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Apêndice [do livro Jogo Arriscado]

CONHECENDO MELHOR A ASSISTÊNCIA SOCIAL PÚBLICA BRASILEIRA

Apanhado legal

Para esclarecer o que quer exatamente a Assistência Social no Brasil, especificamente com a criação do CREAS, iniciaremos pela mais fundamental de suas leis, a LOAS.

LOAS é a Lei Orgânica da Assistência Social (Lei nº 8.742 de 07 de dezembro de 1993) que dá ao Brasil, desde então, as diretrizes básicas de sua política assistencial, estabelecendo os fundamentos perenes nos quais toda iniciativa futura nesse campo deve se alicerçar. A partir da LOAS, poderemos entender melhor as regulamentações subsequentes – NOB, PNAS, Guia de Orientação nº1 – que dizem respeito diretamente ao trabalho do CREAS. 

Tecnicamente, a LOAS define a Assistência Social como “uma política de Seguridade Social não-contributiva“, isto é, uma iniciativa pública que promove investimento social independentemente de exigências de rentabilidade econômica e/ou retorno financeiro, constituindo-se assim um direito gratuito do cidadão cujo cumprimento, para o Estado, é exclusivo dever. Em outras palavras: na política de Assistência Social, ao Estado cabe dar, sem receber.

Esta definição técnica simples, algo óbvia, é contudo fundamental para a Assistência Social, já que esta tem como beneficiários os desamparados socialmente, que são, por via de regra, os desprovidos de recursos materiais e financeiros para suas necessidades básicas, portanto carentes de proteção de seus direitos sociais. Tanto é assim que a LOAS afirma, logo no seu primeiro capítulo, intitulado “DAS DEFINIÇÕES E DOS OBJETIVOS”, que a política de Assistência Social realiza-se “através de um conjunto integrado de ações de iniciativa pública e da sociedade para garantir o atendimento às necessidades básicas“. Ora, é evidente que os beneficiários da Assistência Social, sendo assim carentes em necessidades básicas, são também incapazes de contribuir efetivamente para os fundos financeiros estatais de Seguridade Social tipo “Previdência Social” (embora mesmo assim o façam, ainda que indiretamente, através dos impostos embutidos em todas as coisas, como comida e vestuário), e portanto necessitam de tal política de Seguridade Social não-contributiva, a qual não lhes constitui favor, mas direito de cidadania.

O segundo capítulo da LOAS intitula-se “DOS PRINCÍPIOS E DAS DIRETRIZES”. Aqui vemos que o princípio fundamental que rege a Assistência Social é basicamente este: manter, na dedicação permanente à causa da universalização dos direitos sociais entre a população, o respeito absoluto aos direitos do cidadão, à sua dignidade e à sua autonomia.

            Já quanto às diretrizes de trabalho, a LOAS determina que a Assistência Social reger-se-á pela descentralização político-administrativa (delegação de poder e responsabilidade aos estados e municípios), pela participação da população na formulação das políticas e no controle das ações em todos os níveis (por meio de organizações representativas) e, finalmente, pela primazia da responsabilidade do Estado na condução da política assistencial (nas suas respectivas esferas: federal, estadual e municipal). 

            O capítulo terceiro da lei fala “DA ORGANIZAÇÃO E DA GESTÃO”. Aqui retoma-se que o sistema de organização da Assistência Social é “descentralizado e participativo“, para depois detalhá-lo, basicamente, da seguinte forma:

            – a instância coordenadora da Política Nacional de Assistência Social (PNAS) é um órgão administrativo federal constituído ad hoc, ou seja, um Ministério especificamente constituído para isso. Atualmente esse órgão é o Ministério do Desenvolvimento Social e do Combate à Fome (MDS), o qual conta com uma secretaria exclusiva, a SNAS – Secretaria Nacional de Assistência Social

– a instância superior deliberativa da Assistência Social é o Conselho Nacional de Assistência Social (CNAS), colegiado de 18 membros a quem compete aprovar a PNAS, fixar normas e regular de modo geral a prestação de serviços assistenciais em âmbito nacional, sejam eles estatais ou privados. Os 18 membros (9 representantes governamentais e 9 representantes da sociedade civil) são indicados pelo órgão coordenador da PNAS (atualmente o MDS) e nomeados pelo presidente da República. O CNAS é presidido por um de seus integrantes, eleito dentre seus membros para mandato de até 2 anos.

– Correlativamente ao CNAS, mas em âmbito estadual e municipal, ficam estabelecidas duas outras instâncias deliberativas de caráter permanente e composição paritária entre governo e sociedade civil: os Conselhos Estaduais de Assistência Social (CEAS) e os Conselhos Municipais de Assistência Social (CMAS).

– Fica instituído, para financiamento da política de Assistência Social, o Fundo Nacional da Assistência Social (FNAS, regulamentado anos depois pelo Decreto nº1.605 de 1995, alterado pelo Decreto nº2.298 de 1997).

– Fica regulamentado o BPC (BENEFÍCIO de PRESTAÇÃO CONTINUADA), previsto pela Constituição Federal de 1988, como garantia de um salário mínimo mensal às pessoas com deficiência (pessoas “incapacitadas para a vida independente e para o trabalho“, segundo definição da LOAS) e aos idosos com 70 anos ou mais, que “comprovem não ter meios de prover a própria manutenção e nem de tê-la provida por sua família“; assim como ficam regulamentados os BENEFÍCIOS EVENTUAIS, que constituem auxílio pontual em casos de natalidade ou morte para “as famílias cuja renda mensal per capita seja inferior a ¼ do salário mínimo” (a LOAS não especifica o valor dos assim chamados “Benefícios Eventuais”, deixando a cargo dos Conselhos de Assistência Social estaduais e municipais defini-lo, de acordo com as necessidades e possibilidades locais).

Em linhas bem gerais, é assim que a LOAS estrutura a Assistência Social, a qual compõe então, desde a Constituição Brasileira de 1988, o tripé da assim chamada Seguridade Social, junto com a Saúde e a Previdência Social.

 Mas o que vem a ser exatamente esta tal Seguridade Social? Nada melhor do que ouvir o que diz a própria Carta Magna do Brasil, a qual em seu art. 194 proclama que “A seguridade social compreende um conjunto integrado de ações de iniciativa dos Poderes Públicos e da sociedade, destinadas a assegurar os direitos relativos à saúde, à previdência e à assistência social“. Em outras palavras: Seguridade Social é a integração dessas três políticas “de segurança social” – Saúde, Previdência e Assistência – no que elas tem em comum no tocante à responsabilidade de garantir direitos básicos da população.

Adentrando um pouco mais, podemos dizer que esse tripé “de segurança social” visa a garantir minimamente a inclusão e a permanência dos cidadãos no mais genérico Sistema de Bem-Estar Social brasileiro, o qual seria enfim a grande articulação de todas as políticas sociais: Cultura, Esporte, Lazer, Educação, Emprego, Habitação, Saneamento etc. Mencionamos isto também para fazer notar que Saúde, Previdência e Assistência Social, enquanto políticas “de segurança” social, dever ser tidas como anteriores em necessidade às demais políticas do Sistema de Bem-Estar Social, já que certamente são requisitos indispensáveis para usufruir deste sistema as situações de [1] o cidadão estar vivo e saudável (encargo da Saúde), [2] incluso na sociedade (encargo da Assistência Social) e [3] com alguma previsão de futuro (encargo da Previdência Social). Afinal, que bem-estar poderia ter alguém doente (responsabilidade da Saúde…), rejeitado e desamparado (responsabilidade da Assistência Social…) e sem outra perspectiva certa senão a de não ter onde cair morto (responsabilidade da Previdência Social…)?

Bem-aventurados os pobres em espírito, porque deles é o Reino dos céus… Bem-aventurados os que têm fome e sede de justiça, porque serão saciados… Bem-aventurados os que choram, porque serão consoladosBem-aventurados os perseguidos por causa da justiça, porque deles é o Reino dos céus… “, poderia responder Cristo manso e pleno de calorosa esperança, mas aí extrapolar-se-ia o âmbito constitucional recorrendo-se à salvação divina, o que significaria trocar política por religião, o que não é o caso, muito pelo contrário: o caminho da Assistência moderna é trocar religião por política, teologia por sociologia – como já dissemos, o assistente social é um técnico, não um catequista.

Aliás, a importância política e social da Constituição de 1988 para o Brasil e, no nosso caso em especial, para a Assistência Social é tamanha que, antes de qualquer comentário adicional, convém recorrermos primeiro ao texto original (que, em se tratando de garantias constitucionais no Brasil e tendo em vista a nossa história de esquecimento, nunca é demais propagar):

CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL,

Título VIII (Da Ordem Social), Capítulo II (Da Seguridade Social), Seção IV (DA ASSISTÊNCIA SOCIAL):

Art. 203. A assistência social será prestada a quem dela necessitar, independentemente de contribuição à seguridade social, e tem por objetivos:

I – A proteção à família, à maternidade, à infância, à adolescência e à velhice;

II – O amparo às crianças e adolescentes carentes;

III – A promoção da integração ao mercado de trabalho;

IV – A habilitação e a reabilitação das pessoas portadoras de deficiência e a promoção de sua integração à vida comunitária;

V – A garantia de um salário mínimo de benefício mensal à pessoa portadora de deficiência e ao idoso que comprovem não possuir meios  de prover à própria manutenção ou de tê-la provida por sua família, conforme dispuser a lei.

Art. 204. As ações governamentais na área da assistência social serão realizadas com recursos do orçamento da seguridade social, previstos no art. 195, além de outras fontes, e organizadas com base nas seguintes diretrizes:

I – descentralização político-administrativa, cabendo a coordenação e as normas gerais à esfera federal e a coordenação e a execução dos respectivos programas às esferas estadual e municipal, bem como a entidades beneficentes e de assistência social;

II – participação da população, por meio de organizações representativas, na formulação das políticas e no controle das ações em todos os níveis

Título VIII (Da Ordem Social), Capítulo VII (Da Família, da Criança, do Adolescente e do Idosol)

Art. 226. A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado.

§ 8º O Estado assegurará a assistência à família na pessoa de cada um dos que a integram, criando mecanismos para coibir a violência no âmbito de suas relações.

Contemplando tais artigos, o leitor pode perceber facilmente que a Carta Magna de 1988 é, de fato, a pedra fundamental da Assistência Social pública no Brasil e grande fonte de sua Lei Orgânica (LOAS), bem como da NOB e da PNAS, desdobramentos posteriores que serão vistos brevemente nos próximos capítulos.

Quanto à LOAS especificamente, podemos encerrar nossos comentários chamando a atenção para o artigo de número dez, o qual determina expressamente que “A União, os Estados, os Municípios e o Distrito Federal podem celebrar convênios com entidades e organizações de assistência social, em conformidade com os Planos aprovados pelos respectivos Conselhos“, o que confere, decerto, grande relevância política ao papel dos Conselhos, na medida em que seus participantes podem intervir diretamente no debate de elaboração dos Planos (projetos próprios de cada estado, cada município ou – no caso do Conselho Nacional – do país inteiro), os quais, ao coordenarem o trabalho assistencial público e privado no sentido de colaboração em prol do cumprimento de metas comuns, definem parcerias entre governo e sociedade civil.

Imbuídos assim deste poder de elaborar seus próprios Planos, os Conselhos em suas respectivas esferas (nacional, estadual, municipal), além de se constituírem, por natureza, organizações representativas legitimadas a exercer o controle social das ações do poder público na área da Assistência Social, tornam-se, outrossim, espaços próprios para o exercício do debate político legítimo sobre direcionamento de esforços e destacamento de recursos, o que interessa diretamente a todos os atores envolvidos no trabalho assistencial, sejam eles prestadores de serviços ou beneficiários.

Depois da pedra fundamental da Constituição de 1988 e da grande Lei Orgânica de 1993 (LOAS), importante normatização seguinte foi a Norma Operacional Básica da Assistência Social (NOB), resolução de 1998 do Conselho Nacional de Assistência Social (CNAS), de caráter mais técnico-administrativo. A NOB legislou principalmente sobre a gestão quadripartite da Assistência Social, disciplinando a política de descentralização, o financiamento e a relação dos três níveis de governo entre si e destes com a sociedade civil (é a soma desta última às três esferas de governo que eleva a gestão de “tripartite” para “quadripartite”, como se vê). Por isso mesmo encontramos como lema da NOB, em seu subtítulo, em letras garrafais, justamente “Avançando para a construção do Sistema Descentralizado e Participativo de Assistência Social“.

Nesse ensejo, uma das contribuições da NOB foi definir expressamente, de acordo com o princípio – já estabelecido na LOAS – de “comando único na gestão das ações em cada esfera de governo“, os papéis exatos dos gestores-chefes responsáveis pelo comando das políticas assistenciais em suas respectivas esferas de governo, ou seja, as funções próprias dos Chefes das Secretarias de Assistência Social do governo federal, dos estados e das prefeituras. Do mesmo modo, definiu expressamente, item por item, as funções dos Conselhos de Assistência Social em seus respectivos níveis: federal, estadual e municipal.

Finalmente, especificou – e isto agora diz respeito mais diretamente ao trabalho cotidiano dos assistentes sociais –  quais são exatamente os grupos populacionais que, para além do público geral de excluídos da cobertura social básica, devem ter prioridade de atendimento pela política de Assistência Social, a saber, os que apresentam uma ou mais das situações descritas nos itens abaixo, reproduzidos literalmente:

a) condições de vulnerabilidade próprias dos ciclos de vida, que ocorrem, predominantemente, em crianças de zero a cinco anos e em idosos acima de sessenta anos;

b)  condições de desvantagem pessoal resultantes de deficiências ou de incapacidades, que limitem ou impeçam o indivíduo no desempenho de uma atividade considerada normal para sua idade e sexo, face ao contexto sociocultural no qual se insere;

 c) situações circunstanciais e conjunturais como abuso e exploração comercial sexual infanto-juvenil, trabalho infanto-juvenil, moradores de rua, migrantes, dependentes do uso e vítimas da exploração comercial das drogas, crianças e adolescentes vítimas de abandono e desagregação familiar, crianças, idosos e mulheres vítimas de maus tratos.

 No atendimento de todo esse público, seja geral ou preferencial, a NOB prescreve quatro funções interligadas e complementares a serem desempenhadas pela política de Assistência Social:

a) Inserção (inclusão nas políticas sociais básicas de acesso a bens, serviços e direitos)

            b) Prevenção (manutenção de apoio preventivo nas situações de vulnerabilidade)

            c) Promoção (ganho de cidadania através da promoção de igualdade de direitos)

            d) Proteção (redistribuição direta e indireta de renda às populações excluídas e vulneráveis) 

Essas quatro funções seriam postas em prática por intermédio dos seguintes instrumentes operacionais:

  1. Benefício de Prestação Continuada (BPC): renda permanente (já prevista na Constituição e regulamentada pela LOAS, conforme visto no capítulo anterior) para idosos e deficientes sem condições de sustento próprio ou pela família; 
  2. Benefícios eventuais: aportes pontuais (também já regulamentados pela LOAS) para casos de natalidade e morte em famílias sem condições de sustento;
  3. Serviços Assistenciais: conforme prescritos pela LOAS, ou seja, serviços de atendimento às demandas referentes a necessidades básicas, exercício da cidadania e garantia de direitos; 
  4. Programas: aplicação de projetos com objetivos, tempo e área definidos para qualificar, incentivar e melhorar os benefícios e os serviços assistenciais;
  5. Projetos de Enfrentamento da Pobreza: subsídio às iniciativas de melhoria das condições gerais de subsistência, elevação da qualidade de vida, preservação do meio ambiente e organização social.

Esses são, de relance, os pontos mais destacados da NOB de 1998. Acrescentem-se a eles certos elementos próprios assumidos desde então como Diretrizes da Política Nacional de Assistência Social, que não se viam discriminados desse modo na LOAS, como por exemplo “Mudança de enfoque da avaliação centrada no processo burocrático para a avaliação de resultados da Política de Assistência Social“; “Fomento às ações que contribuam para a geração de renda” e “Estímulo às ações que promovam integração familiar e comunitária, para a construção da identidade pessoal e convivência social do destinatário da assistência social”.

De resto, a NOB constitui-se texto essencialmente técnico, concernente mais à gestão administrativa da máquina assistencial, cujo estudo está além das pretensões do presente trabalho.

Depois da NOB de 1998, veio a – mais importante ainda – Política Nacional de Assistência Social (PNAS), apresentada finalmente pelo Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS) e sua Secretaria Nacional de Assistência Social (SNAS) em julho de 2004, e aprovada pelo Conselho Nacional de Assistência Social (CNAS) em setembro do mesmo ano. Trata-se, pois, do Plano do governo federal para a área, estando ainda em vigor quando da elaboração deste livro (ano de 2010, o que dá à PNAS, pelo menos até aqui, 6 anos de vigência, e provavelmente mais 4, com a reeleição da situação no nível federal).

Em sua apresentação, a PNAS foi anunciada como “compromisso do MDS/SNAS e do CNAS em materializar as diretrizes da Lei Orgânica da Assistência Social – LOAS“. Ou seja: pôr em prática a Lei de 1993. 

Não obstante a obrigação óbvia de respeitar e aplicar a LOAS, a PNAS de 2004 contém importantes particularidades. Seu foco foi a implementação do SUAS – Sistema Único de Assistência Social.

A PNAS afirma expressamente que o SUAS “materializa o conteúdo da LOAS“. Nisto não demonstra semelhança em relação à NOB de 1998, que intentava a mesma coisa; notamos porém que, enquanto a NOB constitui, principalmente, um instrumento regulamentador da gestão administrativa quadripartite da Assistência Social, o SUAS, tal como instituído pela PNAS, avança especialmente na organização dos serviços prestados à população, definindo e estruturando cada qual de acordo com sua função, público-alvo e grau de complexidade. É neste sentido que os serviços socioassistenciais, com o advento do SUAS, tornam-se “referenciados”, ou seja, organizados e qualificados segundo determinadas referências, ou, se se preferir, “em referência” a determinadas especificidades (de natureza, função e demanda) do serviço.   

Com efeito, as primeiras “referências” gerais segundo as quais esses serviços passam a se organizar são de natureza funcional, comportando três qualificações: vigilância social, defesa social e proteção social (esta última, como veremos, mais estreitamente ligada ao CREAS).

Por vigilância social entendem-se os serviços de produção e sistematização de informações e dados a fim de constituir indicadores que permitam mapear e acompanhar a situação social no território e sociedade brasileiros ao longo do tempo, permitindo identificar focos de vulnerabilidade social nos espaços geográficos e camadas/grupos sociais, visando ao direcionamento e otimização das iniciativas públicas assistenciais.

Por defesa social entendem-se os serviços de garantia de direitos e difusão de seu conhecimento entre a população. A PNAS especifica expressamente os direitos assegurados aos usuários do SUAS, a saber:

– Direito ao atendimento digno, atencioso e respeitoso, ausente de procedimentos vexatórios e coercitivos.

– Direito ao tempo, de modo a acessar a rede de serviço com reduzida espera e de acordo com a necessidade.

– Direito à informação, enquanto direito primário do cidadão, sobretudo àqueles com vivência de barreiras culturais, de leitura, de limitações físicas.

– Direito do usuário ao protagonismo e manifestação de seus interesses.

– Direito do usuário à oferta qualificada de serviço.

– Direito de convivência familiar e comunitária.

            Enfim, por proteção social entendem-se os serviços considerados propriamente “de segurança social”, a saber: segurança de sobrevivência (isto é, segurança de sustento do cidadão em necessidades essenciais como comida, vestes e abrigo); segurança de acolhida (segurança de abrigamento do cidadão em caso de necessidade de sua separação da família ou parentela) e segurança de convívio (segurança de relacionamento social, especialmente convivência familiar, assistindo o cidadão em casos de perda/rompimento de relações familiares e/ou sociais).

            A PNAS institui também que, no SUAS, esses serviços de proteção social (sobrevivência, acolhida e convívio) se subdividem em proteção social básica e proteção social especial.        

A proteção social básica constitui-se serviço de PREVENÇÃO destinado “à população que vive em situação de vulnerabilidade social“, isto é, em condições tais (p. ex. privação contínua em decorrência da pobreza, aliada a discriminações sociais) que exponham os indivíduos à deterioração de seus vínculos afetivos familiares e de pertencimento social.

Os serviços oferecidos pela proteção social básica a esta população em situação de vulnerabilidade social são, em linhas gerais, ações de “acolhimento, convivência e socialização de famílias e de indivíduos, conforme identificação da situação de vulnerabilidade apresentada“, por meio de programas e projetos que promovam o “desenvolvimento de potencialidades e aquisições, e o fortalecimento de vínculos familiares e comunitários“, tendo por fim “a conquista da autonomia na provisão dessas necessidades básicas” por parte da população. 

A PNAS define que a aplicação dessas medidas de proteção social básica está a cargo dos CRAS (Centros de Referência da Assistência Social), unidades públicas estatais de base territorial, localizadas em áreas de vulnerabilidade social. Assim, os CRAS são legitimamente chamados Centros “de Referência” por prestarem serviços cuja “referência” (no caso, serviços de “Proteção Social Básica”) está definida expressamente pela PNAS de acordo com sua determinada função, público-alvo e grau de complexidade. Por isso, quando se faz, no dia a dia dos CRAS (e também dos CREAS, como veremos), o dito “referenciamento” dos usuários do serviço, o que se faz teoricamente é colocá-los em referência a um determinado tipo de serviço (p. exp. “Proteção Social/segurança de sobrevivência” ou “Proteção Social/segurança de convívio + Defesa Social/orientação sobre direitos”, com subdivisões como, p. exp., “inclusão no BPC” ou “atendimento familiar coletivo”). Claro que, na prática, os referenciamentos são muito mais peculiares, menos engessados em categorias preestabelecidas, pois cabe ao técnico analisar a situação particular de cada usuário e os encaminhamentos necessários, não somente de acordo com a lei abstrata, mas com a realidade concreta do cidadão – e a realidade, como sabemos, é complexa.  

Em Ferraz de Vasconcelos há 4 unidades CRAS, uma delas inclusive no prédio do CIC (Centro de Integração da Cidadania), o qual, como vimos, é um importante equipamento de atendimento do governo estadual paulista, que centraliza diversos serviços públicos à população carente, e no qual também fica o CREAS da Prefeitura de Ferraz.

Mas qual afinal é a diferença entre CRAS e CREAS? Ora, o leitor já deve ter adivinhado que, enquanto o CRAS é a unidade de atendimento própria da proteção social básica, o CREAS o é da proteção social especial, como se vê no próprio nome: Centro de Referência Especializado em Assistência Social.

Vejamos, pois, o que é a proteção social especial:

A proteção social especial é a modalidade de atendimento assistencial destinada a famílias e indivíduos que se encontram em situação de risco pessoal e social, por ocorrência de [1] abandono, [2] maus tratos físicos e/ou psíquicos, [3] abuso sexual, [4] uso de substâncias psicoativas, [5] cumprimento de medidas socioeducativas, [6] situação de rua, [7] situação de trabalho infantil, entre outras“. Este “entre outras” envolverá, certamente, qualquer situação de risco agravada cuja assistência requeira maior estruturação técnico-operacional e maior potencial de atenção especial no atendimento, por meio de “acompanhamentos individuais“, “encaminhamentos monitorados“, “flexibilidade nas soluções protetivas” e “uma gestão mais complexa e compartilhada com o Poder Judiciário, Ministério Público e outros órgãos e ações do executivo” (entre estas, a PNAS destaca o Programa de Erradicação do Trabalho Infantil e o Programa de Combate à Exploração Sexual de Crianças e Adolescentes). Em outras palavras: a proteção social especial é serviço de assistência social complexo destinado aos cidadãos que, para além da situação risco, já sofreram efetivamente danos pessoais num quadro de desagregação familiar-social, e que por isso requerem um atendimento especializado.

 Na PNAS, a proteção social especial é referenciada em dois graus de complexidade: médio e alto.

A proteção social especial de média complexidade oferece atendimento “às famílias e indivíduos com seus direitos violados, mas cujos vínculos familiar e comunitário não foram  rompidos“. Vale dizer que CREAS é o equipamento público de proteção social especial de média complexidade por excelência.

Assim, sobre o tipo de serviço que o CREAS oferece, diz a PNAS expressamente que “difere-se da proteção básica por se tratar de um atendimento dirigido às situações de violação de direitos“. Assim, se o CRAS atende situações de “vulnerabilidade social“, o CREAS o faz nos casos em que, para além da vulnerabilidade social, há também efetiva “violação de direitos“.

Já a proteção social especial de alta complexidade – que extrapola a competência do CREAS – oferece acolhimento total “para famílias e indivíduos que se encontram sem referência e/ou situação de ameaça, necessitando ser retirados de seu núcleo familiar e/ou comunitário“, aos quais garante “proteção integral: moradia, alimentação, higienização e trabalho protegido“. A proteção especial de alta complexidade, que age nos casos em que os vínculos sociais/familiares foram rompidos de modo determinante, é realizada pelos abrigos, asilos, orfanatos, albergues, casas de passagem, famílias substitutas, famílias acolhedoras etc.

Em linhas bem gerais, é assim que a PNAS organizou, a partir de 2004, os serviços assistenciais no Brasil, por meio da instituição do Sistema Único de Assistência Social – SUAS. Esperamos ter demonstrado que, nesse sistema, o CREAS está no nível de serviço – Proteção Social Especial de Média Complexidade – que abrange desagregação social/familiar agravada por situações de ameaça e violação de direitos, mas não a ponto de assumir a manutenção integral da vida dos usuários vitimados, o que fica a cargo de entidades assistenciais mais complexas, como abrigos e afins (capacitados a ofertar os serviços de Proteção Social Especial de Alta Complexidade).

            Todavia, o novo modelo de serviços instituído pela PNAS de 2004 exigia um modelo de gestão da Assistência Social também novo. Neste sentido foi publicada, já em 2005, a NOB/SUAS – Norma Operacional Básica do Sistema Único da Assistência Social, instrumento disciplinador e operacionalizador específico para o novo sistema.

