentamentos agrícolas, como os de Jericó (Israel) e Çatal Hüyük (Turquia). O Neolítico termina em 4.000 a.C., com a invenção da escrita, e, por conseguinte, o fim da Pré-História e começo da História, que registra o alvorecer das primeiras civilizações: Suméria, Acádia, Babilônia, Assíria, Fenícia, Caldéia e a superpotência, o Egito.

          Mas o homem atual (homo sapiens sapiens, “homem que sabe que sabe”) surgiu mesmo no Paleolítico, por volta de 200.000 a.C., conforme análise dos crânios e esqueletos encontrados pelos arqueólogos. Vivendo em bandos nômades como caçador de animais e coletor de vegetais, o homo sapiens sapiens  fabricou ferramentas – lâminas, lanças, machados, porretes, arpões etc. – a partir de pedras lascadas, ossos, chifres, fibras vegetais, madeira, peles e dentes de animais.

         Rústicas ferramentas, no entanto, já eram utilizadas no Paleolítico antes mesmo do homo sapiens, fosse pelo homo neanderthalensis – homem de neandertal, nosso parente mais próximo – fosse pelo homo erectus, pelo homo habilis ou até pelo australopitecus, espécie de homem-macaco que já utilizava pedras para abrir cascas duras de frutos comestíveis, matar animais e atirar nos inimigos.

          O controle do fogo foi a maior conquista do homem no paleolítico, e tudo indica que já fora realizada pelas espécies hominídias anteriores ao homo sapiens. Os humanos do paleolítico conservavam o fogo gerado espontaneamente pelas forças da natureza (raio, queimada na mata) e, mais do que isso, utilizavam a milagrosa técnica de produzi-lo pelo choque de lascas de pedra lançando faíscas sobre gravetos e folhas secas, ou pelo genial atrito da ponta de um espeto de madeira esfregado entre as mãos sobre a pequena cavidade de um pau seco.

          Seja como for, fomos nós – homo sapiens sapiens – que começamos a produzir arte digna deste nome, entendida enquanto manifestação da criatividade humana dirigida à sensibilidade, ou seja, criação de obras cuja forma é trabalhada de modo a ser apreciada pelos sentidos.

          A gruta de Trois Frères, neste aspecto, é considerada a Capela Sistina do Paleolítico. De fato, a chamada Grande Sala dos Touros de Trois Frères, cheia de magníficas pinturas, remete, por sua importância correlativa, àquele templo máximo da Renascença Moderna, encomendado a Michellangelo pelo Vaticano e recoberto de imagens clássicas – ao passo que, em Lascaux, avultam desenhos de manadas selvagens em disparada, no meio das quais se destaca a enigmática figura antropomórfica do Feiticeiro, com cara de homem e corpo de animal.

          O caráter sagrado da gruta de Trois Frères, especialmente da Grande Sala, deve ser salientado. Para tanto, é necessário primeiro romper com a idéia de que os homens do paleolítico “viviam” nas cavernas. Na verdade, eles não habitavam as profundezas das grutas – lugares difíceis e altamente inóspitos – mas no máximo ocupavam suas entradas e as reentrâncias de rochas, onde se refugiavam durante temporais e se escondiam de eventuais ameaças. No mais, reuniam-se sob o teto oferecido naturalmente pela copa das árvores e dormiam em abrigos improvisados, cabanas de vegetal, se fosse o caso.

          O fundo das cavernas, como tudo indica, era destinado ao culto dos mistérios do além e da prática da magia. A dificuldade de se chegar até lá, rompendo a escuridão de milhões de anos com tochas de fogo, certamente já impunha respeitoso temor ao visitante. Com efeito, a caverna de Lascaux, descoberta ao acaso em 1914 pelos três filhos do proprietário do latifúndio no qual ela se encontra – e daí seu nome “Três Irmãos” – compreende no mínimo 1600 metros de caminhos labirínticos cuja entrada se faz por um poço íngreme de 18 metros de altura, que os tais meninos tiveram a coragem de descer por uma corda. O relato do pesquisador alemão Herbert Kühn, citado no livro Mitologia Primitiva, do honorável professor Joseph Campbell, oferece uma descrição vivaz do caminho até a Grande Sala:

          “O chão é úmido e viscoso, temos que tomar cuidado para não escorregar no caminho rochoso. Ele sobe e desce até chegar a um corredor estreito com cerca de 9 m de comprimento, através do qual tem-se que andar de rastos. E novamente chega-se a grandes salões e passagens estreitas. Em uma dessas galerias há uma grande quantidade de manchas vermelhas e mais nada. Quão magníficas são as estalactites! Pode-se ouvir a queda suave da água, gotejando do teto. Não há nenhum outro som e nada se move. O silêncio é soturno. A galeria é ampla e longa e depois vem um túnel muito baixo. Colocamos nossa lanterna no chão e a empurramos para dentro do buraco. Louis [o mais velho dos três irmãos] foi na frente, em seguida o professor Van Giffen, depois Rita [esposa de Kühn] e finalmente eu próprio. O túnel não é muito mais largo do que meus ombros, nem mais alto. Posso ouvir os outros à minha frente gemendo e ver quão lentamente suas lanternas avançam. Com os braços comprimidos contra o corpo nos arrastamos para a frente de barriga no chão, como cobras. A passagem em alguns lugares mal tem 30cm de altura, de maneira que é preciso deitar o rosto no chão. Senti-me como se estivesse me movendo dentro de um caixão. Não se pode levantar a cabeça; não se pode respirar. E então, finalmente, o túnel torna-se um pouco mais alto. Pode-se enfim descansar sobre os antebraços. Mas não por muito tempo; o caminho, novamente, estreita-se. E assim, metro a metro, avança-se com dificuldade: cerca de 40m no total. Ninguém fala. As lanternas avançam com lentidão e nos arramos atrás delas. Ouço os outros gemendo, meu coração batendo e é difícil respirar. É terrível ter o teto tão próximo da cabeça. E ele é muito duro; eu bato a cabeça uma e outra vez. “Isto jamais vai acabar?” Então, subitamente chegamos ao fim e agora todo mundo respira. É como uma redenção. O recinto no qual estamos agora é gigantesco. Fazemos a luz das lanternas percorrer o teto e as paredes: um salão majestoso – e ali, finalmente, estão as pinturas. De cima a baixo, toda uma parede é coberta de gravuras. A superfície foi trabalhada com instrumentos de pedra e ali vemos dispostos os animais que viviam naquela época no sul da França: o mamute, o rinoceronte, o bisão, o cavalo selvagem, o urso, o asno selvagem, a rena, o carcaju, o boi almiscarado; também os animais menores aparecem: corujas de neve, lebres e peixes. E veem-se dardos em toda parte, disparados contra as caças. Várias pinturas de ursos atraem-nos particularmente, porque têm furos onde as imagens foram atingidas e sangue é mostrado jorrando de suas bocas. Uma verdadeira representação da caça: a imagem da magia da caça!”

          Em comparação com as galerias da FUNARTE, as do santuário paleolítico de Lascoux são evidentemente mais interessantes, mas muito menos acessíveis ao público.

2 Respostas to “Correntes da História I”


  1. 1 macadden 05/01/2010 às 3:17

    se liga chefia,e o monolito?qui si sucede ali….nau vai frita os miolinhus ,vai com calma

    • 2 diariodacabana 06/01/2010 às 18:03

      Refiro-me à cena final de 2001, em que o monolito aparece em frente à cama do astronauta já velho. Claro que o monolito da cabana é uma versão tabajara – como não podia deixar de ser.


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