Correntes da História II

 24/12/2009 – quinta-feira, Véspera de Natal.

           Ontem tocamos superficialmente os primórdios da pintura, que remontam ao Período Paleolítico da Pré-História, e cujo maior patrimônio se encontra preservado nas paredes da caverna de Trois Frères, em Lascaux, mais exatamente na Grande Sala dos Touros, a “Capela Sistina” da Idade das Cavernas, dominada pela singular figura do Feiticeiro de Trois Frères.

          Ora, não só o Desenho e a Pintura, mas também a Escultura floresceu no Paleolítico. Contemporâneas das pinturas rupestres são as pequenas estatuetas de figuras femininas denominadas genericamente de Vênus pré-históricas. A mais famosa delas, a Vênus de Willendorf, esculpida em calcário, possui pouco mais de 10 centímetros de altura, poderosos 10 centímetros suficientes para provocar o padrão estético do homem de hoje.

          Trata-se esta estatueta da vigorosa representação de uma mulher gorda nua, de cintura enorme, quadris hiperfartos, coxas grossas e fortes, vagina proeminente, e, o mais impactante à primeira vista, seios grandes como dois balões contrastando com uma cabeça sem rosto, pois o mesmo está encoberto até a altura da boca por tranças de elaboradíssimo penteado, ou máscara ritual feita de fibra vegetal.

          O professor Joseph Campbell, em seu excepcional artigo Nossa Senhora dos Mamutes, constante do livro Mitologia Primitiva, aponta para a função religiosa da peça, que representaria a eterna deusa-mãe responsável pelo milagre da reprodução, cultuada como garantia de fertilidade. A divinização da mulher em sua forma fértil corresponderia a um sentimento natural, no homem primitivo, de que a fêmea, no estado de gravidez, está imbuída de uma força sobrenatural misteriosa, constituindo um centro e uma fonte de força mágica efetiva, respeitada ao nível do sagrado.

          Daí o professor Campbell, com engenhosa argumentação, levanta a hipótese de que tenha existido, durante certo período do Paleolítico, uma prevalência do matriarcado, ou seja, do poder político (de mando) da mulher sobre o homem na estrutura social, especialmente na região da caça aos mamutes, onde a presença feminina era mais forte devido à maior fixidez geográfica desse modo de sobrevivência em relação às regiões que, após o recuo geográfico do gelo da quarta glaciação na Europa, passaram a contar com rebanhos pastoris de animais como o gado e o cavalo selvagem, que requeriam uma atividade francamente nômade. Como a atividade dos agrupamentos humanos das regiões que se mantiveram frias ao norte demandava estações de caça relativamente imutáveis, a força e o valor da mulher, sob a proteção de habitações estáveis, tinham um campo de atuação garantido. Daí essas estatuetas serem usadas nas estações de caça como espécie de padroeiras do lar, a quem os homens pediam proteção antes de saírem para caçar, de modo a retornarem vivos ao refúgio doméstico feminino. Por extensão, essas entidades femininas tornaram-se padroeiras da caça, espécies de Nossa Senhora dos Mamutes.

          A este culto aberto e doméstico da Nossa Senhora dos Mamutes – deusa-mãe padroeira da vida, do lar e da caça – ter-se-ia desenvolvido paralela e gradualmente um culto masculino secreto no interior das cavernas, espécie de confraria dos machões, onde a força sobrenatural masculina, baseada na honra e na coragem (experimentada na prática em heroísmos e tragédias incríveis, próprios de uma caçada a mamutes) era valorizada e reivindicada contra a misteriosa magia das mulheres, vinculada a desconhecidas forças da natureza, que faziam com que a mulher detivesse poder sobre a vida sem necessidade de uma única arma.

           Neste sentido, o Feiticeiro de Trois Frères, híbrido de besta quadrúpede e macho primata, com seus chifres enormes, barba longa e grande pênis flácido balançando entre as pernas que terminam em patas com garras de leão, seria a antítese da guardiã do lar e da vida (ou da temida feiticeira que faz definhar), sendo ele, na verdade, um Deus da Caça, mestre dos mistérios sagrados da Vida e da Morte violenta, da luta e do assassinato direto, face a face, um Deus-macho vislumbrado como animal predador selvagem, no mesmo nível de bestialidade/divindade da caça por ele enfrentada.

          Os homens, cansados de estar à mercê da poderosa e sinistra magia das mulheres, teriam se fortalecido nessas confrarias secretas, até que enfim, conscientes de que tinham “proteção sobrenatural” para encará-las, teriam dado um golpe de estado, instalando o patriarcado. Neste momento, a antiga deusa-mãe cedeu o trono ao deus-pai.

1 Resposta to “Correntes da História II”


  1. 1 macadden 05/01/2010 às 3:28

    com certeza,na verdade não mudou muito hoje,existem muitas venus de willendorf,coxas grossas,quadris hiper fartos e principalmente a proeminencia vaginal muito em evidencia hoje em dia,e a cabeça sem rosto então,botox,sobrancelha postiça a plastiquinha no nariz e na papinha,estou de acordo que é muito atual


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