A NOB/SUAS de 2005 substituiu, portanto, a antiga NOB de 1998. Não obstante, reconheceu certa continuidade, conforme literalmente:

A presente Norma Operacional Básica (NOB/SUAS) retoma as normas operacionais de 1997 e 1998 e constitui o mais novo instrumento de regulação dos conteúdos e definições da Política Nacional de Assistência Social (PNAS/2004) que parametram o funcionamento do SUAS[1].

Esse “retomar” se dá no sentido de aperfeiçoar, em vista da implementação do SUAS, o sistema descentralizado e participativo de gestão já conceituado nas NOBs anteriores. Não à toa, o subtítulo da NOB/SUAS é justamente “construindo as bases para a implantação do Sistema Único de Assistência Social“. Na construção dessas bases, a NOB/SUAS opera uma revisão geral do sistema de gestão da Assistência Social, revisão feita “sob a égide de construção do SUAS, abordando, dentre outras coisas: a divisão de competências e responsabilidades entre as três esferas de governo; os níveis de gestão de cada uma dessas esferas; as instâncias que compõem o processo de gestão e controle dessa política e como elas se relacionam; a nova relação com as entidades e organizações governamentais e não governamentais; os principais instrumentos de gestão a serem utilizados; e a forma de gestão financeira, que considera os mecanismos de transferência, os critérios de partilha e de transferência de recursos[2]. Como se vê, a NOB/SUAS-2005 é documento imprescindível para quem quiser entender a atual Política de Assistência Social e a gestão e o funcionamento do SUAS, ou seja: quem quiser prestar concurso público na área da Assistência social deve estudar, hoje, a NOB/SUAS de 2005, não a NOB de 1998, e acompanhar as atualizações da legislação.

Melhor ainda se puder estudar também a Norma Operacional Básica de Recursos Humanos do SUAS – NOB-RH/SUAS, publicada em 2006, onde o interessado em adentrar na área profissional da Assistência encontrará coisas muito interessantes como:

* Plano de Carreira, Cargos e Salários dos trabalhadores da Assistência Social;  

* Composição do quadro de funcionários exigido em cada tipo de serviço;

* Especificação das responsabilidades e atribuições dos gestores federais, estaduais e municipais do SUAS;

* Princípios éticos para os trabalhadores da área de Assistência Social (sejam assistentes sociais, sejam educadores, psicólogos, cuidadores, advogados etc.)

Aliás, não custa nada transcrevê-los:

São princípios éticos que orientam a intervenção dos profissionais da área de assistência social:

  1. Defesa intransigente dos direitos socioassistenciais;
  2. Compromisso em ofertar serviços, programas, projetos e benefícios de qualidade que garantam a oportunidade de convívio para o fortalecimento de laços familiares e sociais;
  3. Promoção aos usuários do acesso à informação, garantindo conhecer o nome e a credencial de quem os atende;
  4. Proteção à privacidade dos usuários, observado o sigilo profissional, preservando sua privacidade e opção e resgatando sua história de vida;
  5. Compromisso em garantir atenção profissional direcionada para construção de projetos pessoais e sociais para autonomia e sustentabilidade;
  6. Reconhecimento do direito dos usuários a ter acesso a benefícios e renda e a programas de oportunidades para inserção profissional e social;
  7. Incentivo aos usuários para que estes exerçam seu direito de participar de fóruns, conselhos, movimentos sociais e cooperativas populares de produção;
  8. Garantia do acesso da população a política de assistência social sem discriminação de qualquer natureza (gênero, raça/etnia, credo, orientação sexual, classe social,ou outras), resguardados os critérios de elegibilidade dos diferentes programas, projetos, serviços e benefícios;
  9. Devolução das informações colhidas nos estudos e pesquisas aos usuários, no sentido de que estes possam usá-las para o fortalecimento de seus interesses;
  10. Contribuição para a criação de mecanismos que venham desburocratizar a relação com os usuários, no sentido de agilizar e melhorar os serviços prestados.” 

Posto isso, chegamos finalmente ao Guia de Orientação Nº1 (1ª Versão), apresentado em 2008 pelo MDS/SNAS como instrumento norteador que diz respeito exclusivamente ao trabalho dos CREAS. Vejamo-lo sucintamente:

            Primeiro, antes de se dirigir diretamente ao seu objeto específico – o CREAS –, o Guia de Orientação Nº1 define que a proteção social especial, de modo geral (isto é, tanto de média como de alta complexidade), tem por direção:

            “a) proteger as vítimas de violência, agressões e as pessoas com contingências pessoais e sociais, de modo a que ampliem a sua capacidade para enfrentar com autonomia os revezes da vida pessoal e social;

            b) monitorar e reduzir a ocorrência de riscos, seu agravamento e sua reincidência;

            c) desenvolver ações para eliminação/redução da infringência aos direitos humanos e sociais.”  

            Indo adiante, o Guia afirma, sobre a proteção social especial, que “este campo de proteção na assistência social se ocupa das situações pessoais e familiares com ocorrência de contingências/vitimizações e agressões, cujo nível de agravamento determina seu padrão de atenção“.

            Chegando especificamente ao CREAS, determina o Guia expressamente que “o Centro de Referência Especializado de Assistência Social – CREAS, como integrante do Sistema Único de Assistência Social (SUAS), deve se constituir pólo de referência, coordenador e articulador da proteção especial de média complexidade, sendo responsável pela oferta de orientação e apoio especializados e continuados de assistência social a indivíduos e famílias com seus direitos violados, mas sem rompimento de vínculos. […] Nesta perspectiva, o CREAS deve articular os serviços de média complexidade e operar a referência e contra-referência com a rede de serviços socioassistenciais da proteção básica e especial, com as demais políticas públicas e demais instituições que compõem o Sistema de Garantia de Direitos e movimentos sociais. Para tanto, é importante estabelecer mecanismos de articulação permanente, como reuniões, encontros e outras instâncias para discussão, acompanhamento e avaliação das ações, inclusive as intersetoriais.” (Note-se que, no assim chamado “Sistema de Garantia de Direitos”, o Guia Nº1 inclui expressamente “conselhos de defesa de direitos de criança e do adolescente e conselhos tutelares, instituições do Poder Judiciário (Vara da Infância e da Juventude); Ministério Público; Defensoria Pública; organizações da sociedade civil que atuam no campo de defesa e promoção dos direitos de crianças adolescentes (Centros de Defesa, fóruns de defesa de direitos, etc.“)   

            Quanto ao “Público Referenciado” ao CREAS, determina o Guia que “o CREAS deve ofertar atenções na ocorrência de situações de risco pessoal e social por ocorrência de negligência, abandono, ameaças, maus tratos, violência (física/psicológica/sexual), discriminações sociais e restrições à plena vida com autonomia e exercício de capacidades, prestando atendimento prioritário a crianças, adolescentes e suas famílias nas seguintes situações: crianças e adolescentes vítimas de abuso e exploração sexual; crianças e adolescentes vítimas de violência doméstica (física/psicológica/sexual/negligência) e adolescentes em cumprimento de medida socioeducativa de Liberdade Assistida (LA) e de Prestação de Serviços à Comunidade (PSC)“, entre outros. (Não se admira, pois, que o CREAS seja conhecido no CIC de Ferraz como o “setor da maldade“…)

            E quais ações deve o CREAS tomar com relação ao seu público referenciado? Eis o que diz o Guia Nº1 (resumidamente):

            1 – Acolhida e escuta individual voltada para a identificação de necessidades de indivíduos e famílias;

            2 – Referenciamento e acompanhamento de situações de violação de direitos, vitimizações e agressões;

            3 –   Atendimento psicossocial individual e em grupos de usuários e suas famílias;

            4 – Orientação e encaminhamentos para a rede socioassistencial e de serviços especializados, garantindo análise e atendimento de requisições de órgãos do Poder Judiciário e dos Conselhos Tutelares;

            5  – Acompanhamento e controle da efetividade dos encaminhamentos realizados

            6  –   Realização de visitas domiciliares.

            7  –   Produção de materiais educativos como suporte aos serviços.

Eis, muito de relance, como o Guia Nº1 orienta o trabalho do CREAS, com o que esperamos ter esclarecido o leitor minimamente sobre as funções desta repartição pública, bem como algo sobre a  Assistência Social em geral.

*

Perfil do Usuários do CREAS de Ferraz

            Vejamos agora os usuários do CREAS de Ferraz, quem são essas pessoas que necessitam de seus serviços, como vão parar lá. 

            Basicamente, os casos de atendimento preferencial (crianças e adolescentes) dividem-se nas duas frentes gerais de trabalho: violação de direitos (os casos de abuso sexual, maus tratos etc.) ou medidas socioeducativas (os casos dos adolescentes que cumprem medidas de Liberdade Assistida e/ou Prestação de Serviços Comunitários). Assim, do total de casos prioritários atendidos desde a implementação do CREAS de Ferraz em 2006, até 2010, 74% foram de violação de direitos e 26% foram de medidas socioeducativas (ver gráfico 1).  

O atendimento à demanda de medidas socioeducativas iniciou-se em 2007, quando estas constituíam mais da metade dos casos (54%), mas desde então foi verificada uma vertiginosa tendência de crescimento das ocorrências de violação de direitos, fazendo com que as medidas socioeducativas chegassem a 2010 representando apenas 16% dos casos (ver gráfico 2).  

            Esse aumento da demanda de usuários em situação de violação de direitos ocorreu sobretudo devido à divulgação do serviço entre a população, através da distribuição de folders explicativos, participação em Conselhos Municipais de Direitos, contatos com a rede pública e terceiro setor (ONGs) e a realização de palestras em escolas e entidades sociais. Além disso, é possível que o próprio efeito “boca a boca” tenha contribuído para o conhecimento do equipamento pelo público ferrazense, mas isso naturalmente não pode ser medido.    

            Das violaçõesde direitos contra crianças e adolescentes, a mais recorrente em atendimento no CREAS é a de abuso sexual (38%), seguida de violência física (24%), negligência (22%), violência psicológica (14%) e exploração sexual (2%). (ver gráfico 3)

A maioria das vítimas de abuso sexual que chegam ao CREAS são meninas (83%) pertencentes à faixa etária dos 7 aos 14 anos (66%). Mais deprimente é constatar que a faixa de 0 a 6 anos (!) corresponde a elevadíssimos 26% dos casos. Só 8% das vítimas tem mais de 14 anos (ver gráficos 4 e 5).

Os agressores dessas vítimas são sempre homens (100%, ver gráfico 6), muitas vezes vizinhos e conhecidos da família da vítima ou desconhecidos, todos os quais perfazem os 47% indicados como “outros” no gráfico 7. Contudo, os agressores que tem vínculo familiar com a vítima perfazem os restantes 53%, mostrando que os casos de abuso sexual ocorrem frequentemente no âmbito doméstico. Nestes casos, o próprio pai (17%) e o padrasto (14%) são disparados os maiores abusadores, seguidos dos tios (6%), dos avôs (4%) e dos irmãos (4%); outros familiares (primos, cunhados etc.) somam 8% (ver gráfico 7).

Como esses casos, principalmente os ocorridos na intimidade da família, vão parar no CREAS? A título de exemplo, digamos que alguns dão-se mais ou menos assim: a criança que sofre o abuso permanece certo tempo sem ousar revelar o ocorrido, seja porque o agressor a ameaçou explicitamente com retaliações caso falasse, seja porque está confusa, seja porque teme ser culpada de prejudicar a família ao fazer a denúncia. De qualquer modo, a criança guarda o ocorrido como um segredo sufocante.

Em certo momento, porém, ao encontrar alguém que lhe inspire confiança, a criança vence o silêncio e faz a revelação, seja em casa, na escola ou outro lugar. A coisa chega aos ouvidos de um adulto, e logo o Conselho Tutelar é acionado. Este trata de tomar as medidas cabíveis, como acionar a polícia, enviar a vítima para exame pericial no Instituo Médico Legal e, dentre outras ações, encaminha a criança para acompanhamento no CREAS. Claro que este é só um exemplo entre incontáveis maneiras de surgimento de uma denúncia de abuso sexual.

Os casos de violência física, por sua vez, costumam chegar de forma diferente: por exemplo, na escola os professores notam marcas de espancamento na criança, ou os vizinhos ouvem reiteradamente gritos de fúria dos pais e de dor/desespero da criança na casa das vítimas, e então uma denúncia (anônima ou não) chega ao Conselho Tutelar, que aciona o CREAS.

            A idade das vítimas de violência física também é baixa, ainda que não tanto como as de violência sexual (ver gráfico 8). Já o gênero das vítimas é bem mais equilibrado (ver gráfico 9), e o vínculo com o agressor aponta especialmente para pai e mãe (ver gráfico 10). Ainda assim, os homens são, no geral, a maioria dos agressores (ver gráfico 11).

            Esses perfis alteram-se drasticamente nos casos de negligência, terceira mais recorrente forma de violação de direitos atendida no CREAS de Ferraz (ver gráfico 3). Aqui, pela primeira vez as vítimas são na sua maioria meninos (56%), embora em quase equilíbrio com o número de meninas (ver gráfico 12). E, se suas idades são relativamente parecidas com as das vítimas de violência física (ver gráfico 13), seus vínculos com os agressores são muito diferentes, assumindo preponderância a figura da mãe (ver gráfico 14), donde consequentemente, pela primeira vez, constatamos serem as mulheres a maioria dos responsáveis (ver gráfico 15).    

            O fato de as mães serem estatisticamente as maiores responsáveis por negligência de menores se deve, em geral, porque ou estas são as únicas responsáveis pelos filhos, estando separadas dos antigos companheiros ou abandonadas por estes, ou seus companheiros, pais ou padrastos das crianças e adolescentes são considerados meros provedores da renda familiar, não sendo considerados responsáveis pelos cuidados da prole.

            Os casos de negligência chegam ao CREAS porque houve, em determinado momento, uma denúncia contra os responsáveis pelas crianças, sustentada na constatação de que estas estariam, por exemplo, ficando sozinhas em casa (sem ter quem as cuide), ou andando o dia inteiro a esmo pelas ruas, às vezes pedindo dinheiro, ou indo à escola maltrapilhas, sujas e com fome.

            A quarta violação mais recorrente no CREAS de Ferraz é a violência psicológica, correspondendo a 14% do total (ver gráfico 3). Esta violação está comumente associada à ocorrência dos outros tipos, sendo descoberta geralmente durante o próprio atendimento no CREAS. Pode acontecer, também, desta violência surgir exclusiva, e nestes casos é geralmente a própria vítima quem procura alguém que a auxilie, que por sua vez faz a denúncia. 

            A violência psicológica consiste, de modo geral, em frequentes insultos, humilhações, ameaças e difamações. Os dados estatísticos sobre esta violação (ver gráficos 16, 17, 18, 19) acompanham as tendências da violência física, até porque sua ocorrência muitas vezes é concomitante.

            Enfim, há os casos de exploração sexual de crianças e adolescentes, que correspondem a 2% do total de casos atendidos pelo CREAS de Ferraz (ver gráfico 3). Esta violação tem estatísticas bem próprias: primeiro, todas as vítimas são do sexo feminino (ver gráfico 20), e não há nenhum caso registrado na faixa etária de 0 a 6 anos (ver gráfico 21). A exploração sexual infanto-juvenil implica no aliciamento, por parte de um adulto, de uma criança ou adolescente para prostituição; por isso, espanta saber que, em 43% dos casos atendidos, o próprio pai da vítima seja o explorador (ver gráfico 23).

De cada uma das violações contra crianças e adolescentes vistas até agora, vale destacar que foram obtidos, na presente pesquisa, dados sobre cor/raça das vítimas e escolaridade de vítimas e agressores. Estes dados não demonstraram diferenças notáveis entre os tipos de violação, e por isso fornecemo-los agora de modo totalizado:

Dentre estes três gráficos gerais sobre violação apresentados, o último sobre escolaridade (nº 26) destaca-se por apresentar uma importante informação sobre os usuários do CREAS de Ferraz: 77% dos agressores sequer chegaram ao colegial em sua vida escolar, afora os 4% que nem mesmo o Ensino Fundamental possuem, o que mostra o grau de precariedade social do público em geral, dado que a baixa escolaridade é um indicativo de baixo estrato social, e que a maioria desses agressores, pertencendo à família das vítimas (como visto nos gráficos sobre vínculos dos agressores com as vítimas), representam-nas.  .    

Por fim, além dos tipos de violação citados até agora, as crianças e adolescentes também têm seus direitos violentados pela prática de trabalho infanto-juvenil, cujos dados disponíveis seguem adiante:

Todavia, as violações de direitos ocorrem não só contra crianças e adolescentes. Também mulheres adultas, idosos e pessoas portadoras de deficiência de ambos os sexos são frequentemente atingidos. As mulheres são a maioria das vezes vítimas de agressão física, os idosos e deficientes, de negligência (ver gráficos 29, 30 e 31).  

Quanto às medidas socioeducativas (acompanhamento dos adolescentes em cumprimento de Liberdade Assistida e/ou Prestação de Serviços à Comunidade), os atendidos são adolescentes na sua grande maioria – a menor idade até hoje foi de 13 anos –, e alguns poucos maiores de idade, o que ocorre com os que cometeram o ato infracional quando ainda eram menores mas tiveram de continuar a cumprir a medida depois dos 18. Dos tipos de atos cometidos, destacam-se roubo, tráfico e furto (ver gráfico x).

O cumprimento da medida de Liberdade Assistida (LA) é realizado pelo adolescente sob orientação do técnico responsável, no caso do CREAS de Ferraz, uma assistente social que deve atendê-lo semanalmente, e sua família sempre que necessário, com o objetivo de abordar a sua responsabilização quanto ao ato infracional cometido e promover a socioeducação através de orientações individuais, grupos socioeducativos, encaminhamentos para matrícula escolar e verificação de freqüência/aproveitamento, cursos profissionalizantes, equipamento de esporte e cultura, inserção no mercado de trabalho, provimento de documentação pessoal, tratamento de saúde e o que mais se fizer necessário, pelo prazo mínimo de 6 meses.

O cumprimento da Prestação de Serviços à Comunidade (PSC) é semelhante ao da LA, com o diferencial de que o adolescente precisará cumprir um determinado número de horas semanais (máximo de oito) de trabalho de caráter socioeducativo num equipamento público ou entidade social,  pelo prazo máximo de 6 meses.

A maioria dos adolescentes (70%) tem sucesso no cumprimento da medida: aderem ao acompanhamento no CREAS, completam o tempo previsto e são liberados pela Justiça. Alguns, porém (14%), acabam reincidindo em infrações durante o período de cumprimento  e por isso deixam o acompanhamento no CREAS, seja para serem internados em regime fechado na detenção (se já forem maiores), na internação (menores) ou na semiliberdade (menores em regime semiaberto, em que se passa a noite na internação e de dia se vai a atividades dirigidas como cursos profissionalizantes etc).

Outros (16%) não cumprem a medida por motivos diversos que não o de reincidência, como transferência para acompanhamento no CREAS de outra cidade (8%), paradeiro desconhecido do adolescente (5%), falecimento (1%) e internação-sanção (2%), a qual não se trata de internação por reincidência no crime, mas sim por descumprimento da própria medida de Liberdade Assistida ou Prestação de Serviços à Comunidade (ver gráfico x).  

Eis, em suma, os dados que pudemos levantar no sentido de propiciar ao leitor informações objetivas que ajudassem no delineamento do perfil dos usuários do CREAS de Ferraz.    .   

***

Notas sobre o trabalho de atendimento aos usuários

Das conversas e entrevistas feitas com os técnicos do CREAS, assim como das observações acompanhando de perto o trabalho da equipe, foi possível conhecer um pouco os serviços oferecidos e os procedimentos adotados no atendimento aos usuários. Estes chegam ao CREAS ou por iniciativa espontânea ou – mais comumente –  encaminhados pelo Conselho Tutelar, pela Vara da Infância e Juventude e pelo Ministério Público, tanto por meio de ofícios e requisições como pelo comparecimento direto do cidadão ao serviço portando uma notificação do órgão encaminhador.

            A primeira coisa a fazer com este cidadão é recebê-lo bem. De fato, é no primeiro contato com o usuário que o pessoal do CREAS tem a oportunidade de exercer o princípio da Assistência Social brasileira de manter “respeito absoluto aos direitos do cidadão, à sua dignidade e à sua autonomia”[3], assegurando-lhe:

– Direito ao atendimento digno, atencioso e respeitoso, ausente de procedimentos vexatórios e coercitivos.

– Direito ao tempo, de modo a acessar a rede de serviço com reduzida espera e de acordo com a necessidade.

– Direito à informação, enquanto direito primário do cidadão, sobretudo àqueles com vivência de barreiras culturais, de leitura, de limitações físicas.[4]

O bom tratamento no primeiro contato passa, no CREAS de Ferraz, por toda a equipe, começando desde a agente administrativa, a qual atua também na recepção – o que não é empecilho para que ela exerça plenamente suas funções administrativas regulares: elaboração de ofícios, prestação de contas da repartição, adiantamentos bancários, organização de arquivos, compra de material etc.

Identificado o(s) usuário(s), a agente chama um dos técnicos disponíveis para atendê-los, seja um dos psicólogos ou dos assistentes sociais, que então o(s) leva para uma saleta reservada.

Em geral, são atendidos conjuntamente, de início, todos os que comparecem juntos ao equipamento. Por exemplo, no caso de uma família em que houve ocorrência de violência física contra uma criança, atendem-se primeiramente todos juntos; neste momento, já é possível para o técnico verificar, além das informações sobre o contexto familiar e impressões pessoais sobre o acontecimento gerador da demanda, também o modo pelo qual a família se relaciona, isto é, quem fala primeiro, quem não fala, quem discorda, quem se exalta etc., ou seja, perceber as especificidades da dinâmica familiar.

Terminado o atendimento e agendado o próximo, o técnico escreve um relatório e abre o prontuário do caso, ao qual serão anexados os relatórios seguintes. No decorrer do acompanhamento continuado, que em geral ocorre semanalmente, os membros da família poderão ser atendidos individualmente, a fim de verificar a percepção própria de cada um sobre a situação e oferecer as orientações que se fizerem necessárias.

Note-se que o objetivo do técnico não é completar uma investigação sobre responsabilidades pessoais na situação de agressão: isto tem seu lugar próprio no inquérito policial, se houver. Os assistentes sociais e psicólogos visam exclusivamente, no exemplo dado, à ampliação da capacidade protetiva da família sobre a criança através do exercício de uma forma de cuidado que não passe pela violência física. Para isto, trabalham no sentido de fortalecer os vínculos afetivos familiares por meio de um conjunto articulado de ações que envolvem acolhimento, escuta, orientação e promoção do acesso da família aos recursos sociais e institucionais apropriados, tais como inserção em programa de transferência de renda e acompanhamento junto ao CRAS, acompanhamento em saúde, inserção no mercado de trabalho, inclusão em escola, cursos profissionalizantes, atividades socioeducativas, oficinas de arte, programas de esporte, cultura e lazer etc. Outro objetivo dos atendimentos é perceber se a criança ou adolescente referenciado apresenta alguma dificuldade em seu desenvolvimento ou até mesmo algum sintoma psicológico/psiquiátrico mais acentuado em decorrência da violência sofrida. Neste caso, será encaminhado para tratamento psicológico ou psiquiátrico no setor de Saúde Mental.

Mas afinal – poderia perguntar o leitor – em que consistem exatamente as mencionadas ações de acolhimento, escuta e orientação? Melhor: qual é o trabalho dos técnicos durante os atendimentos? Ainda: que diabos eles ficam fazendo na sala com os usuários?

Ora, seria muita indiscrição e prepotência querer resumir – e portanto limitar – a prática de atendimento psicossocial e socioeducativo dos técnicos, adquirida em anos de estudo teórico (na faculdade) e experiência concreta (no trabalho), ainda mais no campo das Ciências Humanas, naturalmente aberto ao questionamento permanente e à indeterminação. Podemos aqui, talvez, apenas esclarecer alguns pontos que costumam gerar confusão:

1º – Os técnicos não “dão conselhos”, mas propiciam orientação – o que é bastante diferente. Com efeito, aquele que dá conselhos se põe necessariamente numa posição de detentor de um saber superior ao do aconselhado, o que estimularia uma relação de dependência de um suposto “ignorante” – o usuário – em relação a um suposto “especialista” – o técnico. Não é isso que se quer, mas o contrário: os técnicos visam a favorecer o “empoderamento” (conferimento de maior poder) do usuário no sentido de proteger-se e tomar decisões por si próprio, de modo independente. Portanto, adotam o princípio de que o usuário deve ser levado a refletir, não a obedecer. Na prática, isto faz com que o discurso imperativo “faça isto, faça aquilo” seja evitado e trocado por um discurso interrogativo “o que você acha disso, o que você pensa sobre aquilo?”, estimulando a que a própria pessoa chegue às respostas sobre o que deve fazer ou não. Assim, a orientação que vem da parte do técnico está na condução qualificada da reflexão conjunta, visando à sensibilização do usuário quanto a temas importantes. 

            2º – Atendimento psicossocial/socioeducativo não é tratamento psicoterapêutico: por mais que nos atendimentos do CREAS esteja presente uma escuta qualificada da angústia dos usuários, e esta escuta possibilite, muitas vezes, o alívio de suas ansiedades e uma abertura à reflexão construtiva – portanto, efetiva melhora do estado mental –, tais atendimentos limitam-se a este primeiro momento de intervenção psicológica. Isto porque o atendimento psicossocial/socioeducativo não apresenta caráter estritamente terapêutico, uma vez que está direcionado também à contemplação de demandas de ordem social, prevendo ações concretas como encaminhamentos e orientações relativas a programas sociais de transferência de renda, recebimento de cesta básica, tratamentos de saúde, providências jurídicas, inclusão na rede oficial de ensino, cursos profissionalizantes e inserção no mercado de trabalho. Portanto, se após as primeiras intervenções psicossociais no CREAS a problemática psicológica/social do usuário persistir, conclui-se pela necessidade de encaminhá-lo para tratamento psicoterapêutico de fato – ou, dependendo do caso, até mesmo tratamento psiquiátrico – nos equipamentos próprios da rede de Saúde Mental. Lá sim, será possível o estrito tratamento psicológico ou psiquiátrico, direcionado exclusivamente à questão psíquica e capacitado a trabalhar conflitos que se encontram arraigados na personalidade.

3º – O atendimento no CREAS não tem a função de apurar denúncias e/ou investigar  usuários e suas famílias: enquanto órgão da Assistência Social, o CREAS está constituído exclusivamente para prestar-lhes assistência, assentada necessariamente num vínculo de confiança mútua. Os técnicos estão completamente cientes de que, sem este vínculo, não é possível qualquer resultado no trabalho: as pessoas jamais aceitariam orientações e se deixariam ajudar por alguém de quem desconfiam. Por isso mesmo, os técnicos partem do “compromisso fundamental” – expresso em documento oficial[5] – “de proteger a criança e o adolescente, acreditando sempre em sua palavra“. Estando assim comprometidos em favor de seu público prioritário, ao qual devem assistir em suas necessidades prementes independentemente da comprovação dos fatos que levaram à demanda, os técnicos do CREAS estão automaticamente prejudicados enquanto testemunhas contra ou a favor em inquéritos ou processos que envolvam usuários. Mesmo porque, quando o técnico do CREAS avalia seus usuários – e de fato precisa fazê-lo para poder atendê-los bem – o faz tão-somente em vista da identificação de suas necessidades psicológicas e assistenciais, para assim poder encaminhá-los aos serviços apropriados disponíveis na rede de proteção social – e nunca para investigar eventuais responsabilidades criminais no caso (o que seria perturbadoramente inquisitivo, prejudicando o vínculo de confiança necessário ao atendimento). Por isso, quando o Judiciário requisita alguma avaliação/relatório sobre usuário, o CREAS informa aquilo que está dentro dos seus limites, ou seja, informa sobre a constatação de presença ou não de uma necessidade assistencial do usuário de ordem social ou psicológica, sobre o andamento dos atendimentos e dos encaminhamentos etc., mas éincompetente para contribuir de outro modo, até porque, como vimos, a natureza própria de sua avaliação não o permite (estando além de sua competência, por exemplo, afirmar se há ou não relação de causa-efeito entre suposta prática criminosa de terceiros e sintoma psíquico observado em usuário, ou outras evidências do tipo que levem à comprovação, para o juiz, de que houve ou não crime no caso e de quem é a culpa). Em suma: quando ocorre uma violação de direitos, vários órgãos podem ser acionados: Conselho Tutelar, Delegacia de Polícia, Ambulatório de Saúde, Vara da Infância e da Juventude etc., cada qual com sua função – uns de apurar o caso, outros de assistir os envolvidos –, entre eles o CREAS, a quem cabe a parte de prestar assistência social especializada.

4º O atendimento no CREAS não está obrigado a policiar, vigiar e controlar pessoas, conformando-as a expectativas de terceiros. É importante esclarecer este ponto, visto ser comum que os usuários atendidos ou até mesmo outros equipamentos da rede de serviços manifestem a expectativa de que o atendimento no CREAS terá o poder de convencer/obrigar alguém a fazer algo previamente resolvido por eles (obrigar alguém a fazer tratamento psicológico ou de saúde, a assumir responsabilidade quanto aos cuidados de algum familiar, a fazer tal criança ou adolescente se comportar bem etc.). As coisas, porém, não são tão simples assim. Primeiro, porque cabe aos técnicos do CREAS analisar as necessidades do usuário na situação em questão, principalmente segundo as palavras dele próprio; depois, apesar dessas questões (comportamento, responsabilidade, necessidade, transformação etc.) estarem presentes o tempo todo durante os atendimentos, isto não significa que a intervenção técnica terá o poder de controlar e modificar automaticamente o comportamento de quem quer que seja, muito menos forçar isso por meio da execução dalgum tipo de punição para quem não se adequar ao imperativo suposto. Mesmo porque, conforme documento oficial relativo à gestão do Sistema Único de Assistência Social:

O SUAS realiza a garantia de proteção social ativa, isto é, não submete o usuário ao princípio de tutela, mas à conquista de condições de autonomia, resiliência e sustentabilidade, protagonismo, acesso a oportunidades, capacitações, dignidade e projeto pessoal e social. A dinâmica da rede socioassistencial em defesa dos direitos da cidadania considera o cidadão e a família não como objeto de intervenção, mas como sujeito protagonista da rede de ações e serviços;[6]

Assim, todo o processo de modificação da situação/comportamento do usuário e de sua família dependerá de uma série de ações não só do CREAS como de outros equipamentos, e também dos usuários, sejam vítimas ou vitimizadores. Com efeito, todos são respeitados em sua autonomia e chamados livremente a uma participação ativa, cientes de que a mudança de um dos membros da família depende de cada um e de todos; afinal, a dinâmica familiar comporta o conjunto total de relações recíprocas entre os membros, e não o indivíduo isolado. É com o tempo, diversas ações dos equipamentos de assistência e cooperação de todos os envolvidos que alguma mudança positiva pode se realizar.

Falando assim, pode-se ter a impressão de que não há muito o que fazer nas situações que se apresentam no CREAS e que não existem esperanças quanto à solução de problemas tão graves. Mas o que se quer explicitando todas esses detalhes do trabalho é desmistificar algumas ideias imediatistas e simplistas da forma de resolução de conflitos, enfatizando que a transformação de qualquer problemática humana em nível psicológico e social é muito complexa, demora um certo tempo (imprevisível), é singular e depende do comprometimento de todos, ou seja, da rede de serviços e dos próprio usuários e seus familiares.

Pois bem. Falamos da escuta (das angústias do usuário) e da orientação (das reflexões sobre os seus problemas). O acolhimento, por sua vez, trata-se mais propriamente daquela receptividade para com os usuários, traduzida em disponibilidade, educação e boa vontade no trato com eles. O acolhimento, além de ser um excelente demolidor de barreiras (favorecendo o estabelecimento do vínculo de confiança nas situações delicadas que se apresentam no CREAS, em que os usuários encontram-se muito vulnerabilizados emocionalmente devido às violações sofridas) é também uma ação socioeducativa em si: tendo suas demandas acolhidas socialmente sem necessidade de atrito, o indivíduo aprende que não precisa agredir para se defender em sociedade. O acolhimento, então, é um elemento a mais para romper com o círculo de violência que costuma brutalizar os cidadãos socialmente vulneráveis. Estes, com efeito, são frequentemente tratados com falta de tato em sua vida familiar e social, mesmo nos serviços públicos, e depois de tantos entrechoques acabam desenvolvendo, em suas relações sociais, um certo mecanismo de defesa baseado na agressividade, algo como “a melhor defesa é o ataque”: prevendo um embate social, armam-se de uma postura prévia de afronta tentando dar – e não levar – o primeiro golpe moral. Quando, então, chegam a um lugar que lhes acolhe pacífica e educadamente, isto contribui para desarmar os ânimos, mostrando que é possível um relacionamento social que não passe pela violência simbólica.       

Além dos atendimentos, muitas vezes fazem-se necessárias, no decorrer do acompanhamento, visitas domiciliares às famílias. Estas ocorrem quando se precisa compreender de forma mais próxima o contexto cultural e socioeconômico vivenciado pela família, ou averiguar o motivo da ausência aos atendimentos agendados (por telefone ou aerograma) e agendar novo atendimento. A visita domiciliar muitas vezes é percebida pelo usuário como uma atenção a mais, pois em geral demonstram sentir que o CREAS está mais próximo deles e atento às suas necessidades.

Nem sempre a visita é fácil. Além das barreiras físicas – as casas dos usuários frequentemente se encontram em local de difícil acesso, como barrancos e beiras de córregos –, há usuários que não recebem a visita do CREAS tranquilamente, especialmente nos casos em que ela ocorre devido a solicitação de autoridades a respeito de uma denúncia. Em função disto, a primeira abordagem do CREAS junto à família, seja em visita domiciliar seja em atendimento, precisa ser habilidosa e cuidadosa para que, aos poucos, a família possa perceber que o serviço tem o objetivo de auxiliá-la, e não julgar, punir ou vigiar. Somente estabelecendo um vínculo de confiança com a família é que o trabalho do CREAS torna-se possível.

Enfim, se ao longo do acompanhamento as violações cessarem e os vínculos familiares se fortalecerem, o atendimento pode ser encerrado – não esquecendo que a família pode retornar em qualquer momento ao CREAS se necessitar. Este acompanhamento pode perdurar por meses ou anos dependendo da situação atendida.

            Quando as violações não cessam e a criança ou adolescente encontra-se em iminente risco, o CREAS precisa notificar o Conselho Tutelar para que sejam tomadas as medidas cabíveis em sua defesa: advertência aos pais, abrigamento, perda da guarda, entre outras previstas no Estatuto da Criança e do Adolescente.  

Com relação ao atendimento da mulher adulta que sofre violência doméstica, o CREAS procura compreender qual é a situação específica de violência em que ela se encontra e quais os recursos para romper com o ciclo de violência, considerando, inclusive, a possibilidade de sua retirada do ambiente de risco iminente de vida – o próprio lar – e seu abrigamento em local seguro (casa de acolhimento sigilosa), o que se dá somente em casos extremos, e não sem difíceis implicações. Entretanto, mesmo para um rompimento comum e gradual entre a mulher e o agressor, há dificuldade devido às mulheres frequentemente não estarem preparadas para o afastamento de seu companheiro, em razão de dependência econômica, emocional, pelos cuidados com os filhos ou por medo de represálias. As situações, como se vê, são delicadas e complexas; de qualquer modo, estas mulheres são auxiliadas a refletir sobre sua condição e, caso optem por realizar a tentativa de rompimento da relação, são-lhe oferecidas as orientações necessárias psicossociais e jurídicas para a tomada de atitude.

 Com relação aos idosos e pessoas com deficiência, geralmente são necessárias visitas domiciliares para atender estes usuários que, quase sempre, têm dificuldades de locomoção. Também são realizados atendimentos individuais e com diversos membros da família a fim de mediar a relação de cada familiar nos cuidados junto ao idoso ou pessoa com deficiência, uma vez que a violação sofrida por este público é, na maioria das vezes, a negligência. Quando não é possível acordar com a família a responsabilidade por estes cuidados ou quando a situação se agrava por violações que exigem medidas jurídicas (subtração de cartão de aposentadoria, corte de energia, prejuízos à saúde do idoso ou da pessoa com deficiência em decorrência da negliência ou maus-tratos etc.) torna-se necessário o envio de relatório ao Ministério Público.

Enfim, nos atendimentos em medidas socioeducativas, a coisa funciona mais ou menos assim: o assistente social do CREAS, depois de ter recebido guia de execução do fórum solicitando acompanhamento para determinado adolescente em cumprimento de medida (de Liberdade Assistida e/ou de Prestação de Serviços à Comunidade), agenda o primeiro atendimento através de carta solicitando o comparecimento tanto do adolescente como de um adulto responsável. Este primeiro atendimento é chamado IM – Interpretação de Medida –, pois entre seus objetivos consta sempre o de esclarecer os usuários sobre o significado, segundo o ECA, da medida socioeducativa em questão, explicitando os deveres e direitos pertinentes ao adolescente, à família, ao equipamento e à comunidade. Nesse dia também são apresentados os recursos materiais e a oferta de serviços de que dispõe o CREAS para atendê-los. Enfim, os técnicos acordam com os adolescentes o compromisso de assiduidade nos atendimentos subsequentes.

A partir deste primeiro atendimento, o técnico orientador da medida começa a elaborar o PIA – Plano Individual de Atendimento – do adolescente, no qual se tenta traçar metas específicas para seu acompanhamento em quesitos objetivos e subjetivos, considerando o contexto particular do caso. No campo da objetividade tem-se, por exemplo, a discussão com os adolescentes sobre a necessidade de providenciar a retirada de documentos pessoais faltantes – fato muito comum – como 2ª via de Certidão de Nascimento, RG, CPF, Carteira Profissional Título Eleitoral e Certificado de Alistamento Militar, bem como comprovantes de matrícula, frequência e aproveitamento escolar. Além disso, levanta-se a possibilidade de inserção em cursos profissionalizantes e encaminhamentos para equipamentos de saúde, esporte e lazer. Quanto às metas subjetivas, tem-se por exemplo a percepção, por parte do adolescente, das questões psicossociais anteriores e contextuais ao cometimento do ato infracional, como suas relações com a família, seu bairro, sua escola, suas expectativas etc., bem como a conscientização sobre as motivações e implicações de seu ato, conscientização esta que visa ao empoderamento de sua autonomia enquanto sujeito capaz de avaliar conjunturas, pesar consequências e tomar decisões próprias. Quando questões emocionais se apresentam de forma incisiva, pode se fazer necessário o devido encaminhamento para tratamento na saúde mental. 

Para complementar a construção do PIA, os técnicos utilizam, além do diálogo, também alguns instrumentais preparados, como o Trajetória do adolescente pelo Sistema de Justiça (redação feita pelo adolescente contando o seu caso, desde o cometimento do ato, passando pela delegacia até a passagem pela internação etc.), o Quem Sou Eu (preenchimento de lacunas sobre itens pessoais como “nome”, “música”, “filme”, “esporte”, “lugar”, “pessoa”, “lembrança”, “desejo”, “palavra”, etc.), o Minha Família (idem, com itens como “fazem parte da minha família…”, “Eu gosto da minha família quando…”, “Eu não gosto da minha família quando…”, “Foi muito bom para a minha família quando…”, “O momento mais difícil para a minha família foi quando…”, “A minha família acha que sou…”, “Eu acho que minha família é…” etc.) e outros instrumentais do gênero como Meus Sentimentos e Meus Planos (este geralmente aplicado nos primeiros dias, visando a colaborar com a definição dos quesitos objetivos do PIA – lembrando que, ao longo do acompanhamento, as expectativas do adolescente quanto à sua vida podem variar, mesmo porque um dos objetivos do acompanhamento é justamente aumentar o seu leque de escolhas quanto ao futuro).

No decorrer dos atendimentos, frequentemente aparecem situações em que os adolescentes se entendem como injustiçados perante a medida aplicada pelo juiz, alegando que não cometeram ato infracional, e/ou que sofreram violação de seus direitos por parte de agentes públicos, e/ou que não compactuam com os valores da sociedade expressos pelo Judiciário, sistema sentido como heterônomo e punitivo – ao qual naturalmente associam o CREAS, onde são obrigados a cumprir a medida. Nestes casos de elevada resistência ao acompanhamento, os técnicos valem-se pacientemente da escuta e do acolhimento, orientam o adolescente no sentido de entender as alternativas de intervenção para garantia de seus direitos, mas não deixam de remeter à responsabilização do adolescente pelo seu ato e à necessidade de atitudes concretas de sua parte frente à situação que lhe está posta, qual seja a de cumprimento de uma determinação judicial de medida socioeducativa. Seja qual for o caso, os técnicos sempre trabalham no sentido de ressignificar a medida socioeducativa, minimizando sua concepção punitiva e maximizando a conotação de oportunidade de crescimento para o adolescente.

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Bibliografia

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BRASIL, Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil, 17 ed. Brasília, 1994. 455 p. (Série textos básicos; n. 25)

BRASIL. Lei Orgânica da Assistência Social- LOAS: Lei nº 8.742, de 7 de dezembro de 1993. Diário Oficial da República Federativa do Brasil, Poder Executivo. Brasília, DF, 8 dez. 1993.

BRASIL, Conselho Nacional de Assistência Social. Resolução nº 207, de 16/12/1998: Aprova a Norma Operacional Básica da Assistência Social – NOB: disciplina a descentralização político-administrativa da Assistência Social, o financiamento e a relação entre os três níveis de governo.  Brasília, DF, 1998.

BRASIL, Conselho Nacional de Assistência Social. Resolução nº 145, de 2004: Aprova a Política Nacional de Assistência Social – PNAS. Diário Oficial da República Federativa do Brasil, Poder Executivo. Brasília, DF, 28 out. 2004.

BRASIL, Conselho Nacional de Assistência Social. Resolução n° 130, de 15 de julho de 2005: Aprova a Norma Operacional Básica da Assistência Social – NOB/SUAS. Brasília, DF, 2005.

BRASIL, Conselho Nacional de Assistência Social. Resolução n° 269, de 13 de dezembro de 2006: Aprova a Norma Operacional Básica de Recursos Humanos do Sistema Único de Assistência Social – NOB-RH/SUAS.

BRASIL, Estatuto da Criança e do Adolescente. Brasília, 13 de julho de 1990. Ed. São Paulo, SP: Conselho Estadual da Criança e do Adolescente, 2007. 

PRADO, Maria do Carmo de Almeida (coordenadora), Vários Autores. O Mosaico da Violência: a perversão na vida cotidiana. São Paulo, SP: Editora Vetor, 2004.

SOUZA, Jessé ; colaboradores. A ralé brasileira: quem é e como vive. Belo Horizonte, MG: Editora UFMG, 2009.


[1] NOB/SUAS-2005, pg. 14

[2] Idem.

[3] Cf. LOAS – Lei Orgânica da Assistência Social, “Dos Princípios e das Diretrizes”.

[4] Cf. PNAS – Política Nacional de Assistência Social, pág. 8.

[5] MDS/SNAS, Guia de Orientação Nº1, item 5.1

[6],Norma de Operação Básica da Assistência Social  – NOB/SUAS de 2006, pg. 21.

Resgate de uma Mãe [capítulo de Jogo Arriscado]

Certo dia, uma jovem mulher acompanhada de suas três filhas, uma de colo, subiu pela primeira vez rumo ao segundo andar do prédio onde fica a sala do Centro de Assistência Social. Suas súplicas desesperadas ouviam-se desde as escadarias:

– NÃO TIREM MINHAS FILHAS DE MIM! EU NÃO QUERO QUE TIREM AS MINHAS FILHAS!!

As duas meninas, uma de 8 e a outra de 6 anos, irromperam a recepção do Centro de Assistência como dois pequenos ciclones, falando e mexendo com tudo e com todos ao mesmo tempo. A jovem mãe com seu nenê de colo se pôs na porta a chorar.

– Calma, senhora, o que aconteceu? – perguntou-lhe a recepcionista. A mulher estava visivelmente abalada e limitou-se a estender o braço disponível para mostrar um papel, por sinal o encaminhamento do Conselho Tutelar enviando a família para atendimento no Centro. E seguia chorando:

– Não tire as minhas filhas! Eu não posso perder as minhas filhas!

A psicóloga de plantão, Melissa, começou o atendimento ali mesmo, de pé:

– Calma, senhora, isso não vai acontecer assim desse jeito; primeiro a gente vai conversar e você vai me contar o que aconteceu, tá? Chama as meninas que eu vou atender vocês numa sala reservada.

Um copo d’água depois, a mulher – chamava-se Verônica – começou a desabafar suas angústias, e destrinchou como pôde, entre prantos e constantes interpelações de suas irrequietas filhas, o emaranhado de sua situação.

Este caso tem um histórico complexo que bem pode dar uma primeira ideia de quão complicado é o trabalho de acompanhamento feito por assistentes sociais e psicólogos de um Centro de Assistência Social; e talvez, do quanto vale a pena.

Logo foi constatado que o caso era, de fato, da alçada do Centro, pois envolvia não só desestrutura sócio-econômica-familiar, mas também vitimização por violência, no caso uma tentativa de abuso sexual contra aquelas duas meninas, cometida por um vizinho meses antes.

Segundo o relato, o indivíduo era conhecido da família, costumava beber no boteco da esquina, e vendo certo dia as duas filhas de Verônica perambulando, ofereceu 20 reais a cada uma para irem à sua casa “tomar banho” junto com ele.

O crime, porém, não se consumou. O sujeito quis garantir sigilo de antemão, chantageando as meninas com o argumento de que, se elas contassem algo, ele denunciaria imediatamente a mãe delas ao Conselho Tutelar, que viria então pegá-la.

Este detalhe é importante. No uso desse argumento aparentemente esdrúxulo, o indivíduo valia-se do conhecimento – disseminado na vizinhança – de que Verônica tinha problemas junto ao Conselho Tutelar. De fato, Verônica vinha sendo acompanhada pelo Conselho por conta de tratamento negligente em relação às meninas: efetivamente, por duas vezes confiara a terceiros a responsabilidade de pegá-las na saída da escola, os quais acabaram deixando Verônica na mão – e a diretora da escola sozinha com o abacaxi para descascar; além disso, as meninas eram vistas andando muito tempo soltas pelas ruas, maltrapilhas, às vezes pedindo esmola. Na escola apresentavam mal comportamento e baixo rendimento, e, mais do que isso, sinais de agressão, como hematomas e cicatrizes. Verônica era apontada como a autora das agressões. Nesse contexto, a determinação pela Justiça da perda da guarda das crianças era uma possibilidade cabível (uns diziam iminente), de modo que o afastamento entre mãe e filhas pairava como uma ameaça real.

No entanto, o uso dessa ameaça pelo vizinho como chantagem foi um tiro que saiu pela culatra: as meninas, percebendo que aquele homem que as seduzia com dinheiro guardava também ameaças contra a mãe delas – ato-contínuo contra elas próprias, pelo risco de rompimento do vínculo materno – sentiram o perigo e rechaçaram o convite. Mesmo assim, o sujeito insistiu para que elas o encontrassem no dia seguinte. Só não esperava que fossem contar imediatamente o caso à mãe, assim que chegaram em casa.

Aí foi o rebu. Assim que recebeu a queixa das meninas, Verônica foi tomada pelo ímpeto de ir sozinha catar o vizinho em casa, no boteco ou onde fosse para tirar satisfação naquela mesma hora. O próprio nervosismo, porém, a impediu, já que na época estava grávida de sua terceira filha (a que meses depois traria no colo em sua primeira ida ao Centro de Assistência) e poderia passar mal. Arquitetou então novo plano, que vociferava rodeando dentro de casa como uma fera:

– Ah! elas vão voltar! Vão voltar sim! Só que vão voltar comigo e com a polícia, ele vai ver!

Dito e feito. No dia seguinte estava a arapuca armada pro vizinho: as meninas como isca, os policiais como anzol. Mas quando estes invadiram a casa certo tempo depois da entrada das meninas, não obtiveram qualquer flagrante; talvez porque o sujeito tenha fisgado algo no ar a tempo. De qualquer forma, meteram-no no camburão e levaram-no para a delegacia. Verônica participou da cena do lado de fora:

“Os policiais mandaram eu ficar dentro da viatura; não deixaram eu ficar dentro da casa dele. Mas a hora que eu vi os policiais passando com ele, ele estava com a cara bem brava. Aí eu saí do carro, olhei bem pra cara dele e falei: ‘Minhas filhas estão aqui!’. Só que depois eu fiquei com medo, né? Porque na hora a polícia estava comigo, mas e depois?”

Foi aberto inquérito contra o sujeito, só que ele não foi, de fato, detido de imediato, e voltou para casa, deixando a vizinha Verônica assustada. Porém, para seu alívio e das meninas, a situação dele ficou insustentável no bairro, principalmente com a bandidagem (que, como se sabe, costuma ser intolerante com crimes que consideram piores que os seus, no que se fazem opor- tunamente de “justos”), de modo que o sujeito teve de deixar a cidade:

“Acabou que ele também não foi preso, ficou tudo por isso mesmo. Eu fiquei um bom tempo sem sair de dentro da minha casa com medo, até que os meninos da favela vieram conversar comigo, e falaram ‘Você pode sair normal, qualquer coisa a gente toma a frente’. Então ele foi embora. Ele foi embora. Para eles [os bandidos] é inaceitável, eles não aceitam. O cara deu no pé. Foi que nem os meninos falaram: ou ele ia embora ou ele morria. Aí ele largou tudo aí, a casa dele, e foi embora.”

Mas o problema de fundo ficou. Afinal, permanecia o questionamento do Conselho Tutelar sobre a conduta de Verônica enquanto mãe, e certa insinuação pairando no ar de que o caso de tentativa de abuso sexual sofrido por suas filhas era também em parte culpa sua, pois seu descuido em relação a elas – deixando-as desacompanhadas na rua – teria facilitado a atuação do criminoso.

Seria verdade esta interpretação? Primeiro: pode alguém ser acusado de incorrer indiretamente num crime, por facilitar involuntariamente que outrem o cometa? Por exemplo: alguém que para no sinal com o vidro do carro aberto pode ser acusado de provocar indiretamente um assalto, quando aparece um bandido que lhe aponta uma arma na cabeça? Pode em alguma hipótese esse condutor responder conjuntamente pelo crime de assalto?

Obviamente que não. Se alguém – muito relapso, que seja – esquece seu carro estacionado na rua com a porta escancarada e a chave no contato, e acaso o roubam (sem que o dono haja combinado nada com o ladrão, obviamente), certamente descuidou do seu carro, mas jamais a Justiça poderá condená-lo por participação em roubo. Ou acaso esse dono pode ser chamado de ladrão? Pelo contrário, foi roubado! Do mesmo modo, jamais Verônica pode, por sua suposta negligência enquanto mãe, ser acusada de incorrer, direta ou indiretamente, no crime de violência sexual contra suas filhas cometido por um tarado!

Afastada essa perigosa interpretação que confundia vítima com agressor, restava conferir a verdade interna à família: estaria Verônica sendo negligente nos cuidados de suas filhas e empregando violência para com elas, conforme as denúncias que chegaram ao Conselho Tutelar?

A própria Verônica, sempre muito veraz, foi a primeira a admitir que sim, que frequentemente perdia mesmo a paciência com as meninas, partindo para a “ignorância”, e que nem sempre dava conta do recado de cuidar das três, acompanhando sua educação e providenciando sustento e atenção adequados.

Diante disso, a psicóloga Melissa deixou claro para Verônica que era papel do Centro não só dar assistência psicológica às meninas por conta da tentativa de abuso sexual sofrida, mas também atender a ela própria, a mãe, para discutir como fazer para que os cuidados com as filhas não fossem mais violentos, não fossem mais negligentes; afinal, havia uma situação objetiva de violação de direitos das crianças.

Depois desse primeiro atendimento – no qual desabafou como um vulcão –, Verônica simpatizou com sua atendente, a psicóloga Melissa, com quem veio a estabelecer uma relação de simpatia e confiança:

“Na primeira consulta eu fiquei com o pé meio atrás. Na época eu estava muito revoltada, estava atormentada – eu cheguei a um ponto de ouvir coisas, ver vultos em casa –, estava com os nervos à flor da pele. Qualquer coisinha que falavam, qualquer palavra, minhas filhas ficavam todas roxas. E pra mim, o que eles [os conselheiros tutelares] estavam fazendo [encaminhando a família para atendimento no Centro de Assistência] era pura encheção de saco, que pra mim não ia ajudar p… NADA, entendeu?

Depois, com o tempo, a Melissa foi fazendo eu ver que era totalmente diferente. Quando eu fui lá pro Centro, ela teve muita paciência comigo. Ela perguntou como eu me sentia, o que eu achava do que estava acontecendo.

Também o que fez eu pegar confiança na Melissa foi o jeito como ela tratava minhas filhas. E a paciência que ela teve comigo, porque eu era meio ignorante, viu? Nossa! eu era meio seca, era curta e grossa, ignorante mesmo, sabe? E ela não me repreendeu. Isso me admirou nela. Porque essa é uma virtude que eu não tenho, a paciência. E a Melissa tem uma paciência que eu fico besta; e principalmente comigo: pra ter paciência comigo, só Deus – e a Melissa teve. Ali, depois, eu não fui por causa da consulta, entendeu? Comecei a ir porque eu vi uma amiga na Melissa. Teve sim um certo tempo em que eu ia porque eu tinha que ir mesmo, entendeu?, que eu era obrigada a levar as minhas filhas, mas depois eu comecei a sentir saudade… Eu já cheguei a ir lá sem ter consulta marcada, só pra poder ir conversar com a Melissa; eu comecei a pegar confiança nela, a conversar com ela, eu me abria quando não tinha ninguém para conversar.”

Amizade à parte, os atendimentos subsequentes e visitas domiciliares confirmaram a necessidade urgente de mudança de atitude por parte de Verônica enquanto mãe. Com efeito, verificou-se que os cuidados de alimentação, vestuário, higiene e acompanhamento escolar eram insatisfatórios. Não só isso. O comportamento de Verônica de reagir por meio de agressões pe- sadas (físicas e verbais) estava muito naturalizado.

Aparentemente, Verônica – tendo sempre vivido ela própria em ambiente familiar e social desestruturado – parecia não dispor de melhores recursos para conter a confusão em que as meninas a envolviam promovendo, como de fato se observava, um turbilhão de atitudes impulsivas (agitação constante, comportamentos inapropriados para o ambiente, demandas inoportunas para o momento etc.) que, apesar de normais em crianças, destacavam-se pelo altíssimo grau de intensidade e reiteração. Era patente que as crianças enfrentavam problemas tanto de limites comportamentais como de ansiedade e frustração.

As reações de Verônica diante da desordem geral eram ora um tapa, ora um grito, ora um xingamento, ora a concessão total do que lhe pediam, ora parcial, ora a patética tentativa de ignorar – até explodir. Tudo na base da impulsividade. Suas decisões (e quem tem filhos se vê obrigado a tomá-las a cada instante) não seguiam qualquer padrão constante. Reinava a mais ampla arbitrariedade, de modo que as meninas tinham como previsível com relação à mãe apenas uma coisa: haviam de temê-la, pois ficava nervosa de repente (aparentemente sem razão) e empregava brutalidade em suas reações.

A mais magoada com a mãe era a mais velha, Natasha, de 8 anos. Ressentia-se das surras violentas, dos xingamentos pesados, da falta de comida. Parecia sentir também, por dentro, que sua mãe lhe devia so- bretudo mais carinho, mais afeição. De fato, conhecia da mãe, até então, apenas a face hostil. Verônica era ex- tremamente rude com Natasha, e não lhe dava demons- trações de afeto visíveis. Em Natasha, as mágoas da hos- tilidade sofrida estavam se transformando em rancor, de modo que a inimizade tornara-se mútua, como se a mãe e a pequena filha não se gostassem. Verônica ad- mitia que não sabia manifestar carinho às filhas, e que perdia a paciência frequentemente:

“Até hoje dá para contar nos dedos as vezes que eu abracei a minha filha. Eu nunca tive isso; aí quer dizer: pra mim fazer isso é complicado, entendeu? Vai fazendo uma bola, tudo pra uma pessoa só. Eu acho que não dá, acho que fica muita coisa, e pra mim ficou muita coisa, porque eram elas, eu tinha que trabalhar, faltavam as coisas em casa, eu não tinha como trabalhar porque não tinha quem olhasse elas.

Aí elas falavam qualquer coisa, eu: ‘QUÊ!?!’. Não é que nem agora: ‘fala, filha…’ Antes não: ‘QUÊ!?, NÃO ME ENCHE O SACO NÃO!!VAI TOMAR NO… ! SAI DAQUI!”, Eu era bem por aí. Quando eu falava, tava brigando com minhas filhas. Os outros começavam a ficar muito legal comigo, eu perguntava ‘VOCÊ QUER O QUÊ??’. Eu era curta e grossa. Quando as meninas vi- nham muito boazinhas, me beijavam, eu: ‘NÃO TENHO DINHEIRO NÃO, SAI FORA!’, bem assim. Minhas filhas tinham medo de me abraçar e me dar um beijo.”

A mais nova, Miúsha, de 6 anos, era mais doce (menos exteriormente ressentida), até porque não tinha estrutura para mais nada senão ser vítima passiva da situação de desestrutura familiar. Uma menininha muito judiada, muito carente, mas que conseguia sorrir e sonhar em sua inocência de criança.

Ora, era urgente reverter esse estado de coisas, até para evitar que Verônica perdesse a guarda das meninas.

O problema é que andava tão atrapalhada em sua vida, tão atolada em dificuldades, que não conseguia dar consistência ao processo de reversão. Faltava aos atendimentos, não persistia nos encaminhamentos indicados, e apresentava muita resistência ao acompanhamento.

Exemplo disso foi um dia em que Melissa foi procurar Verônica em casa para tentar convencê-la a retomar o atendimento, depois de largo tempo de ausência sem dar notícia. Nessa época Verônica vinha tendo problemas com o Conselho Tutelar por conta do uso de maconha.

– VOCÊ TÁ VINDO AQUI FAZER O QUÊ!? – gritou Verônica já de dentro de casa para Melissa, mal esta se aproximara – Você quer que eu saia da minha casa? Eu não quero sair da minha casa! Eu estou bem dentro da minha casa! Eu não estou enchendo o saco de ninguém! O que eu faço, o que eu deixo de fazer é problema meu! Se eu fumo maconha o problema é meu! Eu estou estra- gando o meu pulmão, não o dos outros! – e continuou soltando os cachorros, com xingamentos pessoais e tudo. Claro que a visita da psicóloga não tinha nada que ver com aquilo, mas Verônica, muito estressada, associou sua vinda às pressões que vinha sofrendo.

Enfim, o episódio foi superado com um pedido de desculpas de Verônica, que soube reconhecer que estivera exaltada mais do que o de costume naquele dia, e o acolhimento da técnica, que compreendia claramente o contexto vivido pela usuária. O acompanhamento foi retomado e o caso começou a evoluir positivamente, principalmente nos atendimentos pessoais, onde Verônica cada vez mais tomava consciência de si mesma e de sua situação. As meninas também tinham adquirido um apego muito grande por Melissa, adoravam a hora de ir para o Centro, e demonstravam se sentir mais protegidas emocionalmente.

Entretanto, tudo empacava na hora de Verônica seguir os encaminhamentos, dentre os quais os mais importantes eram psicoterapia para as três no ambulatório de Saúde Mental, reingresso e acompanhamento das meninas na escola e tratamento de fonoaudiólogo para Miúsha, que apresentava problemas na fala, além de um diagnóstico sobre uma questão de saúde de Verônica que a deixava muito ansiosa. Ela sentia muito desgaste em resolver estas questões objetivas, e acabava desistindo. Conforme não cumpria os encaminhamentos, também ia faltando aos atendimentos. E assim, uma “resistência final” ao acompanhamento acabou superando de novo a vontade de mudar, e Verônica o abandonou novamente.

De qualquer modo, àquela altura sua resistência ainda resultava na permanência da situação de risco de violação dos direitos das crianças, e o Centro, depois de seguidas tentativas infrutíferas de trazer Verônica de volta ao atendimento (incluindo visitas domiciliares), notificou o Conselho Tutelar de seu não comparecimento.

A conselheira que tomava conta do caso de Verônica foi então novamente até ela, advertiu-a das questões da lei, especialmente do ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente), que prevê inclusive a perda da guarda das crianças no caso de não solução para os maus-tratos.

Depois dessa chamada, Verônica juntou forças e voltou ao acompanhamento no Centro. Foi nesse período que emergiu mais claramente para a usuária a consciência de que ela reproduzia com as filhas a mesma falta de afeto que havia sofrido enquanto criança. De fato, ela própria tivera uma vida marcada por uma criação sem cuidados, sem limites, tendo sofrido muita violência e negligência.

Afinal, quem era esta mãe que submetia as filhas a maus-tratos?

Bem, é impossível reproduzir aqui uma biografia de Verônica de modo sistemático; isto requereria um livro específico. Limitaremo-nos, aqui, a alguns detalhes selecionados.

Descendente de imigrantes romenos (ciganos) e migrantes nordestinos, essa aquariana da periferia de São Paulo nasceu em 1977. Cita como referências musicais Janis Joplin, The Doors, Metallica, Iron Maiden, Raul Seixas, Zé Ramalho, Alceu Valença… ou seja: uma autêntica roqueira, mas que também gosta de samba, como por exemplo Jorge Aragão, Martinho da Vila e Zeca Pagodinho, além de muitas outras coisas, como Racionais MC ou Kenny G. Mora no subúrbio, onde a preferência atual é pelo chamado “funk” (carioca), mas não aprova as letras e já aderira mesmo ao rock principalmente anos 70, que na sua época de adolescência – anos 90 – passava por um reavivamento. Já aos 14 anos frequentava o agito do mais alternativo salão de rock da região, onde viveu suas baladas mais alucinantes.

Claro que sua vida tem passagens legais e divertidas para contar, muitas aliás. Verônica – por estranho que possa parecer – é uma pessoa de trato muito agradável, muito meiga, simples, e ao mesmo tempo muito experimentada, daquelas com quem se pode conversar por horas sem se cansar, e causos é o que não lhe faltam. Mas nos atentaremos aqui aos mais penosos, que apontam para a hipótese de que o caso de Verônica é o típico exemplo da vítima de maus-tratos (negligência, violência) que acaba reproduzindo esse comportamento.

Sua vida foi difícil desde o nascimento. Verônica foi a segunda gravidez de sua mãe (que viria a ter 6 filhos no total). Porém seu pai, que havia aceitado o primogênito da esposa, rejeitou esta segunda criança, por suspeita de adultério:

“Quando minha mãe ficou grávida de mim, ele não me aceitou. Ele queria só o meu irmão. Ele não aceitou eu. Só que o meu irmão, ele não é filho do meu pai… o meu irmão é filho de outro homem. Meu pai sabia disso. Mas o amor pela minha mãe era tão grande, que ele preferiu ficar cego do que assumir isso. Aí, quando ela ficou grávida de mim, aí ele não quis, por ser menina e ser negra. Que eu não sei aonde que eu sou negra, né?, mas… o primeiro filho era louro dos olhos claros. Puxou meu avô: o meu bisavô também era loiro dos olhos claros. Ele é a cara do meu bisavô, esse meu irmão mais velho. E meu pai tinha raiva só de mim, porque a única filha morena dele era eu (porque ele também tinha mais filhos com outra mulher, que são mais velhos do que eu). E me contaram até que, quando minha mãe me teve, o Conselho Tutelar ia me buscar no hospital, porque minha mãe ia me largar lá, a mando do meu pai. E só não foram me buscar porque esses meus tios – que são os meus pais adotivos – não deixaram; também porque minha avó tomou a frente; se minha avó não tivesse tomado a frente, eu teria ido para um abrigo. Então, eu não tive esse amor paterno, eu tive rejeição.”

Verônica foi então entregue para ser criada pe- los tios-avós. Mesmo que isso implique alguma coni- vência de sua mãe, Verônica justifica-a pela influência negativa do pai:

“Eu não sei se eu faço isso para apagar a mágoa que eu sinto dela, entendeu?, mas eu acho que, na mão do meu pai, minha mãe sofreu muito, muito, muito. Minha mãe chegou ao ponto de pegar um negócio, uma tábua de carne, e quebrar na cabeça do meu pai. Ele queria ba- ter nela grávida de mim. Meu pai era matador de alu- guel. Daí minha mãe fala que ela sofreu muito, passou fome, que ele não queria nada com nada, andava com más companhias, e tinha um ciúmes doentio. Meu pai foi meio da pá virada. Por ela passar muita necessidade com o meu pai, os tios dela – os meus pais adotivos – pegaram eu pra criar.”

Verônica mal se lembra da fisionomia de seu pai, que morreu quando ela tinha 2 anos de idade. Já nessa época sua mãe conheceu outro homem, com quem partiria pouco depois para Pernambuco e se casaria. O detalhe é que esse novo homem – que Verônica chama até hoje de padrasto – também a rejeitou acintosamente, impondo à mãe a seguinte condição para a união: que o casal não levasse consigo aquela filha da antiga relação, mantendo-a como estava, sob o cuidado dos tios:

“Aí o meu padrasto conheceu a minha mãe. Meu padrasto simplesmente falou: ‘Ou eu, ou ela!’. Eu já morava com os meus pais adotivos. Aí o meu padrasto levou minha mãe pra Pernambuco. Eu nunca gostei do meu padrasto, porque eu cresci com a história de que meu padrasto fez a minha mãe escolher entre eu e ele.”

Verônica comenta na passagem abaixo sobre a carência provocada pela partida da mãe, que deixava para trás uma criança de dois anos de idade:

“Aí o que foi acontecendo: eu fui crescendo, a minha mãe de criação foi conversando muito comigo, as minhas professoras conversavam muito comigo… Porque era dia das mães, eu dava presente pras minhas professoras, que eu falava ‘eu não tenho mãe, eu vou dar pra quem?’, aí eu fazia dois presentes: um pra dar pra professora, um pra dar pra minha tia, que era minha mãe de criação. Pra minha mãe mesmo até tinha, que era cartinha que eu fazia pra ela…”

Porém, Verônica nunca chegou a entregar-lhe as cartas. Quando atingiu a idade de 7 anos, sofreu uma grande decepção com sua mãe:

“Nesse meio tempo, eu fui crescendo, crescendo. Com 7 anos a minha tia me levou pra Pernambuco pra conhecer a minha mãe. Eu fiquei toda feliz, porque ia conhecer a minha mãe! Aí a gente foi lá pro Rio Grande do Norte – minha mãe estava lá nessa época, lá em Natal. Aí eu lembro que a gente ficou lá uns 15 dias, ficou um bom tempinho lá. Nesses 15 dias que eu fiquei lá… eu não vi a cara da minha mãe.

Minha mãe simplesmente sumiu. Evaporou. Ela estava… voltei pra S. Paulo decepcionadíssima porque eu só vi meu padrasto, e eu nunca gostei do meu padrasto.”

Além disso, sua criação na casa dos tios-avós não ia bem, apresentando uma série de problemas estruturais:

“Aconteceu muita coisa… por exemplo, minha tia chegou a me colocar pra pedir esmola, falava que era presente que os outros iam me dar. Falava: ‘Ah, vai ali na casa da tia, aí você pergunta pra tia do seu presente, ou fala que você tá com fome’. E eu fazia. Ela colocava eu pra pedir esmola sem ter precisão, porque graças a Deus eu sempre cresci numa casa cheia de fartura, comida, roupa, tudo, só que eram coisas que eu não usufruía. Eu usufruía da comida do básico que ela fazia, que as coisas boas mesmo – bolacha, danone, essas coisas que criança adora – eu não usufruía, a não ser quando ela estava em casa.”

Afora isso, sofria recorrentes tentativas de abuso sexual, cometidas por homens ligados ou mesmo pertencentes à família (jamais seu pai adotivo, que fique claro), o que parece repetir certo padrão familiar (mesmo social, como se sabe):

“No meu caso não chegou a ter abuso, foram tentativas. Acho que eu tinha o quê?, uns 6 anos, 6-7 anos, a idade da Miúsha. Outra, eu tinha meus 12, 13 anos; eu já sabia diferenciar. Eu tenho isso que aconteceu comigo. Eu sei que minha mãe tem uma história parecida. Fora da família, eu já apanhei na cara por causa disso, de não querer fazer nada com ninguém.

De consequência do contato com essa malícia, gerou que eu conheci o sexo mais cedo do que era pra mim conhecer. Bem mais cedo do que era pra mim conhecer. Perdi minha virgindade com 14 anos. E outra coisa, que acho que foi bom pra mim, é que eu aprendi a conhecer tudo mais cedo, aprendi a me colocar no meu lugar. Eu dava limite pras pessoas, principalmente pra homens. Eu não deixava passar daquele limite. Foi com os homens que eu conheci… eu me sentia só um objeto sexual. Mais nada.”

Finalmente, aos 14 anos, o esperado reencontro de Verônica com sua mãe biológica aconteceu, mas não exatamente da forma esperada pela filha:

“Aí minha mãe, quando eu fiz catorze anos, a mi nha mãe veio pra São Paulo, veio morar em São Paulo com o meu padrasto. Nossa! eu me senti a mulher mais feliz do mundo! O que eu mais queria era conhecer minha mãe… eu só conhecia ela por foto.

Eu queria morar com minha mãe. Eu me arrependo amargamente disso que eu fiz: a minha mãe de criação estava trabalhando, ela estava limpando a casa, que ela cuidava de mim e da filha dela mais velha também…

A minha mãe chegou, na hora eu desci correndo, comecei a arrumar minhas coisas. Eu nem perguntei ‘Mãe, posso vir morar com você?’. Pelo contrário, eu já cheguei entrando de mala e cuia: ‘Mãe, cheguei!’. Ela parou ainda, sabe?

Eu vi, cumprimentei ela, fiquei feliz, tudo, aí no mesmo dia eu arrumei as coisas pra subir, que era nessa casa aqui embaixo. Aí a hora que eu cheguei, eu lembro como se fosse hoje:

‘OI MÃE, OI RONALDO! EU VIM MORAR COM VOCÊS! Agora que minha mãe tá aqui, eu vou morar com MINHA mãe, Ronaldo!’

Aí deu aquele baque nela. Ela olhou pra cara do Ronaldo, o Ronaldo olhou pra cara dela, aí o meu olho já encheu de lágrima…

‘Tá bom, filha, pode ficar.’

Mas eu fiquei triste porque a relutância dela de falar ‘pode ficar’, sabe? Aquilo me marcou, aquilo me doeu bastante. E tanto… que nem eu falei pra ela: quando eu cumprimentei ela e quando meu irmão cumprimentou ela, eu contei no relógio: ela ficou meia hora abraçada com meu irmão, ela até chorou quando viu o meu irmão [o primogênito de sua mãe] . E eu não. Mas mesmo assim, eu estava tão empolgada por ela ter voltado, eu tava tão feliz… ‘Agora eu tenho a minha mãe!, a minha mãe que me fez, que me pariu, minha mãe de verdade, não é mãe de mentirinha!”, que eu nem tchuns… Se arrependimento matasse… eu não teria voltado pra casa dela. Eu fiz o que o meu coração mandou, mas eu magoei muita pessoa por causa disso, muitas pessoas que gostavam de mim de verdade.

Eu comi o pão que o diabo amassou com o Ronaldo. Só Deus sabe. Eu simplesmente coloquei minhas malas no chão e falei ‘daqui ninguém me tira’. Eu quero morar com a minha mãe e eu vou!”

Até chegaram a passar um ano vivendo sob o mesmo teto – mas num clima infernal. Os relatos abaixo são exemplo:

“Teve época que meu padrasto chegou a pegar dois mil reais em notinhas e queimar… Com isso ele queria dizer que ele tinha.

Ele ficou assim tão bravo porque ele ia fazer outra coisa com o dinheiro, ia comprar um negócio pra ela, pra fazer surpresa. Aí o dinheiro estava no guarda-roupa, ela mexeu. Aí ele não gostou. Ele queimou 2 mil reais na minha frente, na frente da minha mãe.

Uma vez ele deu um tapão na cara da minha mãe, eu levantei da cama; ele tinha um revólver dentro do guarda-roupa dele, aí eu catei o revólver. Aí eu ia matar ele, mas minha mãe não deixou. Eu olhei pra cara dele e falei assim:

‘Você não tirou ela da zona! Ela é minha mãe, você não vai bater na cara dela!’

Só que ela estava errada, eu sei que ela estava errada. Só que eu nunca ia dar o braço a torcer pro Ronaldo, né? Afinal de contas, eu não gostava dele, eu ia defender ele? Aí eu fiquei a favor dela, tanto que uma semana depois ele vendeu o revólver. Eu ia matar ele. Na porta da minha mãe acho que tem ainda a marca de um facão, assim, que eu taquei nele.”

Até que finalmente, no dia de seu aniversário de 15 anos, ocorreu o episódio que determinou o rompimento daquele frágil vínculo familiar. Como sempre, a corda arrebentou para o lado mais fraco:

“Eu não vou falar pra você que eu fui santa. Eu, do meu jeito, eu tentei me vingar do meu padrasto: eu respondia a ele, eu não obedecia a ele; ele falava as coisas pra mim, eu: ‘É, ó a minha cara de preocupada!..’

Aí ele me mandou embora com 15 anos.

No dia do meu aniversário, minha mãe tinha me prometido uma festa de 15 anos, que toda a menina sonha. Nesse dia, em vez da festa, briguei com meu pdrasto, teve muita encrenca, chamei a policia pra ele naquele dia, que ele me deu um murro que eu fui parar do outro lado do sofá – só porque eu falei que ele era corno. Eu falei ‘Se a gente fala a verdade vocês brigam, se a gente fala mentira vocês brigam também!’

Aí aconteceu tudo isso no dia do meu aniversário. Eu ia fazer 15 anos. Minha mãe falou que ia procurar colégio interno pra mim. Aí aquilo me revoltou, catei as roupas que tavam no tanque, saí pisando em cima, falei que eu não ia fazer mais nada, que eu ia fazer jus ao nome que ele me chamava, de vagabunda: ‘Então eu vou ser vagabunda mesmo!’. Ele me chamava de ‘vagabunda’ no sentido de não querer fazer as coisas, não querer serviço, nesse ponto; só que eu fazia, eu não era vagabunda. Como ele falou que eu era vagabunda, aí eu levantava de manhã e voltava pra casa só à noite. Eu não lavava um copo: ‘Agora você pode me chamar de vagabunda, porque agora eu sou vagabunda. Fiz jus ao que você está falando, pelo menos você não vai sair como mentiroso’. Só que ele não gostou, que ele falou que eu era muito cínica. Falei:

‘Pois é, eu não mudei nada, eu sou filha da sua esposa; filho de peixe, peixinho tem que ser’.

Então eu saí da casa da minha mãe aqui com 15 anos. Eu fui expulsa. Fui embora, conheci o crack, foi a pior época da minha vida.”

Verônica foi morar junto com uma tia em Itaquera, e descambou para as drogas e prostituição:

“Eu comecei a usar crack quando o meu padrasto me expulsou de casa. Aí eu conheci o crack, me prostituí. Trabalhei no puteiro. Essa época eu não morava aqui, eu morava em Itaquera, junto com uma outra tia minha. Meu primeiro emprego quem arrumou pra mim foi ela, num puteiro. E foi pra poder dar dinheiro pra ela, porque ela jogava na minha cara um prato de comida que eu comia. Aí pra pagar ela, toda a semana eu dava 100- 200 reais pra ela, tava bom. Só que eu não consegui ficar muito tempo nesse emprego. Eu fiquei acho que uns três meses trabalhando nessa boate lá na Penha. Aí toda a vez que ela pegava o jornal amarelinho eu saía de perto dela, porque ela ia procurar emprego de puta pra mim. E eu falei pra minha mãe que tava tomando conta de criança, de uns nenezinho: minha mãe não acreditou, sabia que eu não tinha paciência nenhuma com criança, e eu ia trabalhar de babá? Minha mãe fingiu que acreditou. Aí eu falei pra ela: “Essa era uma época que eu precisei da senhora e a senhora não me ajudou”.

Sobre o estigma da prostituição, assim comentou Verônica:

“Até hoje eu sou apontada por causa disso. É que nem eu penso (do que eu vi, que não foi só em um lugar que eu trabalhei). Mas foram lugares bons, eu só trabalhei em casa de luxo, nunca trabalhei na rua, beira de estrada. Você tem que ir no médico, fazer tratamento, tudo direitinho, mais rigoroso); eu fiquei um ano certinho – 365 dias – sem me olhar no espelho. Eu não tinha coragem de me olhar no espelho. Eu tinha nojo de mim. Tanto pro homem quanto pra mulher, a pior coisa que tem é você se deitar com uma pessoa que você não sabe nada, não conhece, não tá sentindo nada. É horrível.

É horrível, mas eu também aprendi muito com elas. Porque tem as prostitutas e as garotas de programa. Eu não era prostituta, eu era garota de programa. Elas estavam ali porque elas precisavam; muitas estavam ali porque elas gostavam; a maioria que eu conheci não, elas não gostavam mas elas estavam ali. Por quê? É dinheiro mais fácil, não tem burocracia, você vai se você quiser, você faz o seu dia (se você quiser fazer você faz, se não quiser fazer você não faz), então bem ou mal é uma coisa mais prática. É só você saber como gastar o dinheiro depois, porque tudo o que vem fácil vai fácil. Mas aí sinceramente é difícil, dependendo da pessoa acho que ela não aguenta não. Ai… eu não tenho palavras pra te explicar o que eu sentia. Ao mesmo tempo que eu sabia que tava me ajudando eu não queria estar ali.”

Aos 18 anos, após uma tentativa-relâmpago de viver novamente na casa de sua mãe, Verônica viveu a difícil experiência de passar um mês morando na rua:

“Com 18 anos eu voltei a morar com minha mãe, depois que ela descobriu que eu tava no puteiro; ela fez, acabei voltando. Morei uma semana, briguei com meu padrasto de novo, aí morei na rua. Ele me mandou embora. Fiquei um mês na rua, de dia eu andava, de noite procurava lugar pra dormir, até que eu fui trabalhar no puteiro de novo, que aí eu podia dormir, comer, né? Eu não ia ficar na rua.

Nesse tempo, eu acho que estava bem mais revoltada que triste. Naquela época eu fui atrás de revólver pra matar meu padrasto. Se eu tivesse conseguido, eu matava.”

Verônica se afundou no crack a partir dos 21 anos. Uma época sombria, que duraria 5 anos de sua vida. Por outro lado, conseguiu nesse tempo deixar a prostituição, embora passando para outro ilícito – o jogo do bicho, que também lhe trazia problemas, especialmente das duras que levava da polícia, chegando a apanhar na cara.

Felizmente, quando fez 26 anos, foi presenteada com o nascimento de sua primeira filha, Natasha, que lhe deu novo sentido à vida e uma razão para sair do fundo do poço. Verônica conseguiu então realizar a proeza de largar o crack:

“Fiquei 5 anos da minha vida usando crack, eu fiquei só o pó da rabiola. Passava noites e noites acordada, era uma semana direto. Eu não comprava de cápsula, eu comprava de grama, entendeu?

Tem 8 anos que eu parei de usar crack. Pra mim isso daí foi uma grande vitória. A melhor coisa que aconteceu na minha vida foi eu ter ficado grávida da Natasha, que foi o que me deu forças pra eu parar. Minha tia também me ajudou muito.”

Dois anos depois nasceu-lhe Miúsha. Das duas irmãzinhas Verônica foi mãe solteira, até que conheceu seu atual companheiro:

“Eu me sentia um objeto para os homens, até eu conhecer meu atual marido. Vai fazer 7 anos que a gente junto. Ele fez eu me sentir mulher, amada, querida.

Porque o pai da Miúsha, o pai dela fez, prometeu mundos e fundos pra mim, e quando eu falei que estava grávida ele simplesmente veio me dar dinheiro e falou ‘tira ela, aborta’. Eu me senti um lixo. Eu não fiz o que ele falou. Por isso que hoje em dia ele me trata do jeito que ele me trata. Nem aqui ele vem, ele não vê a filha dele. Ele fez aniversário ontem, junto com ela – ela nasceu no dia do aniversário dele…

O meu marido fez o papel de pai pra elas. Porque antes de eu conhecer ele, quem era pai e mãe era eu. Eu sempre fui pai e mãe delas.

Fez bastante falta um pai, bastante. Sempre faz falta um homem na família. Hoje mesmo ela estava querendo chorar com saudade do pai dela. Eu tentei telefonar pra ele anteontem, ele nem me atendeu no telefone.”

Três anos depois de Miúsha, nasceu sua terceira filha, aquela nenê de colo com a qual apareceu no Centro de Assistência pela primeira vez. Nessa época, como vimos, Verônica era pressionada pelo Conselho Tutelar a parar os maus-tratos às suas filhas, principalmente na forma de negligência.

No Centro, além das medidas puramente assistenciais (essenciais, diga-se de passagem) que foram tomadas em favor de Verônica – como inclusão em programas como Bolsa-Família e Renda Cidadã – demandava-se junto a outros órgãos públicos que lhe fosse prestada assistência médica (tanto de saúde física como mental), especialmente acompanhamento psicoterápico de longo prazo junto à mãe, para que se pudesse trabalhar com calma aspectos estruturais de sua afetividade.

Ainda assim, os atendimentos pessoais do Centro de Assistência Social conseguiam, por si só, surtir efeitos positivos em ajudar Verônica a entrar em contato com suas mágoas e superá-las, com conscientização:

“A Melissa foi fazendo eu cair em si. A minha vida era ficar dentro de casa trancada; eu não falava com ninguém. Quando eu falava tava brigando com minhas filhas, brigando com meu marido. Aí eu fui parando, de pouquinho em pouquinho. Graças a ela eu tive coragem de enfrentar a vida. Eu comecei a me abrir pra vida. A tentar pelo menos deixar os outros chegar perto de mim, me ajudar. Acho que eu comecei a admitir que eu precisava de ajuda. A Melissa me ajudou, ela fez eu admitir os meus problemas, conseguiu fazer eu colocar pra fora tudo o que eu queria falar, tudo o que eu sentia.

E a Melissa fez eu acordar pra vida, pra quê: que eu tava tratando as minhas filhas que nem a minha mãe me tratou. Aí no meu subconsciente, lá no fundo, quando eu botei a cabeça no travesseiro, pensando nas coisas que ela falava comigo, pra mim, no meu subconsciente eu tava fazendo a mesma coisa com minhas filhas que minha mãe tava fazendo comigo. Eu não quero que minhas filhas amanhã sejam eu hoje, ou eu ontem – porque eu acho que hoje eu tô bem melhor do que ontem. A Melissa fez eu acordar que minhas filhas me veem como um espelho, então quer dizer: pra eu mudar elas, eu tenho que mudar eu.”

Inclusive, quando perguntada sobre qual foi o momento decisivo para iniciar sua “reação” contra a fragmentação pessoal e familiar, Verônica cita um episódio passado no Centro de Assistência Social:

“Foi o dia que eu tava lá no Centro, conversando com a Melissa. Eu tava chorando, a minha filha Natasha veio, me abraçou:

‘– Mãe, eu te perdoo, tá?’

E ela tava com a perna toda roxa: um dia antes eu tinha dado uma surra nela não me lembro por quê; e sabe de uma coisa: eu não tenho a mínima ideia; sei que eu tava nervosa e lasquei a surra na minha filha. Sei que aquilo eu desabei em prantos. Foi nesse dia. Nesse dia que eu comecei a acreditar mais em mim, que eu ainda tinha chance de recuperar o amor das minhas filhas.”

Infelizmente, não houve mais tempo para reações lentas e progressivas. Quando Verônica estava enfim se encaminhando para o tratamento psicoterápico de fato, no ambulatório de Saúde Mental, chegou ao Conselho Tutelar uma denúncia de que ela estaria fumando maconha na frente das crianças. Foi a gota d’água.

A conselheira que acompanhava o caso foi averiguar a situação, acompanhada de uma assistente. Chegando lá, deparou-se com Verônica segurando um cigarro de maconha na mão, ainda apagado.

Verônica estava sentada no sofá de sua sala quando viu a conselheira parada na porta. Ficou atônita, sem saber o que fazer.

– Oi Verônica, posso entrar?

– Pode…

– Esta é a minha assistente.

– Oi.

– Posso olhar o quarto das meninas?

Quando a conselheira entrou no quarto, Verônica aproveitou para depositar discretamente o baseado num canto do sofá.

– Verônica, vem aqui que eu quero falar com você – chamou-lhe a conselheira. Verônica foi, e ouviu:

– É, o quarto está bem arrumado… Agora, você acha que está certo o que você está fazendo?

Referia-se à maconha. Verônica, sem querer se comprometer, não lhe respondeu nada. Enquanto isso, a assistente da conselheira aproveitava, na sala, para fotografar o cigarro de maconha no sofá como “prova”.

– Vou precisar falar com a sua mãe. – disse a conselheira – Onde é a casa dela?

– É aqui – apontou Verônica da própria janela do quarto, pois sua mãe morava na casa contígua mais abaixo, no mesmo terreno.

A conselheira desceu sem consentir que Verônica a acompanhasse, alegando que precisava falar com sua mãe em particular. Nesse momento Verônica pressentiu o que aconteceria; começou a chorar de agonia, certa do pior. Ao mesmo tempo, tentava se agarrar à esperança de que a conselheira iria lhe dar outra chance.

Enfim a conselheira voltou, depois de conversar com sua mãe e uma irmã que morava próximo:

–Você já sabe o que aconteceu, né?

– Não, você ainda não me contou! – respondeu-lhe Verônica, mirando-a fixamente com olhar cínico, mas no fundo lacrimoso.

– Você sabe que eu vou levar as meninas… Verônica emudeceu.

– Só que é provisoriamente, você não está perdendo a guarda total…

A conselheira passou a lhe explicar a situação, mas Verônica desatou o nó na garganta e se pôs a chorar. E só sabia chorar, desesperadamente. Sua irmã veio consolá-la, abraçando-lhe e pedindo calma.

– ME DEIXA CHORAR! – repeliu-a Verônica.

– Filha… – disse-lhe a conselheira – eu não vou lhe falar nada agora, que eu sei que você está com raiva de mim. Mas saiba que um dia você ainda vai me agradecer. Eu também não fico feliz com o que eu estou sendo obrigada a fazer; eu também sou mãe, e sei o que você está sentindo.

– SERÁ QUE VOCÊ SABE MESMO!?! – Retrucou Verônica, e entrou para o quarto.

– Bom, eu preciso que alguém arrume a roupa das meninas pra eu levar… – pediu a conselheira.

– EU NÃO VOU ARRUMAR NADA!! VOCÊS QUEREM LEVAR MINHAS FILHAS, VOCÊS ARRUMAM!!! – gritou do quarto Verônica.

Puseram-se a arrumar, enquanto a irmã de Verônica tentava novamente consolá-la:

– Calma, eu vou ficar com a Natasha, eu vou levar a Natasha pra minha casa.

Nisso Verônica entrou em desespero total:

– E A MIÚSHA E A BEBÊ?? AS MENINAS VÃO PRO ABRIGO!!! MINHAS FILHAS VÃO PRO ABRIGO!!! O QUE QUE EU VOU FAZER!?? O QUE QUE EU VOU FAZER!???

Foram então até a sogra de Verônica para ver a possibilidade de ela ficar provisoriamente com as meninas. Voltaram com a notícia de que sim, a sogra aceitava ficar com as duas, o que acalmou um pouco Verônica. Enfim arrumaram tudo e colocaram as crianças no carro da conselheira para partir. Foi o momento mais duro para Verônica:

“Na hora que elas saíram eu não fiquei perto. Eu não consegui ficar perto. Aí a hora que eu vi o barulho do carro, aí eu saí, pra ver as minhas filhas indo embora. A hora que eu vi elas entrando no carro, eu… acabou a Verônica ali, sabe?”

Os dias seguintes à retirada foram de um remorso desesperado:

“Os 15 primeiros dias que eu fiquei aqui na minha casa sem elas, foi difícil. Eu não ficava aqui. Eu não conseguia ficar aqui. Eu fiquei quase uma semana sem comer, sem conseguir dormir, fumei muito, foi aí que eu fumei mais, fumei, fumei mesmo. Eu dormia, eu acalmava. Todo canto aqui – já começa por ali: do jeito que era, ficou. Do jeito que elas deixaram, eu deixei. Eu não modifiquei nada.

Me culpei bastante. Eu me culpei porque eu me culpei no modo de o seguinte: de amanhã ou depois eu querer dar uma moral pra elas e eu não vou poder. Que moral que eu tenho pra falar de moral com as minhas filhas? Se eu não tivesse feito o que eu fiz, elas não sairiam de perto de mim. Eu acho que o sentimento de culpa é pior do que o sentimento de desprezo. Eu acho que o de culpa dói mais que o de desprezo. Você se volta contra você. Nossa, eu dei tanta cabeçada na parede, comecei a bater em mim mesmo, o meu marido ‘calma, calma’, eu já ia pra cima dele. Comecei a bater mesmo: ‘eu sou uma burra, eu sou uma burra, eu sou uma idiota!’, chorando; quebrei a minha panela de pressão, taquei no chão – que esse era o meu mal, entendeu, eu pegava e quebrava as coisas. Quebrei um monte de copo, joguei um monte de coisa fora, aí depois que eu fui acostumando com a ideia, eu fui me colocando no meu lugar, e que eu pensei: ‘não, se eu continuar assim vai ser pior’, que eles me deram prazo de 6 meses a um ano pra eu recuperar elas, dependendo das condições.’

Com tudo isso, Verônica ainda teve entendimento e resignação suficientes para extrair, dessa que foi sua pior experiência, o lado positivo:

“Esse momento acho que foi o pior momento da minha vida. Esse momento, além de ser o pior da minha vida, foi o melhor, que foi ali naquele momento que eu aprendi a me conhecer e conhecer as minhas filhas. No dia que elas foram embora, foi aí que eu acordei.”

Passado o choque inicial, Verônica pôs-se de pé e partiu numa carreira desesperada pela recuperação de suas filhas. Convencida de que o flagra da maconha fora determinante para a retirada das meninas, e disposta a fazer de tudo para retomá-las o mais rápido possível, apareceu no Centro de Assistência com a ideia pronta de que tinha de ser internada numa clínica para tratamento de drogadição, pois assim o juiz iria ver o seu esforço de recuperação e devolver suas filhas mais cedo. Antes já tentara no próprio ambulatório de saúde, dizendo simplesmente “Eu vim aqui pra internação! Vocês precisam me internar!” – mas obviamente não fora atendida como queria.

A psicóloga Melissa, que continuava acompanhando o caso, explicou-lhe então que não era bem assim que funcionava a coisa, que ela precisaria iniciar a psicoterapia para ser avaliada a necessidade de internação e, principalmente, para poder trabalhar as causas do uso da maconha, dos maus-tratos das filhas, entre tantas outras questões.

Devidamente orientada, Verônica desistiu da ideia de “se internar”. Passou a seguir todos os encaminhamentos conforme o indicado, e não faltou mais aos atendimentos. Teve também a grandeza de reconhecer pessoalmente o papel da conselheira tutelar, que lhe ajudara a despertar por meio do choque dado pela retirada das filhas:

“Aí eu fui, conversei com a conselheira, e eu agradeci a conselheira por ela ter tirado minhas filhas de mim. Aí ela ficou de mandar um papel pro fórum, pedindo a resposta pra eles, pra ver quando que elas podem voltar pra casa, que ela falou que provavelmente eles vão deixar voltar, porque eu matriculei, fiz tudo direitinho. Eu não perdi oficialmente, eu perdi a guarda provisória. Mas é que nem ela falou: se chegar a acontecer de novo o que aconteceu antes, aí eu perco a guarda mesmo, aí elas vão pra adoção.”

Aconteceu felizmente que Verônica conseguiu ter suas duas filhas menores de volta no prazo mínimo, enquanto a maior ficou sob a guarda da sogra, a quem, aliás, a Verônica é muito agradecida pelo apoio. Foi a sogra quem lhe disse a célebre frase:

“Pra educar as filhas, tem que educar primeiro a mãe.”

Algo certeiro no sentido daquilo que ela própria vinha se conscientizando, com auxílio do Centro de Assistência Social, bem como tentando pôr em prática:

“Eu tentei começar a remodelar minhas palavras. Ainda to precisando remodelar mais. Fui remodelando minhas palavras, minhas atitudes. As brigas dentro da minha casa foram parando. Mas aí eu tive minhas recaídas, como eu ainda tenho. Mas eu tento me segurar o máximo.

Eu to tentando mudar bastante. É difícil. Eu num vou falar que recuperei totalmente, mas eu acho que pelo menos uns 70% eu consegui recuperar. Não se muda assim dum dia pro outro. Mas eu tô tendo pessoas que tão tendo muita paciência comigo. A Melissa fez eu aprender a (como é aquelas pessoas que fazem estatua?) a me esculpir, a me remodelar. Eu acho que tô tendo bastante resultado positivo. E ainda vou ter resultados melhores. Eu aprendi a olhar pras minhas filhas com olhar de mãe. Não com olhar de ‘Ah, ela é minha filha, coloquei no mundo, agora vou dar o que comer, levar pra escola e pronto, acabou, o carinho tá dado’. Eu aprendi a elogiar elas, aprendi a fazer com elas o que não faziam comigo. Que eu acho que às vezes um bom elogio, um bom incentivo ajuda bastante.

Eu aprendi a ser mãe. Elas querem ter eu como espelho, então elas vão ter eu como espelho. Aprendi que não custa eu chegar na minha filha… eu chegar na minha filha: ‘eu te amo’. Agora eu tô conseguindo. Eu tô aprendendo, a gente aprende. Tudo que é ruim a gente aprende, não aprende? O bom também pode aprender. “

Além de parar de insultar e agredir as crianças – um decisivo avanço! –, Verônica também começou a procurar dar mais atenção em manter constância e coerência na imposição de limites. Segundo os técnicos do Centro, esse era mesmo um ponto importante a ser aperfeiçoado. Verônica enfim entendeu que era sua função colocar, sem uso de violência, limites adequados nas filhas, e não esperar que elas os adivinhassem e respeitassem por si mesmas. De fato, antes dessa conscientização, Verônica se enfurecia por suas filhas terem infringido limites dos quais sequer tinham sido avisadas, tratando-as como adultos, como se já soubessem, já tivessem de saber desses limites sem entretanto nunca tê-los recebido de alguém. Igualmente, quando queria conduzir a imposição de limites, era muitas vezes arbitrária, pois sua fúria e impulsividade faziam-na tomar atitudes descontroladas, impedindo-a de manter um padrão que constituísse um parâmetro seguro para as filhas.

Exemplo disso era a questão dos castigos desproporcionais. Isto foi discutido em atendimento (no qual, por não se tratar de psicoterapia, muitas vezes é preciso que o técnico avance mais diretamente no sentido de cobrar medidas de proteção das crianças). Melissa falou a Verônica:

– Mãe você já é. A gente vê pelo seu jeito de falar das suas filhas, que você realmente gosta das suas filhas. Agora, o que você vai fazer pra tentar se controlar e não bater?

– Não sei.

– Dá pra fazer outra coisa? algo que sirva de castigo, mas que não seja bater?

– Já sei: tirar o DVD!

Muito bem. Só que na semana seguinte lá vinha Verônica dizendo que, sempre que passava raiva com as meninas, logo gritava:

– Vocês vão ficar UM MÊS sem DVD!!! Ao que a psicóloga lhe orientou:

– Assim você não vai conseguir e é pior, porque você vai ter que voltar atrás. As meninas aprendem como é o seu jeito – que você avisou, mas não aguentou deixar elas sem o DVD por tanto tempo –, então elas vão te azucrinar de novo com essa história, e tem uma hora que você não vai aguentar e vai explodir; aí fica pior do que antes. Você não tem que ficar fazendo ameaças a toda hora; você tem que colocar uma regra simples e cumprir.

E assim foi fazendo Verônica, tentando ser mais paciente e carinhosa, mas também mais justa e sistemática em sua disciplina doméstica. O resultado de todo esse esforço começou a refletir no comportamento das meninas:

“Depois de tudo o que aconteceu, elas ficaram bem mais calmas, bem mais obedientes, bem mais carinhosas comigo. Elas não tem mais medo de chegar perto de mim e falar: ‘mãe, eu te amo’.”

Bem ilustrativo disso foi quando Verônica foi chamada à escola pela professora de Natasha. Assim que recebeu a notícia, olhou feio para a filha:

– Natasha, SE PREPARA!

– Mãe, você não vai me bater! – respondeu a menina, entre ressentida e indignada.

– Se eu vou te bater não sei: eu não sei qual é o problema…

Verônica já chegou à escola atacada. A professora foi logo perguntando:

– Mãe, o que foi que você fez?

– Por quê? O que foi que a Natasha fez? – replicou, certa de que a filha aprontara.

– Nossa, mãe, a Natasha tá um amor, tá exem- plar, tá fazendo toda a lição dela, parou de responder…

Verônica ficou boba de ouvir aquilo. A própria diretora da escola, que tivera vários atritos com ela por causa de Natasha, chamou-a para elogiar a menina, o que a deixou muito motivada, confiante no processo de recuperação:

“Aquilo me animou a continuar. a Natasha me trouxe o caderno pra eu ver. Se você ver o caderno da minha filha! gosto. Se você visse de antes e de agora… A minha outra filha também, a Miúsha. Eu tendo motivos.”

A própria Verônica parece melhor reconciliada consigo mesma e com sua história:

‘Eu sou a ovelha negra da família; eu sempre sou, sempre serei: sabe que eu não quero perder esse cargo? Não quero não; antigamente eu queria, hoje não faço questão, pelo contrário, hoje em dia estou tentando fazer diferente. Eu fico olhando tudo o que minha mãe faz comigo, mas de todos os filhos dela, a única que sempre tá ali do lado dela sou eu. E não sou igual a ela, não sou mesmo, pelo contrário. Mas o pessoal fala ‘Ah, mas você gosta tanto da sua mãe, você venera tanto a sua mãe’. Mas e aí? Até aí qual é o problema de eu gostar da minha mãe? Eu gosto, vou fazer o quê? Já tentei pegar raiva dela, mas não consigo. Não dá, não consigo. Mas eu tenho esperança de esculpir ela. Quem sabe, um dia.’

Enfim, uma história de muita adversidade, mas igualmente de muita superação, que promete um final feliz, pelo menos no que depender da disposição de Verônica:

“Todo mundo tem uma perspectiva na vida. A minha, o meu ideal agora, é dar pras minhas filhas o que eu nunca dei. Dar pras minhas filhas o que eu não tive. O mais importante é o carinho. Se eu der carinho pras minhas filhas, elas vão me retribuir com carinho, é isso que eu aprendi. Agora, se eu ficar como eu ficava antes, a socos e pancadas, gritos e berros, elas não vão me respeitar, elas vão ter medo de mim. Eu não quero que elas tenham medo de mim, eu quero que elas me respeitem.

Eu sei que… não sei se eu fui muito boa ou muito ruim, sei que Deus tá me dando uma segunda chance, e eu vou aproveitar. Meu objetivo agora é qual: recuperar a guarda das minhas filhas. Agora eu vou testar minha paciência. Agora é que são elas. A minha cara é ter paciência. Agora eu tô tendo mais do que eu tinha, mas ainda acho que não é o suficiente. Pro meu caso ainda teria que ter muito mais paciência. Eu acho que esta aqui [Verônica, grávida de sua quarta menina, aponta para seu ventre] – no caso aqui seria a minha quarta filha –, ela vai ser melhor tratada – não digo com preferência, nada disso – do que eu tratei elas. Por eu ter aprendido, porque elas são a minha vida. Enquanto eu estiver viva, o que eu puder fazer pelas minhas filhas, eu vou fazer. Se for preciso mudar para isso, eu vou mudar.”

***

Dia Agitado na Repartição [capítulo de Jogo Arriscado]

Ai, moça, disfarça que ele tá vindo!

– E agora?

– Não sei, moça, ELE VAI ME MATAR!

A agente administrativa Simone, momentaneamente sozinha na sala de recepção do Centro de Assistência Social, mal teve tempo de responder à franzina mulher à sua frente, provável vítima de violência doméstica, quando o suposto agressor adentrou o recinto.

– Por que você desligou o celular!? – perguntou o sujeito à esposa num tom ameaçador, depois de lhe tomar o telefone das mãos. Havia-a seguido até ali, desconfiado de que fosse denunciá-lo, embora ela lhe tivesse dito pouco antes, em casa, que iria sair para tirar documentos.

A psicóloga Taís, colega de Simone no Centro de Assistência Social, voltava de uma sala de atendimento e entrava na recepção.

– Espera um minutinho – disse Simone à mulher cercada pelo marido e levantou-se, no que chamou a colega Taís para uma rápida conversa particular na sala adjacente, restrita aos técnicos. Simone e Taís decidiram ligar para a psicóloga Melissa, coordenadora do Centro, que voltava de uma visita domiciliar.

– Melissa!, a mulher que você atendeu de manhã está aqui! – sussurrou-lhe Simone ao telefone – ela voltou e seu companheiro veio atrás, e parece que ele está ameaçando ela. O que a gente faz?

– Onde ela está?

– Lá na recepção.

– Tenta trazê-la para aí dentro, na sala dos técnicos, onde é mais seguro, para saber direito o que está acontecendo, qual a gravidade da situação.

– Tá bom.

Não foi, porém, preciso fazer uso do famoso “A Srª pode me acompanhar um minuto, por favor?”, pois a própria mulher colocou-se parada à porta da sala reservada aos técnicos, mal Simone desligara o telefone.

– Vai demorar muito?? – perguntou angustiada.

– Vem pra cá! – chamou-a Taís decididamente, fechando a porta assim que ela entrou.

A essa altura, os outros dois membros da equipe presentes no dia, o estagiário de psicologia Macedo e a estagiária de serviço social Jussara já haviam retornado do almoço e acompanhavam com suspeita a movimentação nervosa na sala reservada, sem contudo poderem adivinhar a complexidade da situação, e mantinham a discrição que se fazia necessária.

Simone voltou a ligar para a coordenadora.

– Melissa, ela [a mulher ameaçada] está aqui. Fala com ela!

Muito nervosa, a mulher começou a explicar por telefone a Melissa que, ao retornar ao Centro de Assistência Social, o marido a seguira e agora a estava ameaçando. E desatou a chorar.

– Estou chegando aí! – falou-lhe Melissa, a qual vinha acompanhada de um colega que, ansioso, lhe per- guntou o que iria fazer.

– Não sei – respondeu decididamente a coordenadora, apertando o passo.

Dentro do Centro, o constrangimento beirou o inadmissível quando o suposto agressor passou pela recepção e adentrou a sala em que sua esposa havia se refugiado junto à equipe. A mulher esboçou a intenção de deixar a sala e ir para junto dele, mas Taís mandou-lhe que ficasse.

– O senhor não pode entrar aqui! Retire-se, por favor – emendou a psicóloga.

– Qual é o problema de eu ficar aqui? Não é só um lugar para “tirar documento”? – questionou o cidadão, entre o ameaçador e o irônico.

A psicóloga, porém, não se intimidou, e, reiterando convictamente seus pedidos, conseguiu encaminhá-lo para fora. O homem, não sem esbravejar um bocado, se sentou no corredor de espera, num banco ao lado da porta de entrada do gabinete do Centro.

Taís voltou e a equipe se fechou na sala com a mulher dentro. Enfim Macedo e Jussara puderam entender a desconfortável situação, especialmente para a agente administrativa Simone, a qual havia sido vista pelo suposto agressor falando ao telefone, e depois ainda teve de passar por ele para ir a à sala ao lado pegar o prontuário da usuária, sob o olhar de fuzilamento do mesmo, que abanava sinistramente a cabeça como um sinal de jura.

Na sala dos técnicos, sua esposa, pálida, tremia des controladamente e chorava. Todos procuravam acalmá-la. – Vocês não estão entendendo, ELE VAI ENTRAR AQUI E VAI ME MATAR! – argumentava desesperada.

– Calma, aqui tem segurança, eu vou lá falar com eles – disse-lhe Taís, que deixou a sala, passou pelo homem sentado na entrada do gabinete e dirigiu-se brevemente, sem alarde, ao primeiro segurança do corredor, quase sussurrando sobre o atendimento delicado, ocorrendo no Centro, a uma vítima de violência doméstica que vinha seguida pelo suposto agressor, parado do lado de fora do gabinete.

A partir de então o segurança ficou por perto, de prontidão, mas sem interpelar o indivíduo, já que Taís de fato não solicitou qualquer tipo de intervenção direta nem deu maiores detalhes do caso, achando mais prudente aguardar a orientação da coordenadora, que estava para chegar.

Taís retornou à clausura da sala, onde todos estavam à espera, um tanto apreensivos com a situação, para a qual não se via desfecho claro.

Simone pegou o telefone para ligar novamente para a coordenadora Melissa.

Nesse mesmo momento, porém, a própria coordenadora entrou na sala.

Sua equipe, acuada no ambiente reduzido da sala dos técnicos, transparecia o elevado estado de apreensão. De fato, a situação era delicada: como a vítima de ameaça iria embora dali, se o potencial agressor, visivelmente zangado, a esperava na porta? Os três seguranças do Centro conteriam, decerto, qualquer tumulto interno com toda a eficácia, mas o que aconteceria da porta do Centro para fora? Como liberar a usuária numa situação de risco iminente de agressão?

O estagiário de psicologia Macedo, que permanecia na saleta junto ao restante da equipe, já cogitava ir a um posto policial próximo providenciar uma escolta. Todavia, assim que entrou, Melissa o destacou para a recepção, a fim de prevenir, antes de tudo, nova entrada abrupta do indivíduo na sala dos técnicos.

Em seguida, Melissa ligou para a Delegada de Polícia da região, com quem mantém cordial interlocução profissional. Esta imediatamente enviou dois investigadores à paisana para o Centro.

No momento em que chegaram, estava Macedo na recepção, e não os reconheceu.

– Pois não? – disse-lhes com naturalidade.

– Pois não?… – repetiu um deles algo contrariado – Nós viemos para uma ocorrência.

– Ah, sim, entrem por favor.

Na sala dos técnicos, os agentes foram apresentados a Melissa e receberam da coordenadora um rápido parecer do caso.

Nesse ínterim, porém, o sujeito ameaçador parado à porta do Centro – que fora capaz de perceber a dupla de investigadores quando passaram por ele – já tinha dado no pé, de modo que, quando um deles deixou a sala dos técnicos para ir interrogá-lo, ele já estava fora do prédio.

Um dos seguranças do Centro mostrou para o investigador onde o sujeito estava: parcialmente oculto atrás de um caminhão do outro lado da avenida em frente ao prédio, de olho no movimento.

O investigador desceu para a rua e, da calçada, chamou o indivíduo com um gesto de “vem cá” com a mão. Este, porém, não só não atendeu como se pôs a fugir na direção contrária. O policial então sacou a pistola automática e atravessou a avenida em perseguição, mas o sujeito rapidamente pulou um muro da avenida – com extraordinária agilidade – e caiu para dentro da estação ferroviária próxima ao Centro.

O policial chegou até o muro e, dali, pegou o telefone celular, no que parecia acionar colegas.

O outro investigador, que ficara no Centro, disse então que a mulher já poderia deixar o prédio em segurança. A coordenadora Melissa desceu com ela até a viatura, na qual a mulher enfim seria levada à Delegacia para registrar queixa. Feito o B.O., o motorista do Centro transportou a usuária até um local de abrigamento sigiloso.

Que essa mesma mulher tenha, poucos dias depois, ligado para seu ex-companheiro e suposto agressor, revelando a localização do abrigo – destruindo assim o necessário sigilo do serviço e arruinando não só sua própria segurança como a de todos os abrigados, provocando ainda um gasto enorme de dinheiro e esforço humano com a consequente mudança do serviço para outro endereço – isso é outra história.

***

Jogo Arriscado [capítulo]

A encomenda valia cinco mil reais. Era um celta. Por volta das oito da manhã, numa quebrada do Capão Redondo, periferia de São Paulo, quatro rapazes adrenados de cocaína, um deles menor, sobem em duas motos e partem para um assalto. Encontram a encomenda trafegando na altura da estrada de Itapecerica da Serra, e perseguem-na até a entrada de um motel.

O menor salta da moto com pistola em punho e enquadra os ocupantes do veículo, dois homens desarmados, que são arrancados para fora e deitados com a cara no chão. Toma-lhes documentos, chaves, celulares, o que consegue vasculhar. Outro rapaz, mais experiente em pilotagem, assume o volante do carro das vítimas e parte em alta velocidade. As motos o seguem, e as vítimas são deixadas intactas no chão da entrada do motel.

Pouco depois, porém, o menor viajando na garupa de uma das motos olha para trás e vê uma viatura da ROCAM em sua perseguição. Seguidos? Traídos? Sem tempo para divagar: o menor avisa os comparsas, que aceleram tudo e se dividem por caminhos diferentes.

A moto com o menor entra na contramão de uma avenida, e consegue despistar a polícia temporariamente. Logo o piloto para a moto e dá uma ordem ao menor:

– Desce e sai correndo, moleque! Daqui eu vou sozinho.

A intenção era dividir ainda mais o grupo, dificultando a perseguição pela polícia. Mas o menor, sabendo que a moto em fuga é que continuaria sendo visada na perseguição, e ele próprio não, manteve outros princípios:

– Não! eu estou com você, parceiro: vou até o final. Se for para ir preso, vamos nós dois. Eu não vou deixar você na mão, truta.

– Não, moleque, sai fora, sai fora!!

– Não, eu vou com você!

Como o menor não descesse, partiram. A polícia estava por perto e os encontrou de novo. Nova fuga em velocidade pela avenida.

Mais à frente, um farol fechado. Pressionado pela aproximação da viatura policial, o piloto tentou passar direto pelo cruzamento – a mais de 150 km/h. Chocaram-se contra um motociclista que passava regularmente no sinal verde, e voaram. O menor aterrissou de ombro contra a guia da calçada e sentiu a clavícula deslocar. Paralisado, viu seu parceiro em pior estado, desacordado junto à moto, banhado de sangue. O motociclista que não tinha nada a ver com aquilo, por pura sorte, não ficou gravemente ferido (diferentemente do que aconteceu, por exemplo, neste mês de julho de 2011 na cidade de Guarulhos, quando três menores, dois de 15 anos e um de 12, assaltaram um carro e, na fuga, bateram num veículo matando duas jovens mulheres, uma delas mãe de um bebezinho de nove meses, que também estava no carro e foi arremessado para fora como um saco inerme, tendo sofrido traumatismo craniano). Imediatamente os policiais chegaram. Um deles pisou a cara do menor com a sola de sua bota. Era a terceira vez que caía nas garras da lei. E agora já tinha 17, quase 18 anos.

*

A primeira foi quando tinha 13 para 14 anos. Vinha desde os 12 fazendo pequenos furtos com seus colegas de gangue, onde aprendeu a fazer uma “bolsa antialarme”, especialmente forrada, com a qual furtava em shoppings e supermercados sem ser descoberto. Com a prática, foi aprimorando a técnica de ação com a bolsa, usando-a cada vez mais profissionalmente.

No dia em que haveria de cair, entrou no hipermercado de mãos dadas a uma garota da turma – o desbaratino, como é chamado este expediente de dissimulação. Ela já tinha estado no interior da loja fazendo um levantamento do local, e passara para o menino a posição das câmeras. Foram então até o fim de um corredor desprotegido e encheram a bolsa antialarme de mercadoria. Não contavam, porém, com o olho vivo de um segurança que, à distância, ganhara o movimento. Este apontou para o menor na saída:

– Ei você, garoto, parado aí!

Mas o menino disparou com a bolsa pelo acesso ao pátio do estacionamento. Lá fora, carros e mais carros, e a cerca divisória com a rua só muito adiante. Olhando para trás, viu vários seguranças no seu encalço. Então correu abaixado por entre os carros até o meio do pátio, enfiou-se embaixo de um deles e depois ainda rolou para debaixo de outro.

Quieto, imóvel, acompanhava os passos dos vigilantes se aproximando, dos quais só via os calçados correndo pra lá e pra cá. Até ouvir um deles falar: “Tá aí, ó!..”, certamente apontando para seu esconderijo. Estava cercado. Logo sentiu uma mão puxando seu pé. Reconheceu que perdera, e não reagiu mais. Somente ao gerente do hipermercado, que num quartinho lhe atirou água no rosto reclamando do furto em seu estabelecimento, respondeu:

– Não estou roubando nada do que é seu!

O menino tinha a língua afiada.

Com a chegada da polícia militar, foi levado para um abrigo provisório de menores, donde seu pai, tendo sido comunicado pelo Conselho Tutelar, retirou-o três semanas depois – falando um montão na sua orelha.

Não adiantou. Pelo contrário: depois desse dia, o garoto parece ter perdido o medo, e se  empolgou em furtar. Afinal, já tinha passado pela experiência de ser pego pela polícia, já tinha decepcionado o pai, sabia que não era o fim do mundo. De agora em diante não haveria mais o medo do desconhecido.

Porém, na segunda vez em que foi pego – desta vez furtando um tênis numa loja de shopping – não foi mandado para um simples abrigo provisório, mas direto para a internação na FEBEM.

*

Foi no dia de seu aniversário. Segundo o costume de sua pequena gangue, quando um dos membros fazia aniversário, todo mundo se juntava para furtar para o aniversariante, arrumando-lhe presentes. E  assim o fizeram: já de manhã, furtaram roupas de uma loja com sucesso. Se tivessem se dado por satisfeitos, não teriam caído. Mas de tarde resolveram empreender novo furto – o tal tênis no shopping – e aí foram pegos.

Assim começava a primeira de uma série de três internações na FEBEM que fariam este menor, hoje com 20 anos, perder a liberdade durante mais de dois anos de sua adolescência, fora os vários meses em semiliberdade, cumprindo medida socioeducativa de Liberdade Assistida no CREAS de Ferraz de Vasconcelos.

Virgílio[1] chegou ao CREAS de Ferraz em fevereiro de 2007. A informação era de que seu comportamento como interno havia sido exemplar: adolescente tido como respeitoso, solícito, disciplinado, interessado, participativo, dinâmico, aplicado. Ainda por cima estudioso. E tudo isso por iniciativa própria, sem necessidade de cobrança da parte de ninguém. O único senão nesse currículo impecável talvez pudesse ser certa predisposição à contestação – mas a própria educação moderna prefere isto à apatia e aceitação automática de imposições, de modo que temos aí mais uma virtude a apontar que um defeito. Então, como explicar esse bom comportamento, tão raro hoje em dia, seja num adolescente de alta ou baixa classe, estudante de escola pública ou particular?   

Vejamos o que diz o menor:

“Lá dentro, no sistema, funciona da seguinte forma: você tem que jogar o jogo. É tudo um jogo. Você tem que jogar o jogo do funcionário, mas não se iludir na ideia dele. E nunca demonstrar pros caras [os outros adolescentes internos] que você está escutando ideia de funcionário. E jogar também o jogo dos caras – e sempre na verdade jogando o seu próprio jogo.”

Em outras palavras, pragmatismo: olhar com realismo para sua situação, ver o que é preciso ser feito para se dar bem, e fazê-lo. Até porque o jogo do sistema está posto de forma inelutável para o interno: é jogar ou jogar. Isto não é surpresa, quando a própria queda no sistema é prevista no jogo como parte integrante:

O cara, quando está na vida do crime, está sujeito a tudo: matar, morrer, ir preso. Então já tem na sua mente o que pode acontecer. Aí quando acontece, não adiante se lamentar. Adianta o quê? Você encarar o sistema com competência. Com a cabeça em pé. Do mesmo jeito que você é homem aqui fora, você é homem lá dentro. Da seguinte forma: não deixando rastro pra ninguém te cobrar nada.

Assim Virgílio procurava se equilibrar no fio da navalha entre funcionários e demais internos, sem escorregar. Um jogo em que cada movimento deve ser bem calculado, haja vista que

“…a partir do momento em que você troca ideia com funcionário, os moleques pensam que você está cagoetando alguma fita.

Na última e mais pesada de suas três participações no “jogo” da FEBEM, Virgílio estava mais corrido no crime e, confiante como sempre em seu poder discursivo, arriscou apresentar cartas altas assim que chegou, diante de mais de 100 adolescentes internos de seu alojamento. Estes perguntaram-lhe, como de costume, qual era o seu B.O., isto é, a infração que o levara a cair ali.       

– Firmeza –  respondeu Virgílio –, meu B.O. é tal, moleque, sou de tal quebrada. E a caminhada é a seguinte: vim preso sozinho e vou sair sozinho.

Todos ficaram calados, observando. Virgílio prosseguiu:

– Isso quer dizer o quê, moleque?: eu faço a minha caminhada, eu corro com as minhas pernas, eu faço o que eu quero.

Sem dúvida falava um sujeito determinado. Um dos mandachuvas dos garotos comprou sua ideia:

– Moleque, é um desse que a gente queria, truta. Pode vir pro nosso lado.

Virgílio não se deu por satisfeito:

– Moleque doido, não tem essa de vir pro nosso lado. O certo é o certo. Se você está me chamado pro seu lado, e um dia você estiver errado, você vai ser cobrado por mim também, mano.

            Tuchê! A esgrima verbal terminava a seu favor. Ainda mais que a referência sobre “o certo” – isto é, o domínio da “lei” da bandidagem – indicava que o novato na unidade não era, contudo, novato no crime.          

– Aê, moleque, é isso mesmo! Nós também é radical, pode vir!

            E assim se enturmou.

            Em breve, seria uma liderança na unidade. Bem articulado, tornou-se espécie de porta-voz dos internos frente à diretoria. Teve atuação destacada numa rebelião, servindo de interlocutor entre as partes, colocando de modo claro e firme as reivindicações dos colegas para o diretor, no que colaborou para o efetivo sucesso em atendê-las.  

No dia a dia comum, era malandro com quem tinha de ser malandro, sem deixar de ser um “aluno nota dez” com a equipe educacional. O tipo “malandro-agulha”, que só anda na linha? Ele mesmo diz:

Enquanto nós [o grupo de estudantes aplicados] estávamos estudando, os caras [a maioria indisciplinada] estavam trocando ideia, perturbando um o outro – e nós só lá, estudando“.

 Ao longo desses anos de internação, Virgílio diz ter lido mais de 50 livros na biblioteca na unidade. De fato, participou de todas ou quase todas as oficinas e atividades extracurriculares oferecidas. Ganhou campeonatos. Aprendeu a fazer boné, tapete, quadro, touca, encanamento, grafiato em parede, até bonecas para crianças.   

Todas essas aulas, todas essas experiências que eu tive lá dentro, hoje em dia servem, porque se eu tiver que trocar o cano da minha casa, não vou chamar ninguém. Eu mesmo vou lá e troco.

Isso por um lado, porque por outro, embora Virgílio reconheça que “ali eles dão várias coisas para você fazer; lá tem várias oportunidades, vários cursos, várias coisas”, completa dizendo:

 “Mas aquilo dali não significa nada pra ninguém. Significa para os que querem; mas no meio de mil, é um que quer sair da vida do crime. Então é uma faculdade do crime, sabia? Porque ali é o dia inteiro com os malucos pensando coisa errada. Eu fiquei 2 anos trancado no meio de 250 cabeças, e essas 250 cabeças era o dia todo maquinando o mal: ah, eu arranquei cabeça de tal fulano, eu matei tal fulano, quando eu sair daqui eu vou matar tal fulano… sempre assim.”

Mas no final das contas, Virgílio demonstra é gratidão para com a FEBEM,

 “Porque lá dentro eles viram o meu potencial. Eles pensaram: pô, esse mano é inteligente. E falaram: você vai sair daqui uma nova gente.

Daqui se vê o quanto o reconhecimento e a valorização são importantes no processo de ressocialização (e que aplicar isso é possível).

Quem vê esses resultados talvez possa ser levado a imaginar Virgílio como um sujeito que, na FEBEM, tornou-se calado, reservado, afastado das más companhias, das patuscadas e tirações de sarro típicas de adolescente – um típico c.d.f. ou nerd, por assim dizer. Nada mais falso: sua dedicação aos estudos e respeito aos professores não o impediam, de modo algum, de conviver confortavelmente entre a “turma do mal”, de manifestar seu talento comunicativo e caráter expansivo de modo irreverente. Mas era um sarrista tão liso, tão pronto a atiçar uma confusão sem nela se comprometer, que mereceu o apelido de CORINGA:

– É, você é o Coringa, moleque! – repetia-lhe um amigo, aludindo ao famoso personagem dos quadrinhos.

Virgílio um dia perguntou-lhe por quê.

– Você dá risada, mas gosta de ver o inferno, né?

Ao que Virgílio argumentou:

– Mano, a alegria do palhaço não é ver o circo pegar fogo? Então, eu estou dando risada, estou deixando o circo pegar fogo… 

E assim ia ateando fogo sem se queimar, de modo a poder afirmar que

 “Graças a Deus, em todas as situações que teve lá dentro, eu nunca deixei a desejar. Desempenho nota dez. Aí sim, eu posso dizer: desempenho nota dez“.

O dez aqui significa zero, isto é, nada (zero) a dever para um lado (a bandidagem) ou para o outro (os funcionários). E isto sem fugir, sem se esconder; pelo contrário: participando ao máximo da vida comunitária da unidade. Talvez também porque o curinga seja aquela carta do baralho que se encaixa facilmente com todos, e no fundo com ninguém; aquele que ri com todo mundo, mas está sempre de fora. Junto de todo mundo, e sempre sozinho. Porque neste mundo cão não se confia por inteiro em ninguém, senão em si mesmo.

*

Mas houve pelo menos alguém “de fora” que durante todo este tempo de queda no sistema nunca deixou Virgílio inteiramente sozinho: Reginaldo[2], seu pai. Este jamais deixou de visitá-lo, jamais desistiu dele. Por mais errado que soubesse estar o filho, contratou advogados para defendê-lo, acompanhava o processo de perto. Levava-lhe cigarros. Em meio ao nevoeiro da internação, seu Reginaldo foi ancoragem em águas conhecidas, seguras, além de intercessor: com ele, Virgílio sabia que não estava esquecido dentro do sistema jurídico-administrativo do Estado, para o qual cada interno é mero número, dado anônimo. Virgílio tinha nome e sobrenome, tinha pai.

Segundo Virgílio, a presença do pai, com quem mora hoje, foi fator determinante para que largasse a vida do crime:

Meu pai foi quem fechou comigo em todas as vezes que eu fui preso. Ele estava lá, indo me visitar, toda vez. Estava lá, com o jumbo [comida]. Eu trocava a maior ideia com meu velho. E hoje em dia eu dou o maior valor pra ele. Se não, era pra eu estar com um oitão na cintura e um pacote de droga no pé, vendendo, ou então assaltando por aí. Mas não. Eu prefiro ficar duro, sem um real, e estar aqui“.

Nem sempre foi assim. O depoimento abaixo mostra uma imagem menos favorável do pai, segundo uma escala de valores bastante clara e consciente, bastante reveladora das motivações do jovem:

Eu gosto do meu pai pra caralho. Ele é batalhador. Só que… e aí? Da batalha que ele fala pra mim, que ele já teve e fez, hoje em dia eu falo pra ele: pai, você não tem nada. Me desculpe eu falar, mas você não tem nada. Porque hoje em dia você vale o que você tem. Se eu tenho uma Oakley® original, os caras falam: pô, mano, uma Oakley®! – quinhentos mil reais, mano, e o cara tá com uma! Então o meu valor está aqui, mano. O meu valor está numa botinha da Oakley®, numa calça da hora, numa Lacoste®. É assim, mano. Eu falei pra ele: você não vale o que você é, você vale o que você tem. Mas isso para algumas pessoas, porque para mim, isso daqui não significa nada. Pode vir alguém, meter um revólver em mim e levar embora. Pra mim, importa o que você é, não o que você tem, o que você está usando. Porque às vezes eu posso estar de terno e gravata e ser um sem-vergonha. Então eu aprendi isso também na vida. Eu falo pra ele: você trabalhou, trabalhou, trabalhou, e aí, mano, o que você tem? ‘Eu comprei essa chácara, eu e seu vô’. Firmeza, comprou a chácara – firmeza, nota 10. E mais o quê? Mais nada. Hoje em dia eu prefiro tirar uma moto, ou um carro, dormir dentro do carro, mas eu tenho um carro. É o que você vale. Foi que nem eu falei pra ele: meu, me orgulho pra caralho… todo mundo aqui gosta do velho, é bandido, polícia, traficante, todo mundo gosta dele. Mas foi o que eu falei pra ele: não adianta a gente ficar só iludido que, se a gente vai seguir uma regra, a gente vai se dar bem. Às vezes se dá. Às vezes você só vai seguir, vai ficar seguindo, só vai ficar no raso. E o mundo vai passando, e você vai ficando pra trás. É onde o mundo passa por cima de vc.”

A visão de mundo superficial acima não surpreende: é o resultado mais do que conhecido cientificamente – e esperado – do bombardeio ininterrupto de “sonhos fabricados” com que a indústria cultural, interessada em empurrar as vendas de seus patrocinadores, procura absorver o público na cultura massificada de nossa sociedade, na qual prevalecem, de modo disseminado, os valores de aparência e consumo – consumo até das pessoas – acirrando o utilitarismo (uso das pessoas como instrumentos), a luta cega por sinais de status, o vale-tudo na concorrência social, o individualismo, blá-blá-blá. Ou seja: o pobre discurso do nosso jovem é reflexo, infelizmente (para nós), de uma leitura realista do mundo em que vivemos. Por isso, por mais que seu pai lhe fale insistentemente, com toda a razão do mundo, que “ser pobre não é defeito“, o jovem não consegue aceitar essa verdade que contradiz a realidade do mundo, onde a aparência de status forçada pelo símbolo de uma marca no tênis acaba valendo mais que o espaçoso terreno de uma chácara num bairro afastado, invisível. 

            Quanto ao seu notado desencanto pela vida regrada, certinha, pacata – que já é desmoralizada normalmente pela cultura de massa (que aliás valoriza o oposto: o predador, o dominador etc.) –, o que dizer a esse jovem, se dentro de sua própria casa, o “homem da regra” – seu pai Reginaldo –– foi para ele o exemplo concreto de alguém que “o mundo passou por cima”? Isso principalmente porque seu Reginaldo, que trabalhou honradamente 20 anos como mecânico de empresa (hoje é ferrador de cavalos), acabou passando por seus problemas (pessoais e de classe social) e se enrolou com a bebida. Quase pôs tudo a perder, principalmente sua honra. A desmoralização que o alcoolismo trouxe ao pai foi determinante para a revolta do filho:

Meu pai é um cara muito sofredor, um cara muito batalhador, um cara que eu respeito demais. A bebida deu sim, uma acabada com ele. Isso me deu mais revolta ainda. Ver meu coroa na porta de bar, sendo chamado de pinguço, apanhando, esses bagulhos aí me revoltaram.  Eu falei pro meu pai: nunca ninguém vai levantar a mão pra você. Se um dia alguém levantar, eu corto na frente dele. Assim, ó: toma. Já era. Ali no rostinho do velho, ali ninguém bate não. Pode bater no meu, mas no dele não, mano. E tem pessoas que chamavam ele assim [de ‘pinguço’] antigamente, e hoje em dia eu nem converso. Hoje em dia eu só quero isso aqui só, pra eu dar uma na cara – ‘Essa daqui é por aquela palavra!’. Então tem tudo isso, toda essa revolta.” 

            Pode-se supor que haja aí também, psicanaliticamente falando, uma revolta estendida contra toda autoridade, posto que a derrocada moral do pai constitui, no filho, uma vergonha/humilhação e, por isso, motivo de revolta contra o pai, o qual constitui figura de autoridade referencial para todas as demais, o que enfim acarretaria desprezo contra as leis verbais que, igualmente, se apresentam sem legitimidade prática.

            Afora essa suposição (algo provável), o que se vê, em várias declarações, é um grande amor pelo pai, ainda que contraditório. Este amor parece ter-se intensificado pela reconciliação ocorrida durante a internação de Virgílio na FEBEM, hora difícil em que seu Reginaldo revelou ao filho a firmeza da fidelidade paterna.

É possível que esse amor tenha se alimentado, também, do reconhecimento a um homem que, afinal, criou o filho sozinho, sem o auxílio de companheira, sem o auxílio da figura da “mãe”. Porque a verdade, além (e aquém) de tudo, é esta: Virgílio praticamente não teve mãe (eis um diferencial importante de seu caso, numa sociedade em já estamos acostumados à ausência do pai, e que cada vez mais começa a sentir a ausência também da mãe). Sim: a figura da mãe – esta instituição tão fundamental na vida de um ser humano, tão intrínseca – nosso jovem quase não chegou a conhecer.

Diz-se quase, porque, na verdade, Virgílio até a conheceu pessoalmente: mas só quando tinha 9 anos de idade, momento em que ela reapareceu subitamente na porta da sua casa para se apresentar. Estava muito diferente da mulher bonita que ele conhecera por foto: agora estava magra, pálida, abatida, arruinada. 20 dias depois morreu. Tinha câncer. Viera se apresentar ao filho antes de se despedir para sempre. E assim passou a mãe de Virgílio pela sua vida, como um raio. Assim terminava a vida de mais uma vítima do crack, droga pela qual aquela mulher havia deixado marido e filhos.

Eis como Virgílio comenta o fato:

Eu já não tinha ela presente. Isso já me revoltava. Ela me aparece depois de nove anos, e depois de vinte dias ela morre? E aí? Como é que você acha que a minha mente não é? Minha mente é totalmente confusa, esperta, minha mente é assim: é briguenta, é inquieta, acho que mesmo dormindo eu estou brigando com alguém. Por eu não ter essa estrutura, foi o que me abalou. Mas me abalou e não me abalou; sabe por quê? Eu não tinha uma convivência com ela. Não tinha aquele apego de “mãe, vem cá! mãe, vai lá!”. Mas dói. É a mãe. Aí eu tive que construir as minhas colunas. Eu tive que ser o meu eixo. Eu tive que ter o meu rebolado“.

*

            Claro que este rebolado desenvolveu-se principalmente nas habilidades de rua, não nas escolares. Era na rua – na malandragem da rua – que Virgílio via retorno prático de sua astúcia, via potencial de ascensão. Não que Virgílio não tenha tentado jogar o jogo da escola:

Nesse jogo [da escola], eu joguei. Minhas notas eram dez, nesse jogo. Mas só que eu, por mim, eu vi que, se eu continuasse jogando esse jogo, eu não ia me dar bem em nada. Aí eu escolhi outro jogo, o jogo que me ofereceram, certo? Foi que nem se diz: ‘A família dispensa, o crime acolhe’, sabia?Às vezes eu vou ali, pedir a oportunidade de um trampo, ninguém me dá. Aí eu desço ali na biqueira: ‘Ô, arruma um trampo pra mim’, os caras falam:’tá aí, moleque!’ Tá vendo como é fácil ” 

Além desse alegado “senso de oportunidade”, outros fatores provavelmente contribuíram para o desinteresse de Virgílio pela escola. Primeiro, porque o “jogo da escola” (buscar a premiação por meio de notas boas e evitar a reprovação) precisa ser considerado importante antes de tudo pelo próprio aluno, para que este queira jogar e possa se desenvolver. Se falta este interesse, falta o essencial. E tal interesse pela escola e suas competências deve vir, antes de tudo, da própria casa do aluno, da própria família. A família é o parâmetro e o exemplo. Ora, absolutamente não é isto que ocorreu com Virgílio, que não teve mãe presente e cujo pai, que só estudou até a quarta série, parece não ter valorizado suficientemente a escola:

Eu já não tinha minha mãe presente. E quando tinha reunião, meu pai não se apresentava em escola. Meu pai geralmente ia me levar de bicicleta. Mas sempre eu voltava sozinho.”

            Ao responder sobre o motivo de seu pai não ir às reuniões nem buscá-lo na escola, Virgílio revela – de modo espirituoso – uma mágoa (para com o pai) e uma carência (desse pai):

Meu pai não ia porque tinha muito serviço; por isso, se eu descobrir quem inventou o serviço, ele tá na merda.

A relação de Virgílio com o jogo morno da escola (e o jogo quente da rua) resume-se nas falas abaixo:

O que me atraía mais era a rua. Bem ou mal, eu estudei, só que eu aprendi mais com o mundo do que com a escola. Minha escola real mesmo foi o mundo, não foi ali escrevendo não. Aprendi na prática. Hoje em dia tudo o que eu sei, agradeço sim um pouco à escola, mas o resto eu não agradeço mais nada. Agradeço a mim!

Quando eu era criança eu não queria nem saber de estudar. Só de brincar em sala de aula. Brincava mas não repetia. Eu era um cara que não repetia: chegava na hora da escola, eu não estudava: me dava lá a prova, eu – pzz – já sabia. Eu era da turma do fundão, mas eu já sabia de tudo. Brigava? Brigava muito! Eu sou um cara inquieto. Sou um cara impaciente, não consigo ficar trancado num lugar. Pergunta pro meu pai: eu acordo 7-8 horas da manhã, tomo banho e saio. Minha dificuldade não era com estudos; era ficar confinado, escrevendo. Você acha que aquilo não cansa, ficar escrevendo? Então, eu não via a menor graça nisso.

Já na 5ª-6ª série, eu falava que ia pra escola mas não ia. Eu ia pra escola e saía fora. Simplesmente a diretora olhava pra minha cara: ‘Você não vai entrar?’ – ‘Não, meu! Não vejo graça aí dentro’. Sabe por quê? Porque a rua me agradava. Lá na quadra no lado de fora tinha som, tinha uns caras fumando maconha, tomando vinho, jogando baralho. Então, eu ficava de lá de cima da sala de aula olhando e pensava: ah, o que que eu vou ficar fazendo aqui no meio dum monte de trouxa? Então eu vou sair fora. Eu ficava olhando e falava: tá bom que eu vou ficar perdendo meu tempo aí com esses nerd.

Esse era o pensamento… tanto que hoje em dia eu falo: caramba, já era pra eu ter terminado os meus estudos, eu sou o maior burro. Então hoje em dia o pensamento é diferente: os caras não são nerd, os caras são inteligentes. E os burros são os caras que estavam lá fora…

 Se eu não sei ler, eu não sei escrever. Pra eu poder saber ler e escrever eu tenho que estudar português. Pra eu trabalhar com negócio, no ramo de negócio, eu tenho que saber fazer conta, então eu tenho que estudar a matemática…

(Este último parágrafo, Virgílio recitou-o na entrevista de modo ligeiramente artificial, como reproduzindo-o de discurso alheio posteriormente incorporado)

O fato é que o menino foi assim se desenvolvendo nos jogos e brincadeiras de rua, se destacando como moleque esperto, bom de bola e de briga, rápido na palavra, perdendo cada vez mais o interesse pela escola.

Por volta dos 12-13 anos, Virgílio Começou a andar no bairro com companhias mais pesadas:

Os caras eram mais velhos, eu andava junto, a gente colava em padaria, em bar… ‘Vamos beber? Vamos jogar bilhar? Vamos jogar um dominó?’, e assim foi indo…. Truco, caixeta, tranca, aprendi tudo isso em bar, porque você vê ali o cara só ganhando dinheiro. Você fala ‘ah, vou apostar 10 pra ver no que dá!’. Bilhar a mesma coisa: jogo bem, tem umas jogadas que às vezes nem eu acredito que dá certo. Eu assim fui me misturando… Outras mentes, você vai adquirindo outros conhecimentos…

…aí é onde você acaba ou infracionando, né, meu? Ou então arrumando um jeito melhor, que é o serviço. Mas eu tinha optado pelos caminhos errados.

            (Este último parágrafo também destoou do conjunto por sua artificialidade, principalmente na parte “ou então arrumando um jeito melhor, que é o serviço“, indicando possível cinismo pragmático na assimilação do discurso social)

O fato é que Virgílio foi perdendo a inocência de suas brincadeiras infantis, partindo para jogos cada vez mais arriscados, menos saudáveis. A pipa e os banhos na lagoa cederam espaço à farra em boteco, ao movimento nas quebradas. E a admiração pelos caras da turma da pesada ia crescendo.

            Logo montou, com os amiguinhos de sua idade, uma pequena gangue delinquente – espécie de berçário do crime, brincando de imitar a máfia adulta – não muito por necessidade material, mas por desejo de aventura e vontade de afirmação pessoal. Entrava assim no jogo dos furtos, onde, como vimos, se empolgou até a “bolsa antialarme” e acabou por cair preso na FEBEM, que lhe pôs em contato com a marginalidade juvenil em suas diversas manifestações.

*

Na volta para as ruas, entrou para o tráfico, que era o verdadeiro lugar dos caras da pesada no seu bairro. Aqui a coisa ficou mais séria:

A partir do momento em que você está ali, que você entra na vida do crime, você já está se arriscando por completo. Não tem essa de pequeno risco, maior risco. De eu ficar ali na esquina com uma maleta de droga, eu estou me arriscando a ir preso. Ou então vir um pé de pato [policial aposentado] e me matar. Porque eu ficava a madrugada inteira. Tinha risco de vir um noia e eu não querer vender fiado pra ele, e ele me dar uma facada…

Mas Virgílio parecia possuir as habilidades necessárias para se dar bem nesse jogo arriscado, de modo que sua ascensão na carreira do tráfico foi rápida: tornou-se gerente de sua biqueira (ponto de venda de drogas), comandando uma célula da organização, cerca de cinco criminosos armados. Que habilidades seriam essas?

Todo jogo tem sua regra. E no jogo do crime a regra é a seguinte: nunca errar. Porque se você dá uma jogada errada, já era: é xeque-mate; os caras tem pegam e já era. Então, uma das habilidades nesse jogo é você saber ludibriar uma pessoa na conversa, certo? Outra habilidade é você saber distinguir o certo do errado. Em que sentido? De repente, um maluco talarica alguém – talaricar é pegar mulher dos outros, entendeu? –, aí você está ali pra quê? Pra distinguir o certo do errado. Às vezes o cara pode estar errado, mas e a mulher? A mulher também está errada. Então a gente vai pôr na balança o peso do erro dos dois. Conforme o peso, vai vir a cobrança. A cobrança vem na altura do erro: se você tirou uma vida, você vai pagar com sua vida. De repente, o porquê que você tirou aquela vida: se você tirou estando certo, firmeza; mas se você tirou estando errado – você não comunicou ninguém que você ia tirar aquela vida –, então você vai pagar com a sua vida.”          

Dotado assim da inteligência retórica e do senso de “justiça”, Virgílio esmerava-se em aplicar o código de conduta do crime nas mais variadas situações:

Código do quê? Nunca errar. É como se diz: ‘Quem não nasceu para servir, não serve para viver’. Esse é o lema do CV, e infelizmente a gente segue esse lema… Se o cara quer usar a droga dele, nós temos pra vender, mas o negócio é o seguinte: jamais ele vai roubar a mãe dele, um botijão de gás, e vai vir na biqueira trocar. Porque se ele vir com o botijão de gás, ele vai apanhar com o botijão de gás; e nós levamos até a casa da mãe dele, pomos ele de joelho – ‘vai, beija o pé da sua mãe’. Eu já fiz isso. O cara roubou o quê? Um saco de arroz; vendeu e foi na nossa biqueira comprar pedra, e a mãe dele gritando na rua ‘você não vai devolver o pacote de arroz?’. Eu: ‘O quê!?! Quer dizer então que você rouba sua mãe pra fumar crack!? Então vem cá que nós vamos trocar uma idéia: Vai lá, ajoelha no pé dela e pede perdão!’ – falei isso na frente da mãe dele, eu com o oitão na mão assim, sete janelas. Aí a mãe dele olhou pra minha cara, eu falei: ‘Tia, não se preocupa que nós não vamos matar seu filho, mas só que o couro que a senhora não deu, nós vamos dar, certo? Então, ‘Pede perdão pra sua mãe, e vamos ali que nós vamos trocar uma idéia’. Já era: chegou lá ele apanhou que nem criança, devido a ele ter feito isso. O cara quer usar o que ele quer, dane-se. Só que sustenta seu vício, mano. Eu aprendi um bagulho na minha vida: se você não pode pôr dentro de casa, nunca tire; se você não pode trazer nada, jamais tire alguma coisa. E principalmente de família. Jamais.

O rigor na aplicação da “justiça”, aliado ao zelo para com o território parecem ter valido a Virgílio algum reconhecimento enquanto “protetor” da quebrada:

Pelo lema que eu conheço, que me ensinaram, e pela convivência que eu tive com vários caras, os caras sempre ensinaram: ‘Seja humilde com todo mundo. Aonde você chegar, saiba entrar e saiba sair; mas seja humilde’. Por isso – pelo menos ali na minha quebrada – todo mundo me adora. Mesmo eu tendo sido do crime. Ali dentro a população já presenciou tanta coisa que eu e mais 5 caras fazíamos. Mas a gente nunca virou as costas pra sociedade, pra população. Direto a gente dizia: ‘Ô tia, tá precisando dum botijão de gás?’; ‘Dona, a senhora quer uma ajuda para subir com a cesta básica?’ Sempre isso: ‘Tá precisando de um remédio? De alguma coisa?’ Jamais deixava alguém de fora vir zoar na quebrada: tipo roubar um bar da quebrada, roubar um varal, um dvd, jamais. A gente não admite isso. Por isso que, do jeito que a gente deixou a quebrada, o bagulho está. Tem pessoas que falam pra mim ‘Pô, mano, minha moto dorme no portão da minha casa, ninguém mexe; meu carro, com o vidro abaixado, dvd lá dentro, ninguém mexe’. Não desandou. É tipo um dilema, mano.”

Claro que a posição de gerência no tráfico trazia mais responsabilidades, riscos maiores ainda e, consequentemente, mais paranoia: 

Tem outros riscos: sair uma treta e eu ter que estar envolvido pra separar, e de repente tomo um tiro. Também tem a inveja – tem muita inveja, mano. Muitos rivais. Porque mesmo que o cara cole na sua quebrada, ele pega na sua mão, mas você vê a inveja no olhar, no jeito dele pegar na sua mão, no jeito dele trocar idéia com você; porque o cara que te considera mesmo, ele troca ideia olhando no olho, jamais ele vai ‘ah, que não sei o quê e pá’ – isso aí já é falsidade. Tem tudo isso na vida do crime.

Certa vez, bandidos de outra praça começaram a fazer bagunça no território de Virgílio, deixando lá os carros que roubavam, atraindo a polícia para o pedaço. Virgílio recebeu então a seguinte ordem de seu superior:

            – Moleque, vai lá e fala a primeira vez, fala uma só vez: “É para tirar todos os carros roubados que estão lá”.

            Virgílio fez como lhe foi mandado, mas ninguém deu ouvidos. Ligou de volta para seu chefe:

            – Foi falado uma vez conforme mandado, mas o bagulho não adiantou de NADA.

            – Moleque, taca fogo em todos os carros que estiverem parados!

            Virgílio ousou interceder a seu chefe:

            – Mas, e se tiver carro de alguém que mora lá?

            – Moleque, só olha o carro: se você ver que o carro é bode [roubado], taca fogo. E se o mano que é 157 [roubo] vier reclamar com você – que é 12 [tráfico] –, fala pra ele que quem manda na quebrada é o 12, e não o 157. Então nós falamos o que pode entrar na quebrada e o que pode sair. Está na hora de eles saírem da nossa quebrada…

            Na ocasião, os bandidos do 157 tinham roubado um Astra, um Golf e um Vectra zerados, todos devidamente parados e enfileirados numa rua da biqueira, cintilando. Admirado de vê-los, Virgílio pôs-se a pensar na fortuna que os donos haviam gasto para comprá-los, concluindo com resignação: “A ordem que eu tenho… eu tenho que exercer”. Comprou cinco litros de gasolina, quebrou a janela dos carros, tacou gasolina dentro e ateou fogo.

            A coisa virou um escarcéu: alarmes disparando, bombeiros chegando, polícia, curiosos de plantão. Do jeito que o fogo apagou, todos se foram, sobrando na rua os 3 entulhos fumegantes de metal retorcido.

            Até que caiu a noite. Virgílio continuava na quebrada como de costume, sentado na mesa do bar, supervisionando o movimento da venda de drogas. Havia muita gente no local por conta do forró. Então três carros chegaram sinistramente, motores roncando alto. Eram os assaltantes de carro.

            – Agora molhou, mano… – disse discretamente Virgílio na mesa a seu parceiro – agora vamos pra ideia, que vai sobrar pra meio mundo…

            – AÊ, QUEM É O VIRGÍLIO AÍ? – perguntou um dos brutamontes para o bar todo.

            Ninguém respondeu nada, mas o clima ficou pesado. O brutamontes perguntou a segunda vez:   – AÊ, e o VIRGÍLIO?

– Truta, sou eu mesmo! – respondeu-lhe o próprio sem se levantar da mesa – Você quer falar comigo, você vem até aqui!

– Não, moleque, é assunto particular…

– Comigo não tem particular não. Pode sentar aí e vamos trocar uma ideia, truta.

– Não tem como nós trocar a idéia lá fora? – insistiu o brutamontes.

– Espera aqui que eu já venho….

Virgílio deu um pulo dentro do bar e avisou os comparsas:

– Prepara os armamentos que a fita é o seguinte: os caras estão aí, e os caras vieram cobrar que eu queimei os carros deles, certo, mano? Mas quem manda na quebrada somos nós; estão errados são eles. Então se eles vierem conspirar, eu estou desarmado, porque eu vou trocar ideia. Se vocês perceberem qualquer fita errada, pode sacar e atirar, que depois a gente troca ideia, certo?

– Certo! 

            E foi Virgílio para a reunião. Eram vários caras do 157 de frente para ele. Seus comparsas mais à distância, atentos. 

            – Por que você queimou os nossos carros? – foi a primeira, simples e direta pergunta feita a Virgílio.

            – O porquê, moleque? Primeiramente, eu vou te explicar um bagulho. Eu fecho nessa quebrada desde os meus 13 anos de idade, truta. Desde os meus 13 anos de idade, eu nunca vi ninguém roubando carro e vir trazer pra esta quebrada, certo? Em primeiro lugar: você mora onde aqui?

            – Eu moro lá naquela outra quebrada.

            – Então porque você está trazendo carro roubado na minha quebrada? Por que você não leva na sua quebrada, truta? Se você não sabe, aqui tem uma disciplina, e quem põe a disciplina na quebrada somos nós. Pra você pôr um carro roubado aqui, você tem que chegar em quem? Você tem que chegar no gerente da quebrada, você tem que chegar em mim e perguntar se eu autorizo deixar você entrar com o carro aqui dentro. Nem isso você não fez. Então você está exercendo sua função completamente incorreto, meu. Eu não vejo você o cara de uma visão de chegar aqui: ‘E aí, Virgílio, eu vou esconder dez carros aqui, mano, pode?’. Se eu falar ‘pode’, mano, você pode entrar até com um caminhão aqui dentro. Mas você já passou por cima da minha palavra, certo? Primeiro, eu cheguei a primeira vez, dei a ideia em vocês; vocês olharam pra mim… ‘ah, é um moleque…’. Então: a segunda vez já não tem mais ideia, truta. Infelizmente, queimei mesmo. Você achou ruim? Aciona lá a torre do Primeiro Comando, e nós vamos trocar idéia. E quem estiver errado, você tá ligado, mano… Ou você acha melhor resumir a ideia aqui entre nós, ficar entre nós aqui, a gente apaziguar, vocês seguirem o caminho de vocês, ou você quer esticar o chiclete? Porque o único que vai ficar mascando o chiclete vai ser eu, porque eu estou certo.

            – Mas você não podia ter feito isso; você devia ter ligado pra nós antes.

            – Opa!.. eu avisei na sexta-feira, não avisei? Pra vocês tirarem os carros? O que que vocês falaram? Que vocês são 157, que vocês sabem o que estão fazendo, que vocês não iam tirar os carros da quebrada… Então, na segunda vez eu já botei fogo mesmo. E a fita é a seguinte: se trazer de novo, eu vou botar fogo de novo, cara. Então, vamos fechar redondo: eu não estou impedindo vocês de roubar, mano. Eu não sou dono de vocês. Quem sou eu para falar que vocês não podem roubar? Só que eu não quero o seguinte: que vocês roubem e tragam pra dentro da quebrada. Se for trazer, chega no menino que está trabalhando ali no 12 e fala ‘ó, estou trazendo o carro pra cá’. Sabe por quê? À vezes a polícia vem na intenção de pegar vocês, e pegam o mano que tá no 12. E aí? Estou errado, mano?

            – Não, moleque, você não está errado não. A gente só achou errado porque a gente já ia vender os carros…

            – Mano, infelizmente os carros agora estão lá… foram diretamente pro pátio, truta. Certo? Fechou, assim?

            Um dos caras, mais inquieto e arrogante, não se deu por satisfeito:

            – Que, mano! Essa quebrada nunca teve isso!

            – Quando, mano, nunca teve isso? Só quando eu estava preso. Porque quando eu passei os dois anos em cana, eu tenho certeza: a quebrada estava a maior bagunça. Mas como eu saí pra fora agora, ganhei minha liberdade, o bagulho tem que estar redondo, do jeito que eu deixei, mano. E não são vocês que vão bagunçar. Você está querendo o quê? Você está querendo continuar, esticar o chiclete? Porque se você falar pra mim que você tá querendo esticar o chiclete, moleque, nós vamos até o final. E não adianta ficar de cara feia, que a gente não tem medo de cara feia; nós falamos a verdade. Não é mais pra roubar carro, certo mano?, aqui na quebrada. E ponto final.

            Fez-se silêncio. Virgílio arrematou:

            – Quem for do contra, já levanta a mão aí e fala. Se eu estiver errado, já fala agora. Se quiser esticar o bonde, já fala agora, mano.

            Ninguém levantou.

            – Rapaziada –, completou Virgílio com cortesia – obrigado pela atenção, desculpa ter queimado o carro de vocês, mas é o certo. Quer tomar uma cerveja, vamos lá tomar uma cerveja…

            Os caras agradeceram o convite, mas foram embora. E até hoje não apareceu mais carro roubado para a quebrada.

            Mas gerente de biqueira nunca tem sossego. Poucas semanas depois, estava Virgílio comprando pão na padaria da quebrada quando entrou um maluco com um revólver.

            – É um assalto, é um assalto!

            “Caralho, não acredito! Quem é o filho da p..?”, pensou Virgílio. O maluco olhou para ele:

            – Vai, mano, passa todo dinheiro, passa a carteira”

            – Você quer minha carteira?

            – É, a sua carteira.

            Virgílio tinha uns oitocentos reais na carteira. Na sua contenção, cinco comparsas armados lá fora.

– Meu querido, não me leve a mal: não vou dar a carteira pra você”

O maluco ficou abismado com a resposta de Virgílio, que repetiu:

– Não vou dar a carteira para você.

– Quer dizer então que você é o bandidão? – retrucou o assaltante balançando o revólver – Você é folgado… você quer morrer?”

– Meu querido – respondeu-lhe Virgílio calma e pausadamente –, você sabe com quem você está falando? Eu sou o dono de onde você está pisando. Essa quebrada aqui é minha. Eu que comando o bagulho. A gente é do Comando também, truta. Que que você me diz? Vai bater de frente com o Comando? Se você for bater de frente, eu já dou um salve nos camarada ali fora. Não sei se você viu uma banca ali fora, então: os caras estão todos armados. Nós somos do corre também, e aqui é uma biqueira. Está vindo roubar na rua da biqueira, malandro? Tá querendo se arrastar, truta?

            O assaltante pensou um pouco, ainda meio abismado. Nisso um comparsa de Virgílio viu a cena pelo vidro da janela da padaria e acionou os demais que estavam na banca de jornal. Imediatamente entraram:

– E aí Virgílio, que que tá pegando?

– Nada, já era – adiantou-se o assaltante –, eu ia fazer uma cena aqui mas o moleque mostrou a caminhada que aqui é uma biqueira. Desculpa.

            Virgílio emendou:

            – Então, moleque, sai fora que aqui ninguém vai chamar a polícia pra você não. Mas a fita é o seguinte: se voltar a acontecer , nós vamos te pegar, truta.

E o maluco saiu fora. O dono da padaria – que estava perplexo com aquele debate entre um homem armado e outro desarmado – esqueceu até de cobrar o pão de Virgílio, e lhe disse:

– Meu, acho que você não bate muito bem…

– Não é questão de não bater muito bem, meu truta. Não é loucura. Porque a fita é o seguinte: mostrar que a gente é também do corre. Não vem ameaçar na nossa quebrada! Quer roubar, vai roubar uma lotérica. O território é nosso, a gente demarca ele.

E assim ia o nosso adolescente defendendo sua posição de gerente da quebrada. Até contra os próprios caras de dentro. Sim, porque um dos caras que trabalhava para Virgílio, certa vez, pôs em risco sua posição. Virgílio deixara a mercadoria na mão dele no começo da semana:  

– Aqui tem 500 de tal droga, 500 de tal e 500 de tal na sua mão. Então você tem ao total 1500 de mercadoria. Fechou?

–Fechou.

O total da mercadoria, entre capsulas de cocaína e pedras de crack, dava cerca de R$15.000 reais no varejo. Na sexta-feira, Virgílio voltou para “bater o fecha” (contabilizar). Só que o encarregado não estava mais lá.

– Aí mano, cadê o moleque? O moleque está trampando?”

– Vixe, mano, – responderam-lhe – ele estava muito louco aí, cheirando pra caralho, e sumiu….

Virgílio devia prestar contas daquela mercadoria também a seu chefe, e gelou: “Caralho, agora eu to na merda, mano. Como é que eu vou fazer pra pagar esse bagulho??”. Apelou então para algo que, afinal, não era tão extraordinário assim para ele: roubar. Pegou sua moto e assaltou um açougue, depois uma lotérica. E chegou a tempo com o dinheiro para dar na mão do seu chefe.  Então veio a sua cobrança: “vou atrás do cara!”

Mas o tal cara ficou uma semana fora da quebrada, deixando esfriar. Quando voltou, apareceu com um desculpa para Virgílio:

            – Não, meu. É que meu parente de lá do Itaim estava passando mal eu tive que ajudar.

            – A, seu parente… Por que você não me ligou? Você tem meu número para quê?

– Ah, mas não deu tempo…

– Eu não quero mais saber de nada! Vamos bater um fecha, lá!  

            – Ah, mas agora não dá, porque…

            – Como que agora não dá? Porque não dá? Você está devendo alguma coisa? Você mexeu no bagulho que não é seu? Porque se você mexeu no bagulho que é seu, pra mim tanto faz. Eu só quero bater o fecha, e os meus estarem batendo; os seus você faz o que você quiser.

            O mano não tinha mais resposta, e começou a gaguejar.

            – Mano, cê tá errado. Pode trazer!

            Quando bateram o fecha, faltavam 500 pinos.

– Você fez o que com esses quinhentos?

– Ah, mano, não fiz nada.

– Como você não fez nada? Melhor falar a verdade. Fala a verdade.

O mano não respondia nada. Virgílio começou a usar de “psicologia”:

– Você usou a noite inteira; eu te compreendo, truta. Eu já fiz isso também, moleque, isso aí não dá de nada não. É mais bonito você chegar e falar: ‘aí, mano, usei mesmo, estava na maior neurose aí com a vida’. Eu te compreendo, moleque, ninguém vai estar pondo a mão em você aqui, não. Pode falar a verdade pra nós

– Pois é, moleque, você tá ligado então, né? Quando bate a neurose… eu estava mesmo na maior neurose…

– NEUROSE É NEUROSE MAS RESPONSA É RESPONSA… Eu tenho minhas neuroses, eu tenho meus problemas… mas não é responsa? Então É RESPONSA! – e deu-lhe um golpe na boca do estômago, no que chamou  os capangas  – Pode levar, mano! Pode levar e fazer o trampo, que eu não quero nem por a mão…

Os capangas cataram o colega da mão grande e levaram para um terreno baldio. Quebraram os dedos. Encharcaram a mão de gasolina, e atearam fogo.

Assim nosso adolescente ia impondo sua férrea disciplina, não só na quebrada, mas em todos os campos da práxis moral, inclusive na vida privada.    

            De fato, por esses dias vinha namorando uma moça de Itaquera, há 8 meses. Logo depois que terminaram, Virgílio ficou sabendo que ela estava de namorado novo. Chamou seu parceiro:

– Se liga, mano: não passou nem um mês, e a mina já está com outro. Vamos lá que eu vou trocar uma idéia com essa pessoa, truta, que eu não vou de acordo com isso!

Foram de Ferraz para Itaquera em duas motos. Chegaram na casa dela, chamaram-na pro lado de fora:

– E aí, mina, não deixou o colchão esfriar não?

– Por que você está falando isso?

– Por quê, mano? Você acha que eu sou bobo, que eu nasci ontem? Eu não nasci ontem não. Quando você está pensando que tá vindo, eu tô indo! Cadê o cara, que você tá junto?

– È um cara dali de cima.

– Dali de cima daonde? Monta na garupa da moto e vamos lá agora!

– Ah, tá sem capacete.

Virgílio levantei a camisa e mostrou o ferro na cinta.

–  Truta, você vai montar ou não vai?

A moça subiu na moto e levou Virgílio e seu parceiro até a biqueira da favela onde trabalhava o tal namorado novo, que também era função, tendo uns 25 anos, sendo portanto mais velho – e mais forte fisicamente – que Virgílio. Ao ser chamado, apareceu falando alto de longe, sem camisa, peito estufado e queixo erguido para Virgílio:

– Qual que é a fita, bonitão?

– Moleque, primeiro: você senta aí, certo, que nós vamos trocar uma idéia. Não chega gritando comigo não, truta, que eu sou um cara que pra eu estourar é um-dois. Principalmente com pessoas sem educação que nem você.

Os caras da biqueira passaram a acompanhar o movimento com redobrada atenção. Virgílio prosseguiu:

– Ó, já vou logo avisar, pra você nem tentar nada, certo, truta? Eu estou armado aqui, certo meu companheiro? Então eu estou te avisando. E o bagulho é o seguinte: tá vendo essa moça? Ela é o que sua?

– Ela é minha namorada.

 – Como é sua namorada, meu truta, se faz duas semanas que eu larguei dela? Ela é minha ex-mulher. E o combinado é o quê, truta? Você não conhece o lema?

– Que lema?

Virgílio referia-se ao fato de que uma mulher de criminoso tem de esperar três meses de jejum de homem antes de  arrumar outro.

– Moleque, tu não me leva a mal, truta, mas eu acho que você nem é o cara pra eu estar trocando essa idéia. Tem alguém que é responsável por você, truta? Porque se você não sabe, mano, o prazo é três meses pra cama esfriar, viu? E eu acho que você tá infringindo a regra – você e você, vocês dois.

Nesse momento interveio um negrão da biqueira, muito forte e sério, mas que pela cortesia  notava-se ser o disciplina daquela quebrada:  

– É aí, meu querido, quer sentar e tomar alguma coisa?  

– Ô moleque – respondeu-lhe Virgílio – quero sim, uma tubaína. Nós tomamos um guaraná aqui.

Sentaram-se todos no bar, menos a garota.

– O que que pega?, perguntou o negrão.

– Tá vendo essa indivídua aí, ó. Chamo de indivídua porque pra mim não serve mais que um real. Pra mim é uma inútia. A partir do momento que ela pôs esse cara aí – seu irmão, né? – na minha cama, truta, pra mim ela já é um lixo. A caminhada é o seguinte: o prazo não é três meses pra esfriar a perereca?

– É, moleque, três a dois meses.

– Então, não passou nem duas semanas, mano, e já tem outro esquentando minha cama lá, truta? Qual é que é? Então eu tô bobo, então? Então eu sou o trouxa? Banquei a mina 8 meses, pra eu sair com uma mão na frente e outra atrás, e o outro vim e gozar?

– Então, moleque, você está certinho. Só que a fita é o seguinte: meu irmão falou que ela não tinha marido, não tinha namorado nenhum.

– Opa! Vamos reverter então o papel… Moleque, o que que ela falou pra você?

            – Que ela nunca teve marido. Só teve um relacionamento muitos anos atrás com outra pessoa, com quem ela teve as duas nenê, certo, e não teve mais nenhum.

– Ah, moleque doido, a fita é o seguinte: desde quando eu saí da cadeia, eu estou com ela, mano. Então a fita é o seguinte: ela está mentindo. Tá mentindo pra nós dois. Então, moleque, você não vai tomar nenhum tapa, truta – nós corremos pelo certo. Agora, se eu pegar ela e você for se intrometer, aí o bagulho vai ser diferente.

O próprio negrão-disciplina olhou pro seu protegido e corroborou a idéia:

– É, moleque, você fica de boa.

Virgílio então levantou e deu uma rasteira na garota, que se espatifou no chão e ficou olhando feio para ele, que acrescentou:

            – Mano, você só vai tomar só um rodo. Você ainda está dando sorte que vai tomar só um rodo.

            Ela continuava no chão, descabelada e ofegante, com olhar de fera. Virgílio sacou da arma e pôs na cara dela:

– Que que você acha de uma bala? Se eu quisesse, sua vida estava na minha mão, agora. Porque você errou comigo, e errou feio. Só que a fita é o seguinte: você quer continuar a esquentar o seu colchãozinho com ele, esquenta, truta. Foda-se você e ele, certo? É o papo reto: eu quero que você se dane! Só vim cobrar o bagulho pra não deixar passar batido, pra não pensar que eu sou otário. Eu não tenho mais porra nenhuma com você, nem devia estar cobrando; só estou cobrando porque eu não sou trouxa. E se for na minha quebrada com ele, a chapa vai estalar pros dois.

            Dado o aviso, subiram em suas motos e partiram de volta para Ferraz. Mais uma vez, Virgílio fizera sua moral prevalecer no caso. Mais um caso limite, que bem poderia ter tomado outro caminho e acabado mal.

            Mas nem sempre nosso adolescente levou tudo a ferro e fogo. A grande paixão de sua vida, uma mulher mais velha com quem chegou a estar casado, cometeu um erro pior e não foi punida. Com efeito, quando Virgílio esteve em preso uma de suas quedas no sistema, essa mulher não foi visitá-lo – o que, segundo o código do crime, implicaria automaticamente a punição de raspagem completa dos cabelos dela, incluindo sobrancelhas, além de surra e repúdio. Mas neste caso, Virgílio balançou. Sua moral, por um lado, impunha que a “justiça” prevalecesse sempre, por mais que sua aplicação doesse sobretudo nele próprio; por outro, não podia imaginar aquela linda mulher perdendo seus cabelos: a beleza dela o fascinava demais para suportar esse desencanto.

            “Aí o amor falou mais alto. Sabe quando o amor fala mais alto?“, disse Virgílio em entrevista sobre o desfecho do impasse.

            Ademais, ela tinha uma desculpa (pequena, mas que já servia) para não tê-lo visitado: era uma menina de família direita, cujos pais rejeitavam – por motivos óbvios – seu envolvimento com um marginal, e faziam pressão para que ela não fosse visitá-lo. Isto, aliás, fez Virgílio conhecer uma das piores consequências para quem envereda no crime – o invencível estigma, a rejeição social –, contribuindo para fazê-lo desistir dessa vida. Como ele próprio diz:

Só pelo fato de eu estar no crime a família dela já não apoiava. A partir do momento em que você entra na vida do crime, você já é um alvo. Às vezes você nem sabe, mas você é um alvo. Todo mundo te discrimina. Você passa, todo mundo fala: ó o traficante, ó o bandido, ó o perverso, ó o viciado. Tem todo esse jogo.

Mas afora este raro caso de clemência por causa de amor, nosso adolescente continuou a exercer a justiça fria, implacável (e distorcida) do crime, conforme demandava sua posição de gerente de biqueira. No caso mais grave, participou da execução de um estuprador que agiu no bairro. Ao falar dessa barbaridade, Virgílio reproduz o discurso “moralizante” com o qual criminosos procuram justificar a si próprios:

Às vezes eu não consigo entender como que um cara, mano, pode fazer muitas coisas aí que, na visão do crime e da sociedade, é totalmente errado. Por exemplo: estuprar. Quem que é o cara que vai de acordo com isso? Eu já ajudei a matar um estuprador. Porque o cara era um estuprador. Porque eu não tenho coragem de matar ninguém. Agora já pensei o quê? Opa! amanhã ou depois eu posso ter uma filha, amanhã ou depois minha irmã está crescendo…

Para finalizar este relato resumido do que tenha sido a experiência de um menor de idade que assumiu a posição de gerente no tráfico de drogas do crime organizado, virando uma espécie de “pequeno juiz” do submundo, transcrevemos o depoimento abaixo, fundamental para esclarecer definitivamente o fascínio do crime, que consiste – mais do que no dinheiro fácil – em autoafirmação por meio da aquisição de respeito e poder:            

Então tem sim, um RESPEITO na vida do crime. Na vida do crime você ganha sabe o quê? PODER. Sabe o que é o PODER DA SUA PALAVRA valer um tiro, mano? Um tiro certeiro? Você falar: mano, você está morto! e quando você vê, o cara está caído? ESSE É O PODER QUE O CRIME TE DÁ. Mas do mesmo jeito que ele dá esse PODER, ele também TIRA O PODER de você, TIRA ATÉ A SUA VIDA, SE VOCÊ NÃO SABE CONDUZIR TODO ESSE PODER que você tem na mão. Porque querendo ou não, ali EU TENHO O PODER SOBRE MUITAS VIDAS. Eu posso falar: mano, explode aquela padaria, explode aquele bar! Ah, não gosto daquele maluco, queima o carro dele. EU TENHO O PODER PARA ISSO. Mas em vez de eu exercer o PODER dessa forma, eu exerço meu PODER da seguinte forma: de CUIDAR DA POPULAÇÃO. Sabe por que muitas vezes os caras vão presos? Porque não entendem que o DINHEIRO NÃO DEPENDE SÓ DA MERCADORIA QUE ELE TEM: DEPENDE DA POPULAÇÃO, sabia? Porque SE NÃO É A POPULAÇÃO, EU NÃO VENDO. E se eu não agradar a população onde eu estou, a própria população pode me cagoetar e eu ir preso. ENTÃO TEM TODO ESSE JOGO.

*

            Eis como o jovem gerente em ascensão de repente caiu.

Estava casado desde 2007 com aquela sua paixão por quem “o amor falou mais alto”. No dia dos namorados, saiu de casa a pé para comprar um presente e trazer para ela. Pegou também pão na padaria. Além disso levava, como de costume, umas 50 pedras de crack à mão. E assim ia retornando para o sossego do lar. Nisso, uma viatura policial passou rapidamente por ele. No que passaram, brecaram mais à frente. Virgílio sentiu o perigo e imediatamente dispensou as pedras de crack no meio do mato rente à rua. Na sua pochete, porém, restavam umas 10 parangas de maconha. Os policiais deram ré e o abordaram determinados:

            – Tá com o B.O.?

            – Tô.

            – Está com o quê?

            – Estou com maconha. Sou usuário.

            – Você é usuário?

            – Sou usuário.

            – E esse presente?

            – É pra minha esposa, senhor. Hoje é dia dos namorados.

            O policial abriu sua pochete:

            – É dia dos namorados? Então hoje você não vai passar o dia dos namorados com ela não…

            – Por quê, senhor? Sou apenas um usuário aí, certo meu? Estou indo pra casa levar o pão para minha esposa tomar café, e levar o presente dela. Sou apenas um usuário. Trabalho na firma ali.

            – Mano, você não é usuário. Eu te conheço: você é o gerente de duas biqueiras. É você que toma conta daquela quebrada. O seu nome não é Virgílio?

            – É, meu nome é Virgílio.

            – Então: é você que nós queríamos. Nós já estávamos atrás de você fazia tempo. É fita dada. Já te cagoetaram; nós estamos com sua foto e tudo. Agora a gente quer o seu patrão.

            – Não tenho patrão.

            – Como não tem patrão? Tem patrão sim! Se não a gente vai te forjar e você vai em cana. Vamos fazer um negócio: você  dá o patrão, e nós te soltamos. 

            – Não. Você pode me prender, que não tem patrão.

            – Então você prefere apanhar?

            – Prefiro apanhar, senhor. Pode me bater à vontade, que não tem patrão.

            Nisso tomou o primeiro soco na boca do estômago. Entre socos e chutes, repetia:

            – Não tem patrão, não tem patrão!

            Um policial pegou na viatura um saco com mais ou menos 40 pinos de cocaína e um e pedra:

            – É seu.

            – Não é meu. Quando chegar na delegacia, eu vou falar que é tudo de vocês.

            – É? Você é marrudo?

            Continuaram a sessão. E mais policiais foram chegando. A rua fechou de polícia.

 Uma policial feminina chegou em Virgílio:

            – Você não vai dar o patrão, né?

            – Não. 

            – Abre as pernas!

            – Senhora, minha perna já está aberta.

            Com gosto, a policial desferiu-lhe um chute de coturno nos testículos. No que Virgílio ajoelhou, o policial ao lado deu-lhe um murro bem dado na nuca.

            – Então não tem acordo, você não vai dar patrão? 

            – Aqui não tem patrão não! Agora vocês já me deixaram BRAVO. O único patrão que tem aqui é EU!

            Jogaram Virgílio na viatura, e dali levaram-no até a casa de um suspeito de ser o patrão de Virgílio – um ex-presidiário residente na região, que, na verdade, os policiais já queriam pegar de antemão. Só não invadiram direto a casa do suspeito, arrebentando com tudo (para dar mais impacto de “denúncia fundamentada”) porque havia na entrada da casa um pitbull e um rotwailer enfurecidos. Então chamaram pelo dono da casa, que atendeu:

            – O que vocês querem?

– O Virgílio falou que você é o Caveira, que você é o patrão! – disse-lhe de cara o chefe dos policiais.

O dono da casa ficou intrigado. Entretanto, um outro policial, com o intuito de pressionar o suspeito, trouxe Virgílio para fora da viatura. Este ouviu a conversa e aproveitou para gritar:   

            – MENTIRA, MANO! EU NÃO TE CONHEÇO DE LUGAR NENHUM! É MENTIRA DESSES VERMES!

            – QUEM MANDOU VOCÊ PÔR ESSE FILHO DA PUTA PRA FORA DA VIATURA!! – gritou o chefe para o subordinado. Virgílio foi jogado aos murros de volta pra dentro do veículo. Mas já havia dado seu recado. O dono da casa reagiu:

            – Aqui não tem nenhum Caveira, não! Meu nome é Marcelo. Não sei do que vocês estão falando. Aqui está meu alvará de soltura, e vocês não tem o direito de entrar na minha casa!

            Vendo que não iam arrumar nada de mais produtivo naquele momento, os policiais contentaram-se em levar apenas Virgílio para a delegacia, onde deram-lhe outra boa surra. Puseram-no de cueca, molharam o chão e ameaçaram dar choque. Mas nada de patrão. Ao final, não aplicaram choque ou qualquer outra coisa afora porrada, e o adolescente – cheio de hematomas, principalmente nos testículos – foi encaminhado para a internação segundo um trâmite mais normalizado.

            Isto não impediu que Virgílio conseguisse colocar, por meio de advogado, um cabeludo processo nas costas desses policiais que, apesar de bem-intencionados em aplicar a “justiça”, afinal usaram de procedimento incorreto com qualquer cidadão que seja, ainda mais menor de idade.

*

            Tendo terminado de cumprir sua medida judicial socioeducativa de Liberdade Assistida (L.A.) no CREAS de Ferraz, Virgílio, hoje com 21 anos e morando de volta com o pai, faz um balanço de sua vida. Em primeiro lugar, sabe o quanto a colocou em risco, na verdade por fazer pouco caso dela:  

“Se eu me preocupasse com a minha vida, eu não fazia tudo o que eu fiz…”

            Agora, um novo e mais amplo horizonte se apresenta para ele. Depois de anos confinado, pagando pelos erros do passado, Virgílio está de novo em liberdade, sem dever nada ao Estado, com o futuro todo pela frente. Uma maior perspectiva de vida, na qual projeta um futuro diferente para si, muito mais seguro e estável:

Quantos falavam: ‘o Virgílio não dura até os 18?’. Este mês eu faço 21 anos. E eu tenho meus objetivos: daqui a cinco anos eu quero ter minha casa, quero ter minha esposa e meu carro. Daqui a 5 anos. É o meu objetivo: quando tiver 25 anos, eu já tenho que ter tudo isso na mão.”

Com semelhante projeto de vida, uma recaída no crime seria um retrocesso:

“Qual é o meu medo? De ir preso de novo. Ir em cana. Eu não tenho medo do sistema, de cair lá dentro. Eu tenho medo de ficar longe da minha família. De perder tempo. Porque lá dentro você está perdendo tempo. O tempo que eu perco lá dentro, eu ganho aqui fora.

Não obstante, Virgílio sabe que esse retrocesso não deixa de ser uma triste possibilidade real, na verdade uma tentação que precisará para sempre ser vencida com luta, devido tanto às condições circunstanciais (ausência de alternativas profissionais, por exemplo) como às próprias inclinações pessoais, que não somem de repente depois de uma década inteira no crime:

“Eu tenho, sim, medo da recaída. Porque hoje em dia o que eles [os criminosos] me oferecem é muito, muitas coisas. Acabei de passar ali e o cara falou ‘e aí, mano? não tá fazendo nada?’. Eu falei que eu fui ver o negócio do CPF, e ele disse ‘Aí, se quiser trampar à noite, é só chegar…’. São várias propostas… E eu falo: ‘não! tô suave, tô indo fazer uma entrevista ali!’. Assim eu tenho resistido à sedução do crime. Mas eu tenho medo da recaída sim, porque não tenho serviço, estou desempregado. E eu sou bem sincero: o meu corpo – o meu corpo não, a minha mente – está fora do crime. Mas ao mesmo tempo ela está dentro, sabia? O meu corpo às vezes  pede: ‘mano, se você sabe exercer uma coisa com capacidade pra você ganhar dinheiro, porque você não exerce, fica perdendo tempo? Às vezes vem esse pensamento na mente: caramba, sei tão bem fazer as coisas para eu ganhar dinheiro rápido assim, puf!”

E o remédio para lutar contra essas inclinações “do corpo” é a própria consciência racional, que enxerga a realidade e pesa as consequências:

“Mas aí vem a consciência… qual é a consciência? Mano, às vezes você pode fazer o dinheiro crescer rápido, mas ao mesmo tempo que ele cresce, ele diminui. E se você fizer crescer e, de repente, dá um desacerto e você vai preso? Pega aí 5, 10 anos de cadeia? E aí? Aí você não vai ter mais 5 anos no seu planejamento pra você construir sua família, certo? Você não vai ter o apoio do seu pai, que já vai estar esgotado, você não vai ter o apoio de mais ninguém. Você vai estar esquecido lá dentro. Esse também é um dos motivos pelos quais eu larguei a vida do crime. Outro motivo é o meu coroa, meu pai. Foi ele quem fechou comigo de verdade, e hoje em dia eu dou o maior valor pra ele.”

OK. Mas o que fazer na prática? isto é, trabalhar de quê? Felizmente, Virgílio dispõe de tempo para experimentar e discernir, pois possui apenas 21 anos. E já sabe daquilo que gosta e de que não gosta, naquilo que é bom, o que é um começo mais do que excelente se levarmos em conta o número de pessoas que muitas vezes passam a vida inteira sem descobri-lo:

” Eu vou continuar os meus cursos – que eu fiz uns cursos aí, de encanador… – que é um ramo que na verdade eu não quero, que eu não gosto, mas que eu trabalho se for preciso. Eu gosto mais é de me comunicar com as pessoas. E não acho que vai ser legal eu me comunicar com um tubo de PVC. Por isso, eu estou procurando uns cursos na área de vendas, de comunicação.”

Dentre todas as possibilidades, Virgílio alimenta um sonho, despertado nos tempos de FEBEM por um professor de português: ser escritor. Não pelo status, pelo glamour, ou mesmo pelo simples prazer, mas antes de tudo pela necessidade vital de expressão e comunicação livres: 

“Hoje em dia eu estou pensando no que é melhor pra mim. O que é melhor para mim? Eu expor o que eu sinto. Ninguém manda no meu pensamento, ninguém pode me prender pelo que eu penso. Eles podem prender o meu corpo, mas a minha mente, a minha sabedoria, eles não podem pôr a mão. A escrita me abriu então uma porta de eu expor o que eu penso. A minha expectativa é oferecer pras pessoas aquilo que elas ainda não viram. Dar para elas lerem o que elas nunca leram. Quero dispor para todo mundo o que eu sinto, o que eu penso, qual é a realidade. Porque muitas pessoas andam com a realidade meio tampada.”  

Virgílio enxerga a literatura, portanto, como um modo de conscientização. Uma ação socialmente engajada, menos estética do que performática, atuante, transformadora:

“Eu sou o tipo do cara que eu sou criativo. Então eu quero usar minha criatividade para coisas boas, porque para coisas ruins, se eu continuar ajuntando com maldade, e a coisa for crescendo, daqui a pouco eu vou estar assaltando o Banco do Brasil. É isso que eu não quero. Eu quero usar pra outro lado. O quê? Chegar ali numa escola, num lugar, dar o discurso ‘olha, funciona assim, já passei por isso e isso, está aqui um livro, lê, reflete em cada coisa que está escrito que você vai ver como é que é!”

Esta sua obra principal, de posse da qual ele poderia começar a dar suas palestras para jovens, alertando-os dos perigos da vida, já teria título: “Quanto vale ou quanto custa?” (ou será que Virgílio é tão vivo que essa obra inicial é esta mesmo que agora você lê? Seria justo, e não deixaria de ser um modo criativo de alavancar uma carreira…). Já escritas, Virgílio tem algumas poesias que guardou dos tempos de internação, como esta que selecionamos para transcrever na íntegra:

“Os meninos são crianças

Os meninos estão crescendo

estão virando homens

estão se matando

matando outros homens

Os meninos estão crescendo

estão se perdendo no tempo

estão se drogando nas ruas

Os meninos estão morrendo

Os meninos são crianças

Muitos não tiveram infância

Brincam com armas de fogo

E matam outras crianças

Os meninos são raivosos

E estão cheios de ódio

E o pior de tudo é saber

que são conhecidos nossos

Os meninos estão crescendo

Estão se matando aos poucos

São milhares e milhares

Espalhados por todos os cantos

Os meninos estão crescendo

Não sabem o que estão fazendo

Vejo muitos no mundo da lua

Quando não são presos

Acabam morrendo”

***


[1] Nome fictício.

[2] Nome fictício.

Prefácio [do livro Jogo Arriscado]

No ano de 2011, fui chamado por um Centro de Assistência Social público da Grande São Paulo para fazer um trabalho de pesquisa e levantamento de dados com o objetivo de promover maior conhecimento e interesse pelo tipo de serviço assistencial desenvolvido por esse órgão, cuja filosofia de trabalho provém da implementação de uma política nacional relativamente nova, não profundamente consolidada.

Para além das informações objetivas, coletadas e reunidas em estatísticas reservadas à instituição, tive a oportunidade de conviver com funcionários e entrevistar usuários do serviço, que me proporcionaram uma experiência surpreendente, parte da qual compartilho por meio das três histórias selecionadas a seguir.

Desde já, agradeço a todos os envolvidos que gentilmente concordaram em publicá-las, os quais tiveram seus nomes reais substituídos por nomes fictícios em todo o texto para preservar seu anonimato.

Como leigo na Assistência Social, peço especialmente aos profissionais da área – assistentes sociais, psicólogos e seus demais colegas – a devida licença para abordar seu território com certa liberdade formal, própria de um documentarista amador, atirado em área nova e desconhecida, a quem se dá a chance de apresentá-la por um ângulo espontâneo, potencialmente original. A propósito, como o objetivo deste livro é contribuir para o maior conhecimento do trabalho da Assistência Social pelo público em geral, não necessariamente especializado, foi previsto desde o início do projeto que um autor sem experiência técnica ou acadêmica na área, mas tão somente no campo da narração, poderia estabelecer mais naturalmente uma ponte entre esse meio profissional particular – com sua linguagem própria – e o público mais amplo interessado numa primeira passagem curiosa por esse mundo. Não obstante, uma passagem tanto mais proveitosa é proposta por meio da leitura complementar do apêndice ao fim do livro, que explora aspectos técnicos da Assistência Social pública, servindo de iniciação informal ao assunto, além de contextualizar num fundo comum as diferentes histórias narradas.

Enfim, aos leitores em geral, quero ressalvar aquilo de mais certo que descobri: que a Assistência Social é um universo próprio com vários mundos, dos quais apresenta-se aqui não mais que o esboço de uma ínfima parte, que também de modo algum se deixa esgotar nos limites desta breve narração.


